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SILÊNCIOS



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Conto de
Francisco Siqueira


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Talvez a razão pela qual não sejamos capazes de amar seja porque ansiamos ser amados, isto é, exigimos algo do nosso parceiro em vez de nos darmos genuinamente a ele sem nada exigir, querendo apenas a sua companhia.


Milan Kundera, em “A insustentável leveza do ser”










1982...


Coloco o telefone no gancho, sobre a mesinha ao lado da minha cabeceira. Acabo de falar com o meu companheiro com quem vivo há catorze anos. Henrique é cardiologista e nos últimos seis meses decidiu fazer parte da equipe de plantonistas em alguns dos hospitais onde exerce sua função, passando a trabalhar de sobreaviso, abdicando de finais de semana, não se importando em sair de onde estiver e a hora que for necessário.

Desde que a crise conjugal em nosso casamento teve início, há um pouco mais de oito meses — ou melhor, quando decidimos “dar corpo” ao fantasma que já pairava sobre nossas cabeças há praticamente um ano —, tornando a nossa convivência sob o mesmo teto cada vez mais desconfortável, transformando-nos a cada dia que passa em duas pessoas completamente estranhas, como se nunca tivéssemos sequer compartilhado qualquer tipo de intimidade, esses períodos de ausência e afastamento, acho, têm sido mais que providenciais para nós dois.

Viro-me na cama, de um lado para o outro, repetidas vezes, enquanto tento encontrar alguma posição confortável, enquanto tento colocar em ordem todos os pensamentos que circulam, cravando garras dilacerantes em minha mente, mas não consigo. Com os olhos abertos na semiescuridão, mirando as sombras sinuosas que desfilam sob o teto, luto bravamente para expulsar para bem, bem longe, a imagem de Tiago, a porra do último ser humano sobre a face da Terra por quem deveria ter me permitido sentir qualquer tipo de atração... A porra do último ser humano por quem deveria ter me apaixonado.

Quão ridículo e patético sou. Aos 48 anos nutrindo um sentimento platônico por um jovem com a metade da minha idade... Meu Deus! Em que instante o meu desespero fez-me perder o controle da situação? Tiago é o filho do meu companheiro, e como se isso já não bastasse, como pude me deixar enredar neste redemoinho em apenas três semanas, três únicas semanas, alimentando fantasias e situações como um adolescente que acabou de descobrir os encantos do primeiro amor?

A vida e suas ironias. Em todos os casos extraconjugais que já tive, em todas as minhas conquistas e aventuras, sempre busquei manter o equilíbrio, portando-me como um cavalheiro, um lorde inglês, uma requintada aranha tecendo com precisão sua teia de seda quase invisível, arquitetando com prazer e volúpia — alguma das vezes prolongando esse prazer o maior tempo possível —, a armadilha com a qual envolveria minha presa para então receber, sem falsa modéstia, meu merecido prêmio entre as mãos... Mas e agora?

Não estou me reconhecendo. Como fui me deixar abalar ao reencontrar, depois de uma década, aquele menino que conheci e convivi, ainda que de forma esporádica, no final da sua segunda infância e início da pré-adolescência, até sua mãe decidir levá-lo para a Europa com o novo marido?

Desde o instante, quando vi Tiago atravessar o portão de desembarque do aeroporto, com seus ombros largos, cabelos aloirados e um tanto desgrenhados lhe cobrindo as orelhas, vestindo uma camisa branca sob uma jaqueta Bomber entreaberta, uma calça jeans com aparência gasta e cintura alta indo de encontro sem qualquer tipo de interferência ao tênis de cano alto, a imagem do garoto mirrado de dez anos atrás se apagou de vez, e eu não pude deixar de reconhecer o quão extraordinariamente belo ele estava. E à medida que caminhávamos rumo ao estacionamento, após os abraços, os beijos em nossos rostos, meu e de Henrique, pude constatar que por onde passávamos não havia uma só pessoa que não deixasse de admirá-lo. Fosse por sua beleza evidente, realçada nos traços amadurecidos que sua barba por fazer lhe permitia, ou fosse pelo poder de sedução que dele emanava, sem ambivalência, Tiago decerto excitava a todos que se dispusesse a apreciá-lo com os olhos do desejo diante de sua força, sua graciosidade, sua firmeza!

Não compreendi, naquele instante, o sentimento penoso que de um momento para outro começou a me provocar, a me corroer. A mesma sensação que se tem quando somos possuídos pelo medo de perder alguma coisa sem saber ao certo o que é.

Ciúmes!

Sem sombra de dúvida tudo começou ali, ouvindo Tiago tentando resumir a década de sua vida que passou longe de seu pai... longe de mim.

No trajeto de volta para o nosso apartamento, dirigindo enquanto observava pelo retrovisor pai e filho matando saudades, pude perceber, enfim, ainda que sem a perspectiva exata do contraponto da minha ridícula paixão por Tiago, o quão distante eu e Henrique já estávamos um do outro, tanto física como emocionalmente.

Um incêndio não começa de maneira grandiosa, muita das vezes quase incontrolável, tampouco a corrupção de alguns de nossos valores.

Fernando, você está feliz por estar evitando olhar muito fundo dentro de si por medo de encontrar sua sombra?

As últimas palavras proferidas por aquele nobre colega psicólogo, depois da nossa última sessão, quando abandonei sua sala a passos largos, estampando um inconfundível sorriso de deboche, ainda retumbam por todo o meu cérebro.


Minha sombra...


Volto a me revirar sobre a cama, e mais uma vez não encontro a posição adequada para relaxar, e nem sequer meu corpo parece dar sinal de que sucumbirá ao sono, ou a uma simples madorna, ou a qualquer tipo de um maldito repouso que me permita, ainda que por dez minutos, apagar, esquecer tudo o que vem acontecendo.

Graças a todos os anjos do firmamento, Tiago, hoje à tarde, voltou para a mãe. Não tive coragem de levá-lo ao aeroporto. Não poderia. Essas últimas três semanas foram terríveis e torturantes para mim, e vê-lo partir, em definitivo, ainda que com a promessa de que retornará nas próximas férias da Faculdade, seria demais.

Definitivamente não iria me conter.

Nem mesmo todas as anfetaminas e tranquilizantes do mundo me ajudariam a suportar, ainda mais diante da certeza plena e absoluta de que eu estaria fazendo papel de idiota, um completo estúpido dando vazão aos meus delírios, acreditando nos ecos surdos da minha soberba sentimental...

A propósito, meu enteado jamais dera nenhum sinal de que tivesse a mínima inclinação homossexual. Na verdade, nos 21 dias que passou conosco, ele manteve a total descrição a respeito da parte privada de sua vida.

Deus! Deus!

Ao passo que via meu sentimento crescer por Tiago, cheguei a me perguntar e a ficar preocupado se estava sendo acometido por uma espécie de psicopatologia ou simplesmente um fenômeno psicoemocional de uma paixão platônica.

Mesmo ciente da relativa perda da realidade, mesmo tendo consciência das minhas fantasias, deixei-me mergulhar de corpo e alma no mar das ilusões perdidas, no clube dos corações partidos. A carência e os problemas dentro do meu relacionamento, ou o diabo a quatro, fizeram-me enxergar ações e reflexos onde nada demais existia. Nenhuma segunda ou sequer terceiras intenções. Nada. Criei uma mise-em-scène em torno dos risos soltos, das trocas de olhares entre mim e Tiago, que para minha surpresa se mostrou o mais carinhoso e atencioso possível, provando que o veneno pernicioso de sua mãe não conseguira corrompê-lo, já que Laura jamais perdoou Henrique por tê-la deixado para se unir a outro homem.

Como me senti o maior e melhor ser humano sobre a face da Terra quando via Tiago deixando escapar um sorriso no canto dos lábios, tornando-o ainda mais irresistível. Sua delicadeza, sua admiração e paciência para ouvir tudo o que eu falava, desde assuntos triviais, comentários aleatórios, até alguma dissertação sobre o meu trabalho dentro da psicologia, deixava-me entusiasmado, vivo, sentindo o sangue correr como nunca em minhas veias.

Mas ele, o meu enteado, é um homem, apenas mais um homem dentro das fugas arrebatadas que sempre busco a fim de apaziguar, ou suportar, as tempestades que desabam sobre o meu casamento, afinal de contas, esta não é a primeira crise pela qual eu e Henrique passamos... Já atravessamos alguns momentos difíceis... Não tão difíceis como este.

Nenhuma união, seja ela hétero ou homossexual, tem a garantia de sempre ser um mar de rosas. Mais cedo ou mais tarde as diferenças acabam surgindo e minando a relação em algum ponto, fragilizando-a, ainda mais depois de catorze anos juntos. Elas, as crises, vêm e vão. Cabe decidirmos se queremos enfrentá-las de cabeça erguida, ou, então, entregar os pontos antes mesmo do round final. Cabe decidirmos a definição concreta do ato de trair, pois, na cabeça de muitos indivíduos, a infidelidade dentro de seus relacionamentos românticos, relacionamentos quase sempre acompanhados de uma dependência emocional latente, lhes dá a prerrogativa de posse sobre o outro, que possuem exclusividade, um pseudocontrole sobre a vida sexual de seu parceiro, recusando-se a enxergar que a lealdade denota parceria evolutiva...

Frida Kahlo, maravilhosa, teria dito ao seu marido, Diego Rivera, que não esperava dele fidelidade, pois lhe bastava a lealdade...

Não estou tentando justificar minhas “escapadas”, ou “traições”, e muito menos fazer uma ode ao liberalismo sexual, à infidelidade conjugal, até porque cada um vive como bem entende. Nunca fui santo e jamais tive a pretensão de levantar esta bandeira. Muito menos sou um panteão de toda e qualquer verdade moral que possa existir sobre o universo, achando-me capaz de julgar a conduta de quem quer que seja.

Nunca menti para o Henrique. Desde o início da nossa relação, deixei claro todas as minhas percepções, meus pontos de vista, e ele concordou com a liberdade que poderíamos ter, eventualmente, sem carregar culpas, remoer lamentações, mas apenas com uma condição: a de não levarmos para casa nenhuma dessas “aventuras”, tanto física quanto emocionalmente. Contudo, desde que percebemos e assumimos, ainda que de maneira silenciosa e covarde, as feridas, o incomensurável vazio que passou a impregnar esta nossa união, Henrique, por incrível que pareça, decidiu “rever” esta cláusula em nosso “contrato”.

Geralmente os casais que enfrentam a inevitável Grande Tormenta, tendem a buscar a intimidade perdida, reviver a sexualidade na esperança de restaurar a chama primária naturalmente arrefecida pelo tempo, que transforma toda relação romântica em uma união estável, ainda que a falta de sexo não signifique o fim do amor.

Pois, bem! Há três meses, Henrique decidiu, e concordei sem qualquer sinal de resistência, até nos dispormos a confrontar a realidade do que fazer com o que vem sobrando do nosso relacionamento, em recorrer a um “terceiro travesseiro”, passando a compartilhar nossa alcova com rapazes mais jovens, efebos impulsivos, vaidosos, entusiasmados, e que estão sempre dispostos a experimentar, sem questionamentos ou reflexões descabidas, um ménage à trois, e predispostos a partirem de nossas vidas, no dia seguinte, após um suntuoso café da manhã.

Ao que tudo indica, esta fórmula não vem oferecendo o resultado que esperávamos. Durante a folgança, enquanto os “nossos subterfúgios”, cheios de energia, oscilam entre o sexo rápido e sua retomada para mais uma ou duas novas rodadas de prazer, eu e meu companheiro não nos tocamos, não nos beijamos. Nem sequer trocamos olhares; a não ser aqueles carregados de certa volúpia pela novidade que está disposta em nossa cama, nos ajudando a chafurdar cada vez mais e mais na estrada da perdição, alimentando nossa vã esperança, miserável e inacreditavelmente, de que vamos encontrar em alguns de seus corpos perfeitos, que mais parecem ser feitos de concreto ao invés de músculos, a solução para os nossos problemas.

Dois homens maduros, patéticos, se recusando a lutar...

Por que não reagimos?


Fernando, você está feliz por estar evitando olhar muito fundo dentro de si por medo de encontrar sua sombra?


Sem alternativa, rolo novamente sobre a cama, mergulhado no meu inferno particular. Ainda bem que amanhã é sábado e não vou precisar ficar me sentindo um pecador infame devido o meu sono desregulado. Um psicólogo bocejando diante de um paciente não é nem um pouco adequado.


* * *


1989...


Quanto mais julgo ter controle sobre minha existência, mais perdido estou, murmuro ao passo que vou me desviando das pessoas, tentando dominar o meu medo, o meu desespero, ou mesmo um resquício de raiva até que por fim alcanço a fila disposta em frente ao portão 8, onde não demoro muito para entregar minha passagem e identidade para que o funcionário da empresa aérea faça a devida conferência com seus gestos rápidos e frívolos, me devolvendo quase que de imediato a CNH e uma parte do ticket destacado, que observo aleatoriamente por alguns segundos antes de guardá-los para, então, começar a percorrer o trajeto até a entrada do avião como se estivesse sendo escoltado para minha execução sumária.

Sete anos... Sete longos anos e do nada Henrique retorna à minha vida, ainda que seja apenas através de uma ligação, uma infeliz ligação, e talvez se não fosse pela natureza do seu pedido, na verdade, do desejo de Tiago em me ver, decerto não estaria disposto a enfrentar esta empreitada prestes a cruzar o Atlântico.

Um ansiolítico, pelo amor de Deus!

Como vou encarar a todos?

Como será que Laura está? Pergunta idiota e egoísta, claro. Uma mãe testemunhando o sofrimento do próprio filho “a céu aberto”, sem o direito sequer de nutrir a esperança de poder salvá-lo, não vai se permitir alimentar as feridas do passado ao rever à sua frente o homem que, aos seus olhos, lhe “roubou” o marido, ainda que Henrique nunca tivesse sido feliz ao seu lado.

Como vou conseguir olhar para Tiago? Meu Deus! Como ele deve estar?

Pela hesitação e pesar no tom da voz de Henrique, tenho certeza de que devo encontrar o meu ex-enteado já completamente envolvido pelas garras desta infeliz epidemia que vem castigando a tudo e a todos...

Como Tiago processou tudo isso? Como enfrentou a amarga certeza de que a partir do instante do diagnóstico de que estava infectado, passaria a viver debruçado à beira de um precipício? Como será que vem suportando a intensidade do tratamento, à medicação agressiva? O quanto ele vem suportando a realidade da segregação, do preconceito e do desprezo?

Há seis anos, quando o alarme começou a ser tocado, que venho perdendo muitos amigos. Em verdade já não sei mais quantos se foram, desapareceram. Toda uma geração sendo devastada pelo medo e pela morte e eu me pergunto, mesmo sendo um sacrilégio este tipo de questionamento, por que ainda estou vivo? Qual o motivo de não ter sido infectado, pois vivi e convivi bem, bem de perto com este maldito vírus...

Graças a todos os anjos do firmamento Tiago tem os pais ao seu lado, pois ninguém merece morrer sozinho, sem a companhia de um familiar, já que os infelizes se recusam a se aproximar, a ficar ao menos dois segundos que seja dentro do mesmo quarto, um sombrio quarto de hospital, segurando a mão da pessoa que um dia significou algo para eles, mas que a seus olhos foi reduzida à personificação do que o “castigo divino” pode fazer com uma alma desgarrada.

Faço a curva no fim do corredor e visualizo as comissárias de bordo sorrindo na porta do avião. Vou “enfartar” antes de alcançá-las, constato enquanto palpitações e falta de ar tomam conta do meu peito.

Não foi fácil dizer adeus, apesar de eu e Henrique sabermos que a vida que levávamos naqueles últimos quase nove meses não ter sido mais que uma pura e perversa encenação, uma peça de teatro que há muito deveria ter saído de cartaz. Uma existência que se arrastava com as correntes pesadas da dor, do resto de carinho, da inércia de um sentimento que perdera o nome, o sentido.

Tão logo a partida de Tiago, num espaço de apenas três dias, Henrique tomou a iniciativa de colocar um ponto final em nossa relação: somos dois completos estranhos querendo se encontrar, mas que não fazemos nada, de fato, para que isso aconteça, disse, ponderado, com lágrimas nos olhos, porém, sustentando um semblante beirando o impassível, esforçando-se sobremaneira para omitir a amargura e o rancor que decerto lhe corroíam a alma.

São muitos os sentimentos que estão à flor da pele durante o término de uma união, contudo, nem eu, e nem Henrique, ousamos verbalizá-los. Optamos pelo total silêncio. O sepulcro do amor que um dia alimentamos, estava, por fim, escavado na forma de um imenso buraco emocional e o meu companheiro de catorze anos, o meu parceiro com que eu podia contar, o homem com quem tive a coragem de compartilhar a minha essência, cruzou a porta sem olhar para trás.

As comissárias de bordo continuam sorrindo. Inspiro e expiro. Preciso me controlar ou, então, pedir ajuda diante da minha incapacidade.

Não. Não.

Decido que não vou chamar a atenção e sigo para o meu destino e cumprimento as funcionárias impecavelmente vestidas em seus uniformes ao tempo que ganho algumas balinhas e me viro para o corredor, onde, de praxe, uma procissão está acontecendo.

Porque as pessoas ficam andando pra lá e pra cá tratando de descobrir onde é o seu assento, como se a disposição dos algarismos fosse aleatória e não em ordem crescente?

Finalmente consigo chegar à minha poltrona, onde, graças ao Cristo, ninguém (ainda) ocupou as cadeiras do corredor e a do meio, me dando esperanças de que eu possa viajar sozinho, encostado à janela.

Praticamente me jogo sobre o estofado, inclinando-o logo em seguida e então, depois de me recostar, fecho os olhos e me pergunto que merda é essa que estou fazendo e fico assim, com os olhos cerrados, apenas ouvindo as pessoas ao meu redor, ouvindo o som dos compartimentos de bagagem sendo abertos e fechados...

O sentimento intenso que me invadiu aos dias que se seguiram do nosso rompimento foi excruciante. Não conseguia me convencer de que viveria longe de Henrique; de que eu chegaria ao nosso apartamento e não o encontraria mais. Que não ficaríamos mais lado a lado na cozinha preparando o jantar à medida que conversávamos sobre os nossos dias, nossa rotina...

Por um bom tempo convivi com sensações que iam além da dor emocional, como alterações de apetite, a falta de ar, insônia, mas eu sabia que precisava encarar o luto. Não era uma escolha, era um processo natural em que eu precisava compreender que o fim de uma relação não significa um fracasso...

Precisei seguir adiante. Sim. No início, estrangulando com certa dificuldade o padecimento diante dos meus pacientes. Na medida do possível, eu precisava estar inteiro, ou próximo disso para atendê-los, ajudá-los, como sempre, com seus problemas de modo a alcançarem uma qualidade melhor em seus relacionamentos familiares, sociais ou qualquer outro, ao mesmo tempo que o espelho da vida me confrontava de mãos dadas com o meu desolado destino e sua peculiar ironia.

Eu e Henrique nunca mais nos vimos. As tratativas que envolveram as negociações da divisão dos nossos bens, inclusive a venda do apartamento, se deram, ao menos da parte dele, com a representação de um advogado.

Respeitei sua decisão.

Era o mínimo que eu podia fazer.

Infelizmente, diante dessa sua reação, dessa sua escolha, não tivemos a oportunidade de tentar, ou quem sabe até mesmo reparar nossas questões pendentes e entender, no frigir dos ovos, que não deveria existir um culpado no final de nossa história.

É possível que o processo do luto intensificado pela certeza de que Henrique não mais voltaria, tenha ceifado meu apetite sexual dentre todas as outras sensações , demarcando a perda do fôlego de minha testosterona por um longo período. Por mais que tentasse, nada e nem ninguém fazia com que este desconforto fosse suplantado, e não foram poucos os esforços. Saunas, garotos de programa, “passeios” noturnos em parques ou lugares apropriados para um encontro rápido, sem meandros... Nenhum desses subterfúgios pôde me devolver a febre do desejo. Cada rosto, cada jovem, cada pele, tudo e todos me levavam à lembrança de Henrique, e também de Tiago, por incrível que pudesse parecer.

Sim. Eu estava escavando e escavando e escavando um inferno moral por me recusar a enxergar a saída da irritante e insistente negação de que não teria de volta a presença de Henrique, assim como o terrível fantasma da cobiça frustrada por não ter conseguido me expressar a Tiago.

Citando Milan Kundera, “os amores são como impérios: quando a ideia em que foram baseados desmorona, eles, também, se desvanecem”.


* * *


Desço do táxi num salto enquanto termino de guardar a carteira no bolso de trás da calça, avançando de pronto, e a passos largos na direção da porta de correr da entrada de emergência de um hospital nos arredores de Paris, até alcançar, na mesma velocidade, o balcão de atendimento, onde mal terminando de apoiar as duas mãos com extrema força sobre a superfície, lanço minha pergunta para uma das atendentes que está sentada do outro lado, esforçando-me ao máximo com o meu francês sem muita prática, sobre como chegar ao quarto do paciente Tiago Neves da Fonseca, à medida que busco recuperar um pouco do fôlego.

Désolé. Mais êtes-vous lié au patient?

A pergunta de praxe, se sou parente do paciente, acaba por invadir de maneira grandiloquente meus ouvidos, como era de se esperar.

Permanecendo sentada, a atendente, ostentando um semblante carregado de determinação, não deixa de me sondar para em seguida se dirigir a uma espécie de ata sobreposta ao mesão que compartilha com mais duas funcionárias. Todas com seus fios de cabelos devidamente arrumados e presos com severidade e seus uniformes brancos e fisionomias circunspectas.

Não estou disposto a passar por tudo isso: um interrogatório exaustivo, olhares supostamente complacentes, mas que escondem um sentimento de repulsa. Já conheço o roteiro de cor e salteado, e pior, sei que serei impedido de chegar ao quarto de Tiago...

Sinto muito — dispara, por fim, a funcionária — Mas eu não posso deixá-lo entrar se não tiver nenhuma ligação familiar com o paciente.

Fecho os olhos, possesso, impotente, e conto até dez e daí retiro as mãos de sobre o balcão e só depois de dar as costas para a tal mulher, decido abrir os olhos para caminhar em linha reta até a parede do outro lado do largo corredor, onde encosto o ombro esquerdo, tentando manter a respiração sob controle e também o ímpeto de sair correndo hospital afora até encontrar o quarto de Tiago.

Fernando?!

Mal tenho tempo de deixar de lado minhas reflexões, minha desordem mental para me virar e me deparar com Henrique, encontrando, de pronto, em seu rosto, uma combinação de choque, incerteza, tristeza, confusão, estresse, ansiedade e desconforto.

Como ele está?

Não consigo pensar em mais nada além desta pergunta. Não consigo ordenar meu cérebro a ter qualquer outro tipo de reação. Sinto-me travado, teso. Na verdade, sinto uma vontade quase insuportável de sair correndo para bem longe. Não sei se vou conseguir manter o mínimo de dignidade diante de Henrique e Laura, e o mais grave, não sei se vou conseguir reunir forças para atender ao pedido de Tiago...

Está morrendo — Henrique comunica, sem pressa e sem deixar de me fitar — O CD4 dele está muito baixo. Está com pneumonia e falência múltipla dos órgãos...

Neste instante Henrique não consegue mais manter o olhar firme sobre mim. Antes que baixe a cabeça e passe a fixar o chão, percebo lágrimas se formando no canto de seus olhos.

Meu filho está morrendo e não há mais nada a ser feito. Creio que seja melhor sermos rápido, pois não tenho certeza se ele aguentará... Se ele aguentará tempo suficiente...

Coloco uma das mãos sobre o ombro esquerdo de Henrique enquanto sou invadido por uma dor enorme, mas decido, num esforço hercúleo, me esforçar para conter todas as minhas conturbadas emoções...

É o mínimo que posso fazer.


* * *


Laura e Henrique estão afastados, cada qual em um canto do quarto que me parece banhando numa semipenumbra apesar de estar relativamente bem iluminado. Decerto, o suficiente para não incomodar Tiago, que, deitado e respirando com muita dificuldade, está tão esquelético que chego a ter medo de olhá-lo, por mais horrível que isso possa parecer, entretanto, estou aqui, e com o propósito de atender, sabe Deus o motivo, o seu desejo em me ver.

Aproximo-me da cama e estendo o braço e tomo sua mão. Sua pele está muito, muito fina e úmida. Em questão de segundos, Tiago abre os olhos e sorri, piscando algumas vezes.

Você veio...

Sim... — respondo com a voz um tanto embargada — Como poderia não ter vindo diante do seu chamado?

Tiago sorri novamente e ato contínuo desvio a vista até recuperar o domínio das minhas emoções. Neste pequeno intervalo de tempo enxergo Laura e quão mergulhada ela se encontra dentro de sua dor, uma dor que ser humano algum sobre a face da terra jamais poderá descrever.

Nenhuma mãe deveria passar por isso: ter que enterrar o próprio filho.

Volto-me para Tiago e percebo que em algum lugar, sob a sua pele coberta de erupções, seus olhos cheios de sangue, ainda está aquele menino que conheci no final de sua infância e início da adolescência e também aquele rapaz de ombros largos, cabelos aloirados e um tanto desgrenhados cobrindo suas orelhas, por quem, num instante de plena confusão e imaturidade emocional, ousei acreditar que estava apaixonado.


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