Antologia Halloween - Contos de Terror no Brasil - 1x10 (Season Finale)


Sinopse: Militar de guarda em paiol vê aproximar-se pelotão de espectros saídos dos campos de batalha da Itália para apanhar armas e munições visando continuar a guerra no território do além.


A Sentinela do Paiol
de Jober Rocha

  

Lembro-me muito bem da ocasião em que ocorreu o fato que, a seguir, passarei a narrar. Tinha eu, naquela oportunidade, dezenove anos. Havia sido incorporado ao Exército, no ano anterior, e passara já a condição de soldado engajado, após haver permanecido um ano na qualidade de soldado recruta naquele quartel de infantaria.

O quartel era chamado de regimento, embora fosse apenas um batalhão com cerca de 800 homens. Sua história, como Organização Militar, remontava ao ano de 1935, quando, em área de antiga chácara de propriedade de ingleses, havia sido fundado um quartel de infantaria nas proximidades da divisa entre os municípios de Niterói e de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro.

No ano de 1939 aquele quartel havia mudado de nome e passara a ocupar-se das atividades de um antigo regimento, anteriormente localizado na cidade do Rio de Janeiro, regimento àquele que havia sido extinto em 1935, em razão de haver se rebelado contra o governo federal em episódio marcante da nossa história para, finalmente, ser destruído em um incêndio que se seguiu, após ser bombardeado pelas forças governamentais, fiéis ao presidente de então.

O quartel em que eu me encontrava servindo, havia, portanto, sido criado inicialmente como um batalhão de caçadores e, pouco tempo depois, transformado em um batalhão de infantaria; porém, como incorporara às atividades daquele antigo regimento extinto, continuou a ser chamado pela denominação de regimento, embora, volto a dizer, fosse apenas um batalhão.  Aquele batalhão de infantaria, no ano de 1944, havia fornecido inúmeros militares para compor uma Força Expedicionária Brasileira que lutou em território europeu durante a Segunda Guerra Mundial.

Os militares do batalhão, logo após o Brasil haver declarado guerra às Potências do Eixo, haviam sido enviados para uma nova unidade na Vila Militar de Deodoro, onde tinham participado de treinamentos conjuntos com outros militares de diversas regiões do país, e, a seguir, foram embarcados em navios norte-americanos com destino ao porto de Nápoles, na Itália. Muitos daqueles antigos militares, oriundos do referido batalhão, haviam falecido em combates no Teatro de Guerra Europeu e não retornaram ao nosso país com o fim do conflito mundial. Seus corpos ficaram, durante vários anos, sepultados no Cemitério Militar de Pistóia, na Itália.

Com a reurbanização da Praia do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, seus despojos puderam ser trasladados para o nosso país e ficaram guardados no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra, ali construído para tal; onde, além de serem prestadas homenagens aos mortos que naquele local estão sepultados, também são prestadas homenagens aos desaparecidos em combate, cujos restos mortais jamais puderam ser localizados.

O episódio a que me referi, no início, ocorreu já faz muitos anos (lembro ao leitor que eu tinha somente dezenove anos naquela época e tenho, atualmente, trinta e dois), em um período de inverno intenso, no qual, durante as madrugadas, descia sobre o quartel uma forte cerração.

Encontrava-me, naquele dia, de serviço de guarda junto ao paiol de armas e munições, localizado em área erma em meio a um alto capinzal com algumas esparsas árvores de grande porte.

Meu turno de sentinela iniciara-se às três horas da madrugada. O serviço transcorrera sem alteração; muito embora, após tê-lo assumido, tive a sensação de estar sendo observado de uma distância bem próxima, por vários olhos escondidos em meio ao capinzal. Por diversas vezes notei que o mato ondulava, como se pessoas se movessem em seu interior, em que pese não estar ventando naquela ocasião. Cheguei mesmo a engatilhar o meu fuzil, abaixar-me e ficar esperando um ataque vindo daquela direção.

Com o transcorrer do tempo, nada tendo acontecido, julguei ter sido tudo aquilo fruto da minha imaginação, principalmente, devido à pesada cerração que não permitia a visão de mais do que alguns poucos metros à frente.

Faltando cerca de vinte minutos para a chegada da guarda que traria meu substituto, percebi o ruído de passos, em cadência, aproximando-se do paiol onde me encontrava.

Imaginei que meu relógio deveria estar atrasado e o meu substituto já estivesse sendo conduzido pela guarda, naquele momento, para aquele posto no paiol. Após alguns segundos, durante os quais me preparei para ser substituído, avistei, saindo de dentro da bruma, a guarda que marchava em minha direção comandada por um sargento.

Tendo ela parado a uma pequena distância de onde eu me encontrava, dirigi-me ao seu encontro para ocupar, na formatura, o lugar do soldado que me substituiria. Todavia, conforme eu me aproximava da tropa, nenhum militar saiu do seu lugar e nenhuma voz de comando foi dada. A guarda permanecia imóvel e silenciosa.

Chegando bem próximo dela, percebi que seus uniformes eram um pouco diferentes daqueles que usávamos no quartel. Todos os componentes da guarda pareciam bem mais velhos, sendo que alguns possuíam ataduras que envolviam algumas partes de seus corpos e apresentavam as roupas manchadas de sangue. As armas que portavam eram de modelos antigos, não sendo iguais àquelas que usávamos no quartel, na ocasião.

Imediatamente uma sensação de frio e terror percorreu-me todo o corpo. Embora desejasse sair correndo dali, minhas pernas não me obedeciam. Foi então que, olhando as faces daqueles homens, percebi que não conseguia vislumbrar seus olhos. Era como se no local onde eles deveriam estar não houvesse nada; mas, apenas, dois buracos vazios. Repentinamente, o comandante da guarda disse para seus homens, em voz baixa, alguma coisa que não compreendi.

Os componentes da guarda seguiram, então, rumo à porta do paiol, onde entraram após havê-la quebrado. Alguns passaram por dentro da parede, como se ela não existisse.

Após permanecerem alguns minutos lá dentro, seus integrantes saíram pelo mesmo local transportando várias caixas de munição, granadas e algumas armas leves, que se encontravam armazenadas naquele paiol. Eu assistia a tudo aquilo sem poder me mover, sem nenhuma reação, com o coração batendo forte, parecendo querer pular para fora do peito.

A guarda, sempre marchando sob o comando do sargento, dirigiu-se, então, para o interior do capinzal, onde logo desapareceu em meio à bruma.

Consultando o relógio, constatei que ainda faltavam os mesmos vinte minutos para a chegada da guarda que traria meu substituto; isto é, parecia que o tempo havia parado e aquilo tudo fora vivido em outra dimensão espaço-temporal. Ainda pensava em tudo aquilo que havia presenciado, quando, pouco depois, percebi novo ruído de passos se aproximando. Ao olhar o relógio, novamente, vi que haviam se passado vinte minutos e, fixando os olhos nas figuras que chegavam, percebi que aquela era, realmente, a guarda do quartel trazendo o substituto, que era meu colega da Primeira Companhia.

O sargento comandante da guarda, após uma vistoria na porta do paiol, me perguntou o que havia ocorrido. Após relatar-lhe, ainda sob uma forte emoção, tudo aquilo que havia presenciado, eu observei quando ele retirou do seu cinturão, calmamente, um par de algemas com as quais me algemou, tendo antes tomado o meu fuzil.

Fui conduzido pela guarda até uma cela no interior do quartel, onde passei detido aquele fim de noite. Na manhã seguinte, levaram-me à presença do comandante da unidade, a quem, novamente, relatei tudo o que havia presenciado naquela fatídica noite.

Por mais que descrevesse, fielmente, tudo o que havia presenciado, notava que as pessoas presentes ao meu depoimento pareciam não acreditar no que eu dizia. Ninguém se dava conta da real existência daqueles espectros que haviam visitado o quartel, retirado todas as armas, granadas e munições do paiol para, em seguida, desaparecer para sempre no interior do capinzal.

Meus pais foram conduzidos àquela Organização Militar e, tendo sido levados até a cela onde eu me encontrava, pediram-me que contasse apenas a verdade, que não escondesse nada nem tentasse proteger a ninguém.

Jurei-lhes que tudo aquilo que eu dizia era, absolutamente, verdadeiro. Afirmei-lhes que aqueles espectros, certamente, haviam retornado dos campos de batalha da Itália onde haviam tombado e, não tendo ainda se dado conta da realidade de suas mortes, em uma derradeira visita ao antigo quartel no qual haviam servido, buscavam obter mais armas e munições para prosseguir com sua incansável luta contra o inimigo nazifascista, já agora, entretanto, combatendo-o no território da morte.

Na tarde daquele mesmo dia, meus dois primos, Claudinei e Roberval, que também serviam naquele mesmo quartel, foram colocados presos na mesma cela onde eu me encontrava. Logo após me abraçarem, disseram baixinho em meu ouvido, demonstrando medo e desânimo, que eu podia parar de contar àquela estória que havíamos combinado antecipadamente, pois o comandante do quartel já havia descoberto as caixas de munição, as granadas e as armas que, durante meu horário de guarda no paiol, nós três havíamos retirado arrombando a porta, protegidos pela noite, pela bruma e pelo frio, e escondido na mala do carro do meu primo, Claudinei, estacionado perto da cantina do quartel.

As autoridades militares haviam chegado ao carro do primo e feito a descoberta das armas e munições que roubáramos, em decorrência de um rastro de sangue, de ataduras ensanguentadas e de várias munições espalhadas, que, vindo desde o paiol das armas e munições, seguia pelo chão no exato rumo do porta-malas do veículo. Parecia até (segundo disseram alguns companheiros que haviam visto aquele rastro) que uma tropa, com vários militares feridos e carregando vários caixotes pesados, havia feito aquele trajeto na noite anterior.

Durante os meses em que estive preso na cadeia daquele batalhão, aguardando o julgamento que me conduziu, finalmente, a um presídio militar onde passei cinco longos anos, nas madrugadas frias em que a cerração caía sobre o quartel, da janela da minha cela eu, por várias vezes, pude observar, solitário, uma guarda com uniformes e armas diferentes, cujos integrantes, cheios de ataduras, marchavam em direção ao velho paiol, agora já desativado e vazio, depois daquele infeliz episódio de que participei.

Conto escrito por
Jober Rocha

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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