Conto Um Drinque Antes de Partir



WEBTVPLAY ORIGINAL APRESENTA
UM DRINQUE ANTES DE PARTIR


Conto de
Eduardo Canesin




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Todos os direitos reservados.



***

31 de outubro de 2020. 20h30. Periferia da cidade de São Paulo. Bar do Cornélio.

“Bar”, na verdade, era um elogio: tratava-se de um galpão imundo com mesas improvisadas e que vendia cachaça barata aos moradores do bairro. Ao menos vendia até uma semana atrás. Hoje, o lugar estava quase vazio – nem mesmo Cornélio estava lá. Apenas um estranho grupo encontrava-se sentado nos fundos do “bar”, bebericando suas bebidas. Tinham chegado há algum tempo, mas mal começaram o diálogo, já que, a princípio, ocuparam-se com algumas garrafas de uísque e vinhos de má qualidade.

– Confesso que fiquei surpreso com esse convite. Nunca fomos de nos reunir nem nada do tipo e sempre achei essas coisas um grande desperdício de tempo. Deram sorte que estava pela região e que tinha algumas horas ociosas antes do meu compromisso – disse um homem moreno musculoso e bem-vestido, entornando uma caneca de cerveja.

– Sim, foi um convite insólito, mas até que veio bem a calhar. Não é como se eu tivesse algo melhor a fazer – retrucou um estranho ser diminuto que, de tão desfigurado, poderia ser um velho ou uma velha índia.

– Eu os convidei aqui porque precisávamos conversar. Precisávamos ter feito esta reunião há muitos anos – comentou um rapaz negro deficiente. – Vocês sabem que dia é hoje, certo?

– Dia das bruxas? Ou seu dia, Saci? Não me diga que está com vontade de afogar as mágoas – o homem musculoso debochou.

– Nada disso, Boto. A questão é bem outra: vocês viram os cartazes dos últimos filmes, séries e livros? Há histórias de vampiros, de fantasmas, de demônios, de bruxas, de monstros, mas nada sobre nós. Ninguém sequer lembra que nós existimos…

– Viu, só? Era disso que eu estava falando: fomos trazidos aqui para te ouvir se lamentar – resmungou o homem, levantando-se, mal-humorado.

– Espere, não vá embora. Primeiro, deixe-me dizer o que pretendo… veja como as coisas são tão ridículas: estamos aqui, em um bar fechado, cujo dono saiu para viajar para conseguir visitar o túmulo dos parentes nordestinos no dia de finados. Estamos na periferia de uma cidade, ninguém está nem aí para nós e este território todo já foi nosso e fazíamos o que bem queríamos. Agora, as pessoas assistem histórias românticas e quase eróticas sobre vampiros, achando que são as únicas criaturas sobrenaturais que existem – comentou o rapaz negro, segurando o Boto pela manga do casaco.

– “Quase eróticas”? Você sabe o que os vampiros são? São mortos que tomam sangue, só isso. Deixe os humanos cretinos terem suas diversões com uma lenda cretina dessas. Eu, por meu lado, divirto-me muito mais: posso ter as mulheres que quero, não donzelas caucasianas virgens (um bem em extinção, a não ser que os vampiros, além de mortos, sejam pedófilos). E veja só: com aplicativos como esse, meu trabalho está facilitado – disse, apontando para seu celular. – Marco encontros, envolvo-me com quantas quero, sem perder tempo com seduções, e sumo. Como poderia ser melhor do que isso?

– Parece que você se deu bem com as novas tecnologias e as mudanças da atualidade – disse um dos membros do estranho grupo, um anão deficiente, com os pés tortos.

– Mas é claro que sim. Adaptação é a chave do negócio: posso não ter um rio limpo para viver, mas sempre terei uma amante e um leito confortável. E posso escolher quem quiser: mulheres casadas, estudantes colegiais, qualquer fetiche que eu tiver. E, se quiser me divertir um pouco mais, sempre posso filmar nosso intercurso e depois vazar na internet. Acabei com mais do que um casamento nos últimos meses e é sempre satisfatório. Como poderia querer qualquer outra coisa? – Explicou o Boto.

– É só isso que você quer? Ter relações sexuais com mulheres bonitas? – Indagou o Saci.

– Eu e o resto dos homens que não são gays. Mesmo agora, só estou aqui porque não me desvia de meus planos: daqui a pouco encontrarei uma moça evangélica aqui perto e vamos nos divertir muito nesta noite. Refaço a pergunta: o que mais posso querer? – Indagou o homem musculoso.

– Que tal reconhecimento? – Quis saber o Saci.

– Sério? Reconhecimento? É isso que você sempre quis, quando fazia suas traquitanas? Como é patético! Não dou a mínima para o maldito reconhecimento. Só quero minha satisfação, dane-se o que os outros pensam – riu o homem musculoso. – Acho, aliás, que estou perdendo meu tempo aqui – tentou sair da mesa, mas o Saci continuou segurando-o.

– Não é possível que essa vida te agrade! – Desesperou-se o homem negro.

– Mas é claro que me agrada. Por que não agradaria? E veja que não sou o único satisfeito: o Chupa-cabra não me parece entristecido com a mudança – disse o homem musculoso, pegando uma dose de cachaça, que estava na mesa, e se sentando de novo.

– Issssso éééé verdaaadeeee – disse o estranho e horrendo ser sentado à mesa, enquanto bebia aguardente.

– Como assim? – Perguntou o velho (ou velha) índia.

– Ooooraaa, Caipoooora… Tive de mudaaaar um pouco minhaaaaa dieeeeta, masssss trocando a caaaabra por boooiiisss e vacassss, tenhooo comiiiida coooomo nuuuncaaa antessss – respondeu o bicho.

– Você quer dizer que a pecuária extensiva está te beneficiando? – Berrou o outro anão (o deficiente).

– Ei, Curupira, não fique assim. Não é porque não há mais florestas por aí, nem uma fauna rica, que teremos de sofrer – o Boto riu. – A pecuária extensiva é um verdadeiro presente para o Chupa-cabra: centenas ou milhares de animais a um palmo de distância. Sabendo superar as cercas e cães de guarda, o banquete está sempre por perto. E, sabendo moderar, não há erro: um sertanejo com cinco cabras daria a vida para impedir que um dos seus animais morresse, mas um latifundiário? É só uma perda aceitável. Se preciso, aumentará o preço do gado e os consumidores pagarão pelo banquete do Chupa-cabra – deu uma golada em sua dose de bebida e riu ainda mais.

– Mas não há mais florestas, não há mais natureza – balbuciou Curupira.

– Sinal de que você e seu primo (ou prima) não foram bons guardiões da floresta – continuou rindo. – Ainda deve ter uma pracinha por aqui perto. Por que você não vai lá preservá-la? Talvez tentar fazer com que algum pichador malvado se perca?

– Fazer alguém se perder? Num mundo em que todos têm um GPS a tiracolo? Como fazer isso? – Reclamou o Curupira, ébrio e irritado.

– Tem razão. Aposto, então, que você não conseguiria ganhar dinheiro nem sendo taxista… não poderia fazer caminhos doidos, já que todo mundo saberia que você estava tentando se perder. Que triste, não? Ainda bem que eu uso a tecnologia ao meu favor  – o Boto riu ainda mais alto.

– Isso não é divertido – disse Caipora. – Não há animais, nem florestas e sempre vivemos em sintonia com a natureza, até mesmo você.

– Eu? Eu sou praticamente um ser psicanalítico: represento a libido. Sou universal! Vocês é que são índios e, como tais, perderam suas terras. Seu tempo passou. De vocês e do manquinho aqui – disse, apontando para o Saci.

– Mas não precisa ser assim – disse o homem perneta. – As coisas podem (e devem) mudar. Foi para isso que os chamei aqui.

– Ué, não tinha sido só para se lamentar? – Provocou o Boto.

– Temos de nos unir. Só assim conseguiremos ter a vida que queremos e merecemos. Esse país era nosso antes de essas tecnologias virem para cá, antes de os filmes e livros estrangeiros chegarem aqui… nós somos os verdadeiros donos da nação, não devemos ser esquecidos – Saci tentou convencer os outros personagens míticos.

– Que papo mais idiota é esse? Eu só me uno às mulheres, não a seres bizarros como vocês. E seu maior erro foi o de não ter convidado Iara para cá. Ela, sim, sabe usar a boca do jeito certo: não fica se lamentando ou falando, se é que me entendem – riu o Boto, dando outro trago.

O Saci pegou a garrafa que estava na mesa e encheu o copo de seus companheiros novamente. Bebeu em silêncio por alguns segundos e, então, retomou a palavra:

– Você e o Chupa-cabra estão mesmo satisfeitos com a realidade contemporânea?

– Mas é claro que sim, aleijadinho. Novos tempos pedem novas ações, não choradeira. Estamos prosperando mais do que nunca. E veja que o Chupa-cabra é horroroso, então até vocês, apesar das deficiências, conseguiriam algo. Aliás, graças às deficiências, talvez consigam algo: não estão interessados em algum emprego que tenha cota para gente sem perna ou com pé torto? – Provocou o homem.

Saci ignorou a provocação e virou-se para Caipora e Curupira:

– E vocês? Certamente não estão satisfeitos com essa vida, sem ter aquilo que era tão importante para vocês…

– Claro que não estamos – disse Caipora. – Vivemos escondidos em terrenos baldios, andamos por esgotos, não conseguimos fazer coisa alguma, ninguém nos teme, não nos dão presentes. Nossa era já passou, fomos esquecidos.

– Mas é aí que está! Não precisa ser assim. Se nos unirmos e agirmos conjuntamente, poderíamos reverter esse quadro – disse o Saci, bebendo mais uma dose e enchendo o copo de seus companheiros novamente.

– Não sejam ridículos! – Berrou o Boto. – “Agirmos juntos”? Droga, aleijadinho, está parecendo que você usou as cotas para ir à faculdade e fazer um maldito curso de humanas. O que você propõe? Uma nota de repúdio? Discutir a questão do gênero dos textos? Isso já passou dos limites – reclamou o Boto, tentando se erguer da cadeira, mas perdendo o equilíbrio, já que estava ficando ébrio.

– Então a proposta de criar um sindicato não seria bem-vinda, né? – Disse o Saci, rindo.

O Boto o acompanhou nas risadas e, em pouco tempo, todos da mesa estavam rindo também.

– Nós realmente fomos chamados aqui para você se lamentar, não é? – Questionou o Boto.

– É tudo tão difícil… eu já fui temido, mas depois virei uma história de crianças, um personagem de seriado infantil… isso não é justo, sabe? E quando achei que estava no fundo do poço, eis que políticos criaram uma lei para que o dia 31 de outubro seja meu dia: se muito, só sou lembrado nesse dia. Mas quase nada, já que não tenho como competir com as histórias de terror estadunidenses – comentou o homem negro, bebendo sua cachaça.

– É, isso é o fundo do poço – riu o Boto.

– Nem tanto quanto andar no esgoto descalço e com os pés tortos – riu o ébrio Curupira, sendo acompanhado por todos.

– Massss e voocêêêê, Saaacccciii? O quêê teeem feeeitooo? – Indagou o Chupa-cabra.

– É verdade. Todos nós já falamos sobre como fomos afetados pelas novas tecnologias. O que você tem feito nesse meio tempo, além de se lamentar? – Quis saber Caipora.

– Ah, nada de mais. Apenas ando por aí mendigando, fumando meu cachimbo de crack, nada muito emocionante – dizendo isso, tomou mais um gole de sua bebida e encheu o copo de seus companheiros novamente. – Querem ouvir algo engraçado sobre esse bar? O dono dele não foi viajar: eu o matei semana passada, para assumir o controle daqui. Esquartejei o corpo dele e o escondi lá na geladeira.

Todos ficaram em silêncio por algum tempo. Depois, o Saci começou a rir descontroladamente e os demais o acompanharam. Deram mais um trago em suas bebidas e continuaram a rir, pois não tinham mais nada que pudesse ser feito.

Boto olhou seu aplicativo e viu que já estava na hora de ir embora. Virou a dose que estava no seu copo e se levantou com esforço.

– Isso até que foi divertido, no fim das contas, mas agora tenho de partir, pois minha garota está saindo do culto e preciso encontrá-la. Ela me esperará no motel, só vou chegar e me divertir. Ei, querem saber? Acho que poderíamos fazer algo assim todo ano: ver pessoas tão fracassadas como vocês faz com que eu me sinta ainda melhor.

– Puxa, já vai? Que pena. Realmente foi um bom encontro, acho que estava precisando disso. Que tal mais um drinque antes de partir? – Perguntou o Saci, levantando-se e saltitando até o balcão do bar.

Durante o curto percurso, caiu uma vez de joelho, todos riram, mas o personagem conseguiu se recuperar, pegar uma bebida que estava escondida atrás do balcão e encher cinco copos. Tentou levar o drinque aos amigos, mas precisou de ajuda, já que estava por demais ébrio. Sentou-se com os amigos novamente e brindaram em silêncio.

Todos viraram a bebida e a terminaram em uma golada – menos o Saci, que estava meio caído na cadeira.

– Agora tenho de ir… – Levantou-se o Boto, mas tombou novamente na cadeira, sentindo seus braços e pernas sem força. – Mas o quê?

O Saci se levantou e começou a rir, atirando seu copo ainda cheio para longe.

– O que está acontecendo? – Perguntou Caipora, sentindo seu corpo inteiro formigar.

– Sabem o que é engraçado? O Boto, apesar de ser um escroto, estava certo desde o começo: a adaptação é a chave do negócio. Eu andei pesquisando muito nos últimos tempos… os vampiros são uma lenda do leste europeu; os demônios, da Europa Cristã; múmias, do Egito Antigo… a lista é muito mais longa do que isso, mas possui algo em comum: em todos os locais, apenas uma lenda sobrevive e se internacionaliza. E, nos dias de hoje, tudo tende ao monopólio, não é mesmo? Bem, imagino, então, que eu deva me internacionalizar, pois sou o único que se importa com isso: os demais ou levam vidas degradantes ou não possuem ambição e estão satisfeitos com coisas pequenas. Meus planos são os mais grandiloquentes, afinal quero o lugar que é meu por direito: quero ser temido, quero que minha história seja contada para todos, que crianças chorem ao ouvir falar de mim. Justamente por isso, tenho me reunido com vocês ao longo dos últimos dias dessa semana: ontem foi a vez da Cuca, da Iara e do Negrinho do Pastoreio. Amanhã, tenho uma reunião com o Boitatá. Até o fim da semana que vem, só sobrarei eu. Foi bem fácil, já que a mesma técnica funciona com todos: nos embebedamos e, por fim, na última dose, enveneno a cachaça… Sério, vocês deveriam procurar os AA. Não tem uma lenda brasileira que não seja alcoólatra? De todo modo, não se preocupem: não sentirão dores enquanto faço o que tenho de fazer – disse o Saci, enquanto tirava uma faca suja de sangue de seu gorro vermelho.

O primeiro que ele começou a cortar foi o Boto cor-de-rosa, que o olhava em pânico. Saci pegou o celular da vítima, parou por alguns instantes e sorriu: era melhor se apressar nos afazeres, pois teria um encontro naquela noite.


Um Drinque Antes de Partir






Um Drinque Antes de Partir

Conto

star 07 min | Suspense
Classificação: 14 anos
Formato: Conto
Autor: Eduardo Canesin
Estreia Original: 31 Out 2021

Sinopse


Cansado com o fato de as lendas brasileiras serem sempre esquecidas e as pessoas só se importarem com o terror estadunidense, o Saci marca uma reunião com seus amigos e planeja dar o troco.


espaço






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Antologia Halloween - Contos de Terror no Brasil - 1x10 (Season Finale)


Sinopse: Militar de guarda em paiol vê aproximar-se pelotão de espectros saídos dos campos de batalha da Itália para apanhar armas e munições visando continuar a guerra no território do além.


A Sentinela do Paiol
de Jober Rocha

  

Lembro-me muito bem da ocasião em que ocorreu o fato que, a seguir, passarei a narrar. Tinha eu, naquela oportunidade, dezenove anos. Havia sido incorporado ao Exército, no ano anterior, e passara já a condição de soldado engajado, após haver permanecido um ano na qualidade de soldado recruta naquele quartel de infantaria.

O quartel era chamado de regimento, embora fosse apenas um batalhão com cerca de 800 homens. Sua história, como Organização Militar, remontava ao ano de 1935, quando, em área de antiga chácara de propriedade de ingleses, havia sido fundado um quartel de infantaria nas proximidades da divisa entre os municípios de Niterói e de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro.

No ano de 1939 aquele quartel havia mudado de nome e passara a ocupar-se das atividades de um antigo regimento, anteriormente localizado na cidade do Rio de Janeiro, regimento àquele que havia sido extinto em 1935, em razão de haver se rebelado contra o governo federal em episódio marcante da nossa história para, finalmente, ser destruído em um incêndio que se seguiu, após ser bombardeado pelas forças governamentais, fiéis ao presidente de então.

O quartel em que eu me encontrava servindo, havia, portanto, sido criado inicialmente como um batalhão de caçadores e, pouco tempo depois, transformado em um batalhão de infantaria; porém, como incorporara às atividades daquele antigo regimento extinto, continuou a ser chamado pela denominação de regimento, embora, volto a dizer, fosse apenas um batalhão.  Aquele batalhão de infantaria, no ano de 1944, havia fornecido inúmeros militares para compor uma Força Expedicionária Brasileira que lutou em território europeu durante a Segunda Guerra Mundial.

Os militares do batalhão, logo após o Brasil haver declarado guerra às Potências do Eixo, haviam sido enviados para uma nova unidade na Vila Militar de Deodoro, onde tinham participado de treinamentos conjuntos com outros militares de diversas regiões do país, e, a seguir, foram embarcados em navios norte-americanos com destino ao porto de Nápoles, na Itália. Muitos daqueles antigos militares, oriundos do referido batalhão, haviam falecido em combates no Teatro de Guerra Europeu e não retornaram ao nosso país com o fim do conflito mundial. Seus corpos ficaram, durante vários anos, sepultados no Cemitério Militar de Pistóia, na Itália.

Com a reurbanização da Praia do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, seus despojos puderam ser trasladados para o nosso país e ficaram guardados no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra, ali construído para tal; onde, além de serem prestadas homenagens aos mortos que naquele local estão sepultados, também são prestadas homenagens aos desaparecidos em combate, cujos restos mortais jamais puderam ser localizados.

O episódio a que me referi, no início, ocorreu já faz muitos anos (lembro ao leitor que eu tinha somente dezenove anos naquela época e tenho, atualmente, trinta e dois), em um período de inverno intenso, no qual, durante as madrugadas, descia sobre o quartel uma forte cerração.

Encontrava-me, naquele dia, de serviço de guarda junto ao paiol de armas e munições, localizado em área erma em meio a um alto capinzal com algumas esparsas árvores de grande porte.

Meu turno de sentinela iniciara-se às três horas da madrugada. O serviço transcorrera sem alteração; muito embora, após tê-lo assumido, tive a sensação de estar sendo observado de uma distância bem próxima, por vários olhos escondidos em meio ao capinzal. Por diversas vezes notei que o mato ondulava, como se pessoas se movessem em seu interior, em que pese não estar ventando naquela ocasião. Cheguei mesmo a engatilhar o meu fuzil, abaixar-me e ficar esperando um ataque vindo daquela direção.

Com o transcorrer do tempo, nada tendo acontecido, julguei ter sido tudo aquilo fruto da minha imaginação, principalmente, devido à pesada cerração que não permitia a visão de mais do que alguns poucos metros à frente.

Faltando cerca de vinte minutos para a chegada da guarda que traria meu substituto, percebi o ruído de passos, em cadência, aproximando-se do paiol onde me encontrava.

Imaginei que meu relógio deveria estar atrasado e o meu substituto já estivesse sendo conduzido pela guarda, naquele momento, para aquele posto no paiol. Após alguns segundos, durante os quais me preparei para ser substituído, avistei, saindo de dentro da bruma, a guarda que marchava em minha direção comandada por um sargento.

Tendo ela parado a uma pequena distância de onde eu me encontrava, dirigi-me ao seu encontro para ocupar, na formatura, o lugar do soldado que me substituiria. Todavia, conforme eu me aproximava da tropa, nenhum militar saiu do seu lugar e nenhuma voz de comando foi dada. A guarda permanecia imóvel e silenciosa.

Chegando bem próximo dela, percebi que seus uniformes eram um pouco diferentes daqueles que usávamos no quartel. Todos os componentes da guarda pareciam bem mais velhos, sendo que alguns possuíam ataduras que envolviam algumas partes de seus corpos e apresentavam as roupas manchadas de sangue. As armas que portavam eram de modelos antigos, não sendo iguais àquelas que usávamos no quartel, na ocasião.

Imediatamente uma sensação de frio e terror percorreu-me todo o corpo. Embora desejasse sair correndo dali, minhas pernas não me obedeciam. Foi então que, olhando as faces daqueles homens, percebi que não conseguia vislumbrar seus olhos. Era como se no local onde eles deveriam estar não houvesse nada; mas, apenas, dois buracos vazios. Repentinamente, o comandante da guarda disse para seus homens, em voz baixa, alguma coisa que não compreendi.

Os componentes da guarda seguiram, então, rumo à porta do paiol, onde entraram após havê-la quebrado. Alguns passaram por dentro da parede, como se ela não existisse.

Após permanecerem alguns minutos lá dentro, seus integrantes saíram pelo mesmo local transportando várias caixas de munição, granadas e algumas armas leves, que se encontravam armazenadas naquele paiol. Eu assistia a tudo aquilo sem poder me mover, sem nenhuma reação, com o coração batendo forte, parecendo querer pular para fora do peito.

A guarda, sempre marchando sob o comando do sargento, dirigiu-se, então, para o interior do capinzal, onde logo desapareceu em meio à bruma.

Consultando o relógio, constatei que ainda faltavam os mesmos vinte minutos para a chegada da guarda que traria meu substituto; isto é, parecia que o tempo havia parado e aquilo tudo fora vivido em outra dimensão espaço-temporal. Ainda pensava em tudo aquilo que havia presenciado, quando, pouco depois, percebi novo ruído de passos se aproximando. Ao olhar o relógio, novamente, vi que haviam se passado vinte minutos e, fixando os olhos nas figuras que chegavam, percebi que aquela era, realmente, a guarda do quartel trazendo o substituto, que era meu colega da Primeira Companhia.

O sargento comandante da guarda, após uma vistoria na porta do paiol, me perguntou o que havia ocorrido. Após relatar-lhe, ainda sob uma forte emoção, tudo aquilo que havia presenciado, eu observei quando ele retirou do seu cinturão, calmamente, um par de algemas com as quais me algemou, tendo antes tomado o meu fuzil.

Fui conduzido pela guarda até uma cela no interior do quartel, onde passei detido aquele fim de noite. Na manhã seguinte, levaram-me à presença do comandante da unidade, a quem, novamente, relatei tudo o que havia presenciado naquela fatídica noite.

Por mais que descrevesse, fielmente, tudo o que havia presenciado, notava que as pessoas presentes ao meu depoimento pareciam não acreditar no que eu dizia. Ninguém se dava conta da real existência daqueles espectros que haviam visitado o quartel, retirado todas as armas, granadas e munições do paiol para, em seguida, desaparecer para sempre no interior do capinzal.

Meus pais foram conduzidos àquela Organização Militar e, tendo sido levados até a cela onde eu me encontrava, pediram-me que contasse apenas a verdade, que não escondesse nada nem tentasse proteger a ninguém.

Jurei-lhes que tudo aquilo que eu dizia era, absolutamente, verdadeiro. Afirmei-lhes que aqueles espectros, certamente, haviam retornado dos campos de batalha da Itália onde haviam tombado e, não tendo ainda se dado conta da realidade de suas mortes, em uma derradeira visita ao antigo quartel no qual haviam servido, buscavam obter mais armas e munições para prosseguir com sua incansável luta contra o inimigo nazifascista, já agora, entretanto, combatendo-o no território da morte.

Na tarde daquele mesmo dia, meus dois primos, Claudinei e Roberval, que também serviam naquele mesmo quartel, foram colocados presos na mesma cela onde eu me encontrava. Logo após me abraçarem, disseram baixinho em meu ouvido, demonstrando medo e desânimo, que eu podia parar de contar àquela estória que havíamos combinado antecipadamente, pois o comandante do quartel já havia descoberto as caixas de munição, as granadas e as armas que, durante meu horário de guarda no paiol, nós três havíamos retirado arrombando a porta, protegidos pela noite, pela bruma e pelo frio, e escondido na mala do carro do meu primo, Claudinei, estacionado perto da cantina do quartel.

As autoridades militares haviam chegado ao carro do primo e feito a descoberta das armas e munições que roubáramos, em decorrência de um rastro de sangue, de ataduras ensanguentadas e de várias munições espalhadas, que, vindo desde o paiol das armas e munições, seguia pelo chão no exato rumo do porta-malas do veículo. Parecia até (segundo disseram alguns companheiros que haviam visto aquele rastro) que uma tropa, com vários militares feridos e carregando vários caixotes pesados, havia feito aquele trajeto na noite anterior.

Durante os meses em que estive preso na cadeia daquele batalhão, aguardando o julgamento que me conduziu, finalmente, a um presídio militar onde passei cinco longos anos, nas madrugadas frias em que a cerração caía sobre o quartel, da janela da minha cela eu, por várias vezes, pude observar, solitário, uma guarda com uniformes e armas diferentes, cujos integrantes, cheios de ataduras, marchavam em direção ao velho paiol, agora já desativado e vazio, depois daquele infeliz episódio de que participei.

Conto escrito por
Jober Rocha

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

Copyright 
© 2021 - webtvplay
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Proibida a cópia ou a reprodução




Antologia Halloween - Contos de Terror no Brasil - 1x09


Sinopse: Um estranho garoto narra um acontecimento de uma noite de férias, com uma macabra diversão.


Diversões de Férias
de Matheus Adoni

No último dia de aula do 2º ano do colegial, todos notaram minha alegria e ansiedade. Não era para menos: eu sorria de orelha a orelha. Finalmente teria tempo para me divertir e fazer coisas excitantes.

Durante todo aquele ano, tive que bancar o bom garoto, e acho que foi justamente por isso que todos se surpreenderam com minha animação com o fim das aulas. Eu realmente gosto de estudar, mas não é o suficiente para mim. Preciso sentir a vida.

Após o fim das aulas, caminhei com alguns colegas até suas casas; precisava ser o mais agradável possível enquanto houvesse alguém por perto. Nas noites que se seguiriam, um outro eu – o meu eu de verdade – sairia, sem necessidade de lua cheia no céu.

Naqueles primeiros dias de férias esperei a agitação inicial passar, pois são neles que as pessoas, em especial os jovens, começam a sair e passar a madrugada nas ruas; mas isso logo acaba, e passam a voltar cada vez mais cedo para suas casas. Então as ruas ficam desertas e a noite é minha.

Durante a primeira semana, saí com meus colegas e amigos dos quais gosto bastante – afinal, apesar de tudo, pude verificar que não sou um sociopata, e sinto de maneira intensa. Comi batata frita com eles e uma garota até tentou me “namorar”. Mas não era esse o meu desejo para aquelas noites; meus planos eram outros. Como já disse, preciso sentir a vida. 

Na metade da segunda semana de férias, uns onze dias após o fim das aulas, peguei minhas coisas e saí de casa, quando já passava da meia-noite. Como era de se esperar de uma madrugada no meio da semana, a cidade estava bastante calma e as ruas, quase desertas. Eu estava usando uma toca que havia ganhado como presente de aniversário, e eu só a usava (e ainda uso) em ocasiões especiais.

Aquela parte da cidade e eu já havia caminhado alguns quilômetros, mas tenho bom preparo e estou acostumado a caminhadas longas – era bem triste: ali estava a maior parte dos moradores de rua, e à noite eles iam para becos e para baixo das pontes e viadutos. Fui para ruas de pouca movimentação e andei por elas sem encontrar ninguém. Eu sabia que já passava das duas da manhã, e estava prestes a resolver ir para casa. Então eu o vi: estava deitado na calçada, sob a sombra de uma árvore, onde a luz dos postes não o denunciava. Estava sobre um papelão, e coberto por alguns trapos.

A rua, por sorte, era das mais desertas pela qual havia passado naquela noite. Ele estava dormindo. Então me aproximei. A dois metros percebi que era um homem alto, mas bem magro. Puxei a bola de tecidos de meu bolso com a mão esquerda e, com a direita, puxei a navalha presa com um elástico no meu braço esquerdo. Agachei-me, lenta e silenciosamente, até sentir o hálito dele; coloquei a lâmina na lateral de seus pescoços, sobre a jugular, e a cortei: ele abriu os olhos, confuso, sem entender. Viu-me, sentiu o sangue e percebeu o que acontecia. Seu olhar, ao perceber o fim tão próximo, foi emocionante para mim. Quando ele abriu a boca para tentar gritar, larguei a navalha e enfiei a bola de pano em sua boca. Empurrei-a com força, enchendo sua boca até a garganta. Ele se agitou, tentando se levantar, se libertar das amarras da morte.

Seus braços sacudiam no ar. Meu joelho estava em seu peito, mas ele reuniu forças sabe-se lá de onde e quase se levantou. Então o agarrei pelos cabelos e forcei para baixo e bati sua cabeça contra o concreto da calçada; uma, duas, três vezes, até ouvir o crânio se partir e o sangue lhe molhar os cabelos. Ele ficou bem calmo, como uma criança de castigo, e assim como uma criança vi lágrimas saírem de seus olhos.

Meu coração batia muito rápido. Sentei-me ao lado dele, que estava com os olhos abertos, mas parecia prestes a adormecer. Sua respiração estava pesada. Ele esticou a mão esquerda e tentou me tocar. Iria recolher meu braço, mas então permiti que ele segurasse-me pelo pulso, que apertasse meu braço.

A mão dele estava limpa, não havia sangue. Tirei a luva cirúrgica e coloquei sobre o corte no pescoço daquele homem, e pressionei levemente, sentindo o sangue passar entre meus dedos; eu preciso sentir a vida. E aquela estava indo embora.

 

Conto escrito por
Matheus Adoni

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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