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SILÊNCIOS
Exibição original
Widcyber
Conto de
Francisco Siqueira
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Talvez
a razão pela qual não sejamos capazes de amar seja porque ansiamos
ser amados, isto é, exigimos algo do nosso parceiro em vez de nos
darmos genuinamente a ele sem nada exigir, querendo apenas a sua
companhia.
Milan
Kundera, em “A insustentável leveza do ser”
1982...
Coloco
o telefone no gancho, sobre a mesinha ao lado da minha cabeceira.
Acabo de falar com o meu companheiro com quem vivo há catorze anos.
Henrique é cardiologista e nos últimos seis meses decidiu fazer
parte da equipe de plantonistas em alguns dos hospitais onde exerce
sua função, passando a trabalhar de sobreaviso, abdicando de finais
de semana, não se importando em sair de onde estiver e a hora que
for necessário.
Desde
que a crise conjugal em nosso casamento teve início, há um pouco
mais de oito meses — ou melhor, quando decidimos “dar corpo” ao
fantasma que já pairava sobre nossas cabeças há praticamente um
ano —, tornando a nossa convivência sob o mesmo teto cada vez mais
desconfortável, transformando-nos a cada dia que passa em duas
pessoas completamente estranhas, como se nunca tivéssemos sequer
compartilhado qualquer tipo de intimidade, esses períodos de
ausência e afastamento, acho, têm sido mais que providenciais para
nós dois.
Viro-me
na cama, de um lado para o outro, repetidas vezes, enquanto tento
encontrar alguma posição confortável, enquanto tento colocar em
ordem todos os pensamentos que circulam, cravando garras dilacerantes
em minha mente, mas não consigo. Com os olhos abertos na
semiescuridão, mirando as sombras sinuosas que desfilam sob o teto,
luto bravamente para expulsar para bem, bem longe, a imagem de Tiago,
a porra do último
ser humano sobre a face da Terra por quem deveria ter me permitido
sentir qualquer tipo de atração... A porra do
último ser humano por
quem deveria ter me apaixonado.
Quão
ridículo e patético sou. Aos 48 anos nutrindo um sentimento
platônico por um jovem com a metade da minha idade... Meu Deus! Em
que instante o meu desespero fez-me perder o controle da situação?
Tiago é o filho do meu companheiro, e como se isso já não
bastasse, como pude me deixar enredar neste redemoinho em apenas três
semanas, três únicas semanas, alimentando fantasias e situações
como um adolescente que acabou de descobrir os encantos do primeiro
amor?
A
vida e suas ironias. Em todos os casos extraconjugais que já tive,
em todas as minhas conquistas e aventuras, sempre busquei manter o
equilíbrio, portando-me como um cavalheiro, um lorde inglês,
uma requintada aranha tecendo com precisão sua teia de seda quase
invisível, arquitetando com prazer e volúpia — alguma das vezes
prolongando esse prazer o maior tempo possível —, a armadilha com
a qual envolveria minha presa para então receber, sem falsa
modéstia, meu merecido prêmio entre as mãos... Mas e agora?
Não
estou me reconhecendo. Como fui me deixar abalar ao reencontrar,
depois de uma década, aquele menino que conheci e convivi, ainda que
de forma esporádica, no final da sua segunda infância e início da
pré-adolescência, até sua mãe decidir levá-lo para a Europa com
o novo marido?
Desde
o instante, quando vi Tiago atravessar o portão de desembarque do
aeroporto, com seus ombros largos, cabelos aloirados e um tanto
desgrenhados lhe cobrindo as orelhas, vestindo uma camisa branca sob
uma jaqueta Bomber entreaberta, uma calça jeans com aparência
gasta e cintura alta indo de encontro sem qualquer tipo de
interferência ao tênis de cano alto, a imagem do garoto mirrado de
dez anos atrás se apagou de vez, e eu não pude deixar de reconhecer
o quão extraordinariamente belo ele estava. E à medida que
caminhávamos rumo ao estacionamento, após os abraços, os beijos em
nossos rostos, meu e de Henrique, pude constatar que por onde
passávamos não havia uma só pessoa que não deixasse de admirá-lo.
Fosse por sua beleza evidente, realçada nos traços amadurecidos que
sua barba por fazer lhe permitia, ou fosse
pelo poder de sedução que dele emanava, sem ambivalência, Tiago
decerto excitava a todos que se dispusesse a apreciá-lo com os olhos
do desejo diante de sua força, sua graciosidade, sua firmeza!
Não
compreendi, naquele instante, o sentimento penoso que de um momento
para outro começou a me provocar, a me corroer. A mesma sensação
que se tem quando somos possuídos pelo medo de perder alguma coisa
sem saber ao certo o que é.
Ciúmes!
Sem
sombra de dúvida tudo começou ali, ouvindo Tiago tentando resumir a
década de sua vida que passou longe de seu pai... longe de mim.
No
trajeto de volta para o nosso apartamento, dirigindo enquanto
observava pelo retrovisor pai e filho matando saudades, pude
perceber, enfim, ainda que sem a perspectiva exata do contraponto da
minha ridícula paixão por Tiago, o quão distante eu e Henrique já
estávamos um do outro, tanto física como emocionalmente.
Um
incêndio não começa de maneira grandiosa, muita das vezes quase
incontrolável, tampouco a corrupção de alguns de nossos valores.
Fernando,
você está feliz por estar evitando olhar muito fundo dentro de si
por medo de encontrar sua sombra?
As
últimas palavras proferidas por aquele nobre colega psicólogo,
depois da nossa última sessão, quando abandonei sua sala a passos
largos, estampando um inconfundível sorriso de deboche, ainda
retumbam por todo o meu cérebro.
Minha
sombra...
Volto
a me revirar sobre a cama, e mais uma vez não encontro a posição
adequada para relaxar, e nem sequer meu corpo parece dar sinal de que
sucumbirá ao sono, ou a uma simples madorna, ou a qualquer tipo de
um maldito repouso que me permita, ainda que por dez minutos, apagar,
esquecer tudo o que vem acontecendo.
Graças
a todos os anjos do firmamento, Tiago, hoje à tarde, voltou para a
mãe. Não tive coragem de levá-lo ao aeroporto. Não poderia. Essas
últimas três semanas foram terríveis e torturantes para mim, e
vê-lo partir, em definitivo, ainda que com a promessa de que
retornará nas próximas férias da Faculdade, seria demais.
Definitivamente
não iria me conter.
Nem
mesmo todas as anfetaminas e tranquilizantes do mundo me ajudariam a
suportar, ainda mais diante da certeza plena e absoluta de que eu
estaria fazendo papel de idiota, um completo estúpido dando vazão
aos meus delírios, acreditando nos ecos surdos da minha soberba
sentimental...
A
propósito, meu enteado jamais dera nenhum sinal de que tivesse a
mínima inclinação homossexual. Na verdade, nos 21 dias que passou
conosco, ele manteve a total descrição a respeito da parte privada
de sua vida.
Deus!
Deus!
Ao
passo que via meu sentimento crescer por Tiago, cheguei a me
perguntar e a ficar preocupado se estava sendo acometido por uma
espécie de psicopatologia ou simplesmente um fenômeno
psicoemocional de uma paixão platônica.
Mesmo
ciente da relativa perda da realidade, mesmo tendo consciência das
minhas fantasias, deixei-me mergulhar de corpo e alma no mar das
ilusões perdidas, no clube dos corações partidos. A carência e os
problemas dentro do meu relacionamento, ou o diabo a quatro,
fizeram-me enxergar ações e reflexos onde nada demais existia.
Nenhuma segunda ou sequer terceiras intenções. Nada. Criei uma
mise-em-scène em torno dos risos soltos, das trocas de
olhares entre mim e Tiago, que para minha surpresa se mostrou o mais
carinhoso e atencioso possível, provando que o veneno pernicioso de
sua mãe não conseguira corrompê-lo, já que Laura jamais perdoou
Henrique por tê-la deixado para se unir a outro homem.
Como
me senti o maior e melhor ser humano sobre a face da Terra quando via
Tiago deixando escapar um sorriso no canto dos lábios, tornando-o
ainda mais irresistível. Sua delicadeza, sua admiração e paciência
para ouvir tudo o que eu falava, desde assuntos triviais, comentários
aleatórios, até alguma dissertação sobre o meu trabalho dentro da
psicologia, deixava-me entusiasmado, vivo, sentindo o sangue correr
como nunca em minhas veias.
Mas
ele, o meu enteado, é um homem, apenas
mais um homem dentro das fugas arrebatadas que sempre busco a fim de
apaziguar, ou suportar, as tempestades que desabam sobre o meu
casamento, afinal de contas, esta não é a primeira crise pela qual
eu e Henrique passamos... Já atravessamos alguns momentos
difíceis... Não tão difíceis como este.
Nenhuma
união, seja ela hétero ou homossexual, tem a garantia de sempre ser
um mar de rosas. Mais cedo ou mais tarde as diferenças acabam
surgindo e minando a relação em algum ponto, fragilizando-a, ainda
mais depois de catorze anos juntos. Elas, as crises, vêm e vão.
Cabe decidirmos se queremos enfrentá-las de cabeça erguida, ou,
então, entregar os pontos antes mesmo do round
final.
Cabe decidirmos a definição concreta do ato de trair, pois, na
cabeça de muitos indivíduos, a infidelidade dentro de seus
relacionamentos românticos, relacionamentos quase sempre
acompanhados de uma dependência emocional latente, lhes dá a
prerrogativa de posse sobre o outro, que possuem exclusividade, um
pseudocontrole sobre a vida sexual de seu parceiro, recusando-se a
enxergar que a lealdade denota parceria evolutiva...
Frida
Kahlo, maravilhosa, teria dito ao seu marido, Diego Rivera, que não
esperava dele fidelidade, pois lhe bastava a lealdade...
Não
estou tentando justificar minhas “escapadas”, ou “traições”,
e muito menos fazer uma ode ao liberalismo sexual, à infidelidade
conjugal, até porque cada um vive como bem entende. Nunca fui santo
e jamais tive a pretensão de levantar esta bandeira. Muito menos sou
um panteão de toda e qualquer verdade moral que possa existir sobre
o universo, achando-me capaz de julgar a conduta de quem quer que
seja.
Nunca
menti para o Henrique. Desde o início da nossa relação, deixei
claro todas as minhas percepções, meus pontos de vista, e ele
concordou com a liberdade que poderíamos ter, eventualmente, sem
carregar culpas, remoer lamentações, mas apenas com uma condição:
a de não levarmos para casa nenhuma dessas “aventuras”, tanto
física quanto emocionalmente. Contudo, desde que percebemos e
assumimos, ainda que de maneira silenciosa e covarde, as feridas, o
incomensurável vazio que passou a impregnar esta nossa união,
Henrique, por incrível que pareça, decidiu “rever” esta
cláusula em nosso “contrato”.
Geralmente
os casais que enfrentam a inevitável Grande Tormenta, tendem a
buscar a intimidade perdida, reviver a sexualidade na esperança de
restaurar a chama primária naturalmente arrefecida pelo tempo, que
transforma toda relação romântica em uma união estável, ainda
que a falta de sexo não signifique o fim do amor.
Pois,
bem! Há três meses, Henrique decidiu, e concordei sem qualquer
sinal de resistência, até nos dispormos a confrontar a realidade do
que fazer com o que vem sobrando do nosso relacionamento, em recorrer
a um “terceiro travesseiro”, passando a compartilhar nossa alcova
com rapazes mais jovens, efebos
impulsivos, vaidosos, entusiasmados, e que
estão sempre dispostos a experimentar, sem questionamentos ou
reflexões descabidas, um ménage
à trois,
e predispostos a partirem de nossas vidas, no dia seguinte, após um
suntuoso café da manhã.
Ao
que tudo indica, esta fórmula não vem oferecendo o resultado que
esperávamos. Durante a folgança,
enquanto os “nossos subterfúgios”, cheios de energia, oscilam
entre o sexo rápido e sua retomada para mais uma ou duas novas
rodadas de prazer, eu e meu companheiro não
nos tocamos, não nos beijamos. Nem sequer trocamos olhares; a não
ser aqueles carregados de certa volúpia pela novidade que está
disposta em nossa cama, nos ajudando a chafurdar cada vez mais e mais
na estrada da perdição, alimentando nossa vã esperança, miserável
e inacreditavelmente, de que vamos encontrar em alguns de seus corpos
perfeitos, que mais parecem ser feitos de concreto ao invés de
músculos, a solução para os nossos problemas.
Dois
homens maduros, patéticos, se recusando a lutar...
Por
que não reagimos?
Fernando,
você está feliz por estar evitando olhar muito fundo dentro de si
por medo de encontrar sua sombra?
Sem
alternativa, rolo novamente sobre a cama, mergulhado no meu inferno
particular. Ainda bem que
amanhã é sábado e não vou precisar ficar me sentindo um pecador
infame devido o meu sono desregulado. Um psicólogo bocejando diante
de um paciente não é nem um pouco adequado.
*
*
*
1989...
Quanto
mais julgo ter controle sobre minha existência, mais perdido estou,
murmuro ao passo que vou me desviando das pessoas, tentando dominar o
meu medo, o meu desespero, ou mesmo um resquício de raiva até que
por fim alcanço a fila disposta em frente ao portão 8, onde
não demoro muito para entregar minha passagem e identidade para que
o funcionário da empresa aérea faça a devida conferência com seus
gestos rápidos e frívolos, me devolvendo quase que de imediato a
CNH e uma parte do ticket destacado, que observo
aleatoriamente por alguns segundos antes de guardá-los para, então,
começar a percorrer o trajeto até a entrada do avião como se
estivesse sendo escoltado para minha execução sumária.
Sete
anos... Sete longos anos e do nada Henrique retorna à minha vida,
ainda que seja apenas através de uma ligação, uma infeliz ligação,
e talvez se não fosse pela natureza do seu pedido, na verdade, do
desejo de Tiago em me ver, decerto não estaria disposto a enfrentar
esta empreitada prestes a cruzar o Atlântico.
Um
ansiolítico, pelo amor de Deus!
Como
vou encarar a todos?
Como
será que Laura está? Pergunta idiota e egoísta, claro. Uma mãe
testemunhando o sofrimento do próprio filho “a céu aberto”, sem
o direito sequer de nutrir a esperança de poder salvá-lo, não vai
se permitir alimentar as feridas do passado ao rever à sua frente o
homem que, aos seus olhos, lhe “roubou” o marido, ainda que
Henrique nunca tivesse sido feliz ao seu lado.
Como
vou conseguir olhar para Tiago? Meu Deus! Como ele deve estar?
Pela
hesitação e pesar no tom da voz de Henrique, tenho certeza de que
devo encontrar o meu ex-enteado já completamente envolvido pelas
garras desta infeliz epidemia que vem castigando a tudo e a todos...
Como
Tiago processou tudo isso? Como enfrentou a amarga certeza de que a
partir do instante do diagnóstico de que estava infectado, passaria
a viver debruçado à beira de um precipício? Como será que vem
suportando a intensidade do tratamento, à medicação agressiva? O
quanto ele vem suportando a realidade da segregação, do preconceito
e do desprezo?
Há
seis anos, quando o alarme começou a ser tocado, que venho perdendo
muitos amigos. Em verdade já não sei mais quantos se foram,
desapareceram. Toda uma geração sendo devastada pelo medo e pela
morte e eu me pergunto, mesmo sendo um sacrilégio este tipo de
questionamento, por que ainda estou vivo? Qual o motivo de não ter
sido infectado, pois vivi e convivi bem, bem de perto com este
maldito vírus...
Graças
a todos os anjos do firmamento Tiago tem os pais ao seu lado, pois
ninguém merece morrer sozinho, sem a companhia de um familiar, já
que os infelizes se recusam a se aproximar, a ficar ao menos dois
segundos que seja dentro do mesmo quarto, um sombrio quarto de
hospital, segurando a mão da pessoa que um dia significou algo para
eles, mas que a seus olhos foi reduzida à personificação do que o
“castigo divino” pode fazer com uma alma desgarrada.
Faço
a curva no fim do corredor e visualizo as comissárias de bordo
sorrindo na porta do avião. Vou “enfartar” antes de alcançá-las,
constato enquanto palpitações e falta de ar tomam conta do meu
peito.
Não
foi fácil dizer adeus, apesar de eu e Henrique sabermos que a vida
que levávamos naqueles últimos quase nove meses não ter sido mais
que uma pura e perversa encenação, uma peça de teatro que há
muito deveria ter saído de cartaz. Uma existência que se arrastava
com as correntes pesadas da dor, do resto de carinho, da inércia de
um sentimento que perdera o nome, o sentido.
Tão
logo a partida de Tiago, num espaço de apenas três dias, Henrique
tomou a iniciativa de colocar um ponto final em nossa relação:
somos dois completos estranhos querendo se encontrar, mas que não
fazemos nada, de fato, para que isso aconteça, disse, ponderado, com
lágrimas nos olhos, porém, sustentando um semblante beirando o
impassível, esforçando-se sobremaneira para omitir a amargura e o
rancor que decerto lhe corroíam a alma.
São
muitos os sentimentos que estão à flor da pele durante o término
de uma união, contudo, nem eu, e nem Henrique, ousamos
verbalizá-los. Optamos pelo total silêncio. O sepulcro do amor que
um dia alimentamos, estava, por fim, escavado na forma de um imenso
buraco emocional e o meu companheiro de catorze anos, o meu parceiro
com que eu podia contar, o homem com quem tive a coragem de
compartilhar a minha essência, cruzou a porta sem olhar para trás.
As
comissárias de bordo continuam sorrindo. Inspiro e expiro. Preciso
me controlar ou, então, pedir ajuda diante da minha incapacidade.
Não.
Não.
Decido
que não vou chamar a atenção e sigo para o meu destino e
cumprimento as funcionárias impecavelmente vestidas em seus
uniformes ao tempo que ganho algumas balinhas e me viro para o
corredor, onde, de praxe, uma procissão está acontecendo.
Porque
as pessoas ficam andando pra lá e pra cá tratando de descobrir onde
é o seu assento, como se a disposição dos algarismos fosse
aleatória e não em ordem crescente?
Finalmente
consigo chegar à minha poltrona, onde, graças ao Cristo, ninguém
(ainda) ocupou as cadeiras do corredor e a do meio, me dando
esperanças de que eu possa viajar sozinho, encostado à janela.
Praticamente
me jogo sobre o estofado, inclinando-o logo em seguida e então,
depois de me recostar, fecho os olhos e me pergunto que merda é essa
que estou fazendo e fico assim, com os olhos cerrados, apenas ouvindo
as pessoas ao meu redor, ouvindo o som dos compartimentos de bagagem
sendo abertos e fechados...
O
sentimento intenso que me invadiu aos dias que se seguiram do nosso
rompimento foi excruciante. Não conseguia me convencer de que
viveria longe de Henrique; de que eu chegaria ao nosso apartamento e
não o encontraria mais. Que não ficaríamos mais lado a lado na
cozinha preparando o jantar à medida que conversávamos sobre os
nossos dias, nossa rotina...
Por
um bom tempo convivi com sensações que iam além da dor emocional,
como alterações de apetite, a falta de ar, insônia, mas eu sabia
que precisava encarar o luto. Não era uma escolha, era um processo
natural em que eu precisava compreender que o fim de uma relação
não significa um fracasso...
Precisei
seguir adiante. Sim. No início, estrangulando com certa dificuldade
o padecimento diante dos meus pacientes. Na medida do possível, eu
precisava estar inteiro, ou próximo disso para atendê-los,
ajudá-los, como sempre, com seus problemas de modo a alcançarem uma
qualidade melhor em seus relacionamentos familiares, sociais ou
qualquer outro, ao mesmo tempo que o espelho da vida me confrontava
de mãos dadas com o meu desolado destino e sua peculiar ironia.
Eu
e Henrique nunca mais nos vimos. As tratativas que envolveram as
negociações da divisão dos nossos bens, inclusive a venda do
apartamento, se deram, ao menos da parte dele, com a representação
de um advogado.
Respeitei
sua decisão.
Era
o mínimo que eu podia fazer.
Infelizmente,
diante dessa sua reação, dessa sua escolha, não tivemos a
oportunidade de tentar, ou quem sabe até mesmo reparar nossas
questões pendentes e entender, no frigir dos ovos, que não deveria
existir um culpado no final de nossa história.
É
possível que o processo do luto intensificado pela certeza de que
Henrique não mais voltaria, tenha ceifado meu apetite sexual —
dentre todas as outras sensações
—, demarcando a perda do
fôlego de minha testosterona por um longo período. Por mais que
tentasse, nada e nem ninguém fazia com que este desconforto fosse
suplantado, e não foram poucos os esforços. Saunas, garotos de
programa, “passeios” noturnos em parques ou lugares apropriados
para um encontro rápido, sem meandros... Nenhum desses subterfúgios
pôde me devolver a febre do desejo. Cada rosto, cada jovem, cada
pele, tudo e todos me levavam à lembrança de Henrique, e também de
Tiago, por incrível que pudesse parecer.
Sim.
Eu estava escavando e escavando e escavando um inferno moral por me
recusar a enxergar a saída da irritante e insistente negação de
que não teria de volta a presença de Henrique, assim como o
terrível fantasma da cobiça frustrada por não ter conseguido me
expressar a Tiago.
Citando
Milan Kundera, “os amores são como impérios: quando a ideia em
que foram baseados desmorona, eles, também, se desvanecem”.
*
*
*
Desço
do táxi num salto enquanto termino de guardar a carteira no bolso de
trás da calça, avançando de pronto, e a passos largos na direção
da porta de correr da entrada de emergência de um hospital nos
arredores de Paris, até alcançar, na mesma velocidade, o balcão de
atendimento, onde mal terminando de apoiar as duas mãos com extrema
força sobre a superfície, lanço minha pergunta para uma das
atendentes que está sentada do outro lado, esforçando-me ao máximo
com o meu francês sem muita prática, sobre como chegar ao quarto do
paciente Tiago Neves da Fonseca, à medida que busco recuperar um
pouco do fôlego.
— Désolé.
Mais êtes-vous lié au patient?
A
pergunta de praxe, se sou parente do paciente, acaba por invadir de
maneira grandiloquente meus ouvidos, como era de se esperar.
Permanecendo
sentada, a atendente, ostentando um semblante carregado de
determinação, não deixa de me sondar para em seguida se dirigir a
uma espécie de ata sobreposta ao mesão que compartilha com mais
duas funcionárias. Todas com seus fios de cabelos devidamente
arrumados e presos com severidade e seus uniformes brancos e
fisionomias circunspectas.
Não
estou disposto a passar por tudo isso: um interrogatório exaustivo,
olhares supostamente complacentes, mas que escondem um sentimento de
repulsa. Já conheço o roteiro de cor e salteado, e pior, sei que
serei impedido de chegar ao quarto de Tiago...
— Sinto
muito — dispara, por fim, a funcionária — Mas eu não posso
deixá-lo entrar se não tiver nenhuma ligação familiar com o
paciente.
Fecho
os olhos, possesso, impotente, e conto até dez e daí retiro as mãos
de sobre o balcão e só depois de dar as costas para a tal mulher,
decido abrir os olhos para caminhar em linha reta até a parede do
outro lado do largo corredor, onde encosto o ombro esquerdo, tentando
manter a respiração sob controle e também o ímpeto de sair
correndo hospital afora até encontrar o quarto de Tiago.
— Fernando?!
Mal
tenho tempo de deixar de lado minhas reflexões, minha desordem
mental para me virar e me deparar com Henrique, encontrando, de
pronto, em seu rosto, uma combinação de choque,
incerteza, tristeza, confusão, estresse, ansiedade e desconforto.
— Como
ele está?
Não
consigo pensar em mais nada além desta pergunta. Não consigo
ordenar meu cérebro a ter qualquer outro tipo de reação. Sinto-me
travado, teso. Na verdade, sinto uma vontade quase insuportável de
sair correndo para bem longe. Não sei se vou conseguir manter o
mínimo de dignidade diante de Henrique e Laura, e o mais grave, não
sei se vou conseguir reunir forças para atender ao pedido de
Tiago...
— Está
morrendo — Henrique comunica, sem pressa e sem deixar de me fitar —
O CD4 dele está muito baixo. Está com pneumonia e falência
múltipla dos órgãos...
Neste
instante Henrique não consegue mais manter o olhar firme sobre mim.
Antes que baixe a cabeça e passe a fixar o chão, percebo lágrimas
se formando no canto de seus olhos.
— Meu
filho está morrendo e não há mais nada a ser feito. Creio que seja
melhor sermos rápido, pois não tenho certeza se ele aguentará...
Se ele aguentará tempo suficiente...
Coloco
uma das mãos sobre o ombro esquerdo de Henrique enquanto sou
invadido por uma dor enorme, mas decido, num esforço hercúleo, me
esforçar para conter todas as minhas conturbadas emoções...
É
o mínimo que posso fazer.
*
*
*
Laura
e Henrique estão afastados, cada qual em um canto do quarto que me
parece banhando numa semipenumbra apesar de estar relativamente bem
iluminado. Decerto, o suficiente para não incomodar Tiago, que,
deitado e respirando com muita dificuldade, está tão esquelético
que chego a ter medo de olhá-lo, por mais horrível que isso possa
parecer, entretanto, estou aqui, e com o propósito de atender, sabe
Deus o motivo, o seu desejo em me ver.
Aproximo-me
da cama e estendo o braço e tomo sua mão. Sua pele está muito,
muito fina e úmida. Em questão de segundos, Tiago abre os olhos e
sorri, piscando algumas vezes.
— Você
veio...
— Sim...
— respondo com a voz um tanto embargada — Como poderia não ter
vindo diante do seu chamado?
Tiago
sorri novamente e ato contínuo desvio a vista até recuperar o
domínio das minhas emoções. Neste pequeno intervalo de tempo
enxergo Laura e quão mergulhada ela se encontra dentro de sua dor,
uma dor que ser humano algum sobre a face da terra jamais poderá
descrever.
Nenhuma
mãe deveria passar por isso: ter que enterrar o próprio filho.
Volto-me
para Tiago e percebo que em algum lugar, sob a sua pele coberta de
erupções, seus olhos cheios de sangue, ainda está aquele menino
que conheci no final de sua infância e início da adolescência e
também aquele rapaz de ombros largos, cabelos aloirados e um tanto
desgrenhados cobrindo suas orelhas, por quem, num instante de plena
confusão e imaturidade emocional, ousei acreditar que estava
apaixonado.