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31 de
outubro de 2020. 20h30. Periferia da cidade de São Paulo. Bar do Cornélio.
“Bar”,
na verdade, era um elogio: tratava-se de um galpão imundo com mesas
improvisadas e que vendia cachaça barata aos moradores do bairro. Ao menos
vendia até uma semana atrás. Hoje, o lugar estava quase vazio – nem mesmo
Cornélio estava lá. Apenas um estranho grupo encontrava-se sentado nos fundos
do “bar”, bebericando suas bebidas. Tinham chegado há algum tempo, mas mal
começaram o diálogo, já que, a princípio, ocuparam-se com algumas garrafas de
uísque e vinhos de má qualidade.
–
Confesso que fiquei surpreso com esse convite. Nunca fomos de nos reunir nem
nada do tipo e sempre achei essas coisas um grande desperdício de tempo. Deram
sorte que estava pela região e que tinha algumas horas ociosas antes do meu
compromisso – disse um homem moreno musculoso e bem-vestido, entornando uma
caneca de cerveja.
– Sim,
foi um convite insólito, mas até que veio bem a calhar. Não é como se eu
tivesse algo melhor a fazer – retrucou um estranho ser diminuto que, de tão
desfigurado, poderia ser um velho ou uma velha índia.
– Eu os
convidei aqui porque precisávamos conversar. Precisávamos ter feito esta
reunião há muitos anos – comentou um rapaz negro deficiente. – Vocês sabem que
dia é hoje, certo?
– Dia
das bruxas? Ou seu dia, Saci? Não me
diga que está com vontade de afogar as mágoas – o homem musculoso debochou.
– Nada
disso, Boto. A questão é bem outra: vocês viram os cartazes dos últimos filmes,
séries e livros? Há histórias de vampiros, de fantasmas, de demônios, de
bruxas, de monstros, mas nada sobre nós. Ninguém sequer lembra que nós
existimos…
– Viu,
só? Era disso que eu estava falando: fomos trazidos aqui para te ouvir se
lamentar – resmungou o homem, levantando-se, mal-humorado.
–
Espere, não vá embora. Primeiro, deixe-me dizer o que pretendo… veja como as
coisas são tão ridículas: estamos aqui, em um bar fechado, cujo dono saiu para
viajar para conseguir visitar o túmulo dos parentes nordestinos no dia de
finados. Estamos na periferia de uma cidade, ninguém está nem aí para nós e
este território todo já foi nosso e fazíamos o que bem queríamos. Agora, as
pessoas assistem histórias românticas e quase eróticas sobre vampiros, achando
que são as únicas criaturas sobrenaturais que existem – comentou o rapaz negro,
segurando o Boto pela manga do casaco.
– “Quase
eróticas”? Você sabe o que os vampiros são? São mortos que tomam sangue, só
isso. Deixe os humanos cretinos terem suas diversões com uma lenda cretina
dessas. Eu, por meu lado, divirto-me muito mais: posso ter as mulheres que
quero, não donzelas caucasianas virgens (um bem em extinção, a não ser que os
vampiros, além de mortos, sejam pedófilos). E veja só: com aplicativos como
esse, meu trabalho está facilitado – disse, apontando para seu celular. – Marco
encontros, envolvo-me com quantas quero, sem perder tempo com seduções, e sumo.
Como poderia ser melhor do que isso?
– Parece
que você se deu bem com as novas tecnologias e as mudanças da atualidade –
disse um dos membros do estranho grupo, um anão deficiente, com os pés tortos.
– Mas é
claro que sim. Adaptação é a chave do negócio: posso não ter um rio limpo para
viver, mas sempre terei uma amante e um leito confortável. E posso escolher
quem quiser: mulheres casadas, estudantes colegiais, qualquer fetiche que eu
tiver. E, se quiser me divertir um pouco mais, sempre posso filmar nosso
intercurso e depois vazar na internet. Acabei com mais do que um casamento nos
últimos meses e é sempre satisfatório. Como poderia querer qualquer outra
coisa? – Explicou o Boto.
– É só
isso que você quer? Ter relações sexuais com mulheres bonitas? – Indagou o
Saci.
– Eu e o
resto dos homens que não são gays. Mesmo agora, só estou aqui porque não me
desvia de meus planos: daqui a pouco encontrarei uma moça evangélica aqui perto
e vamos nos divertir muito nesta noite. Refaço a pergunta: o que mais posso
querer? – Indagou o homem musculoso.
– Que
tal reconhecimento? – Quis saber o Saci.
– Sério?
Reconhecimento? É isso que você sempre quis, quando fazia suas traquitanas?
Como é patético! Não dou a mínima para o maldito reconhecimento. Só quero minha
satisfação, dane-se o que os outros pensam – riu o homem musculoso. – Acho,
aliás, que estou perdendo meu tempo aqui – tentou sair da mesa, mas o Saci
continuou segurando-o.
– Não é
possível que essa vida te agrade! – Desesperou-se o homem negro.
– Mas é
claro que me agrada. Por que não agradaria? E veja que não sou o único
satisfeito: o Chupa-cabra não me parece entristecido com a mudança – disse o
homem musculoso, pegando uma dose de cachaça, que estava na mesa, e se sentando
de novo.
– Issssso
éééé verdaaadeeee – disse o estranho e horrendo ser sentado à mesa, enquanto
bebia aguardente.
– Como
assim? – Perguntou o velho (ou velha) índia.
–
Ooooraaa, Caipoooora… Tive de mudaaaar um pouco minhaaaaa dieeeeta, masssss
trocando a caaaabra por boooiiisss e vacassss, tenhooo comiiiida coooomo
nuuuncaaa antessss – respondeu o bicho.
– Você
quer dizer que a pecuária extensiva está te beneficiando? – Berrou o outro anão
(o deficiente).
– Ei,
Curupira, não fique assim. Não é porque não há mais florestas por aí, nem uma
fauna rica, que teremos de sofrer – o Boto riu. – A pecuária extensiva é um
verdadeiro presente para o Chupa-cabra: centenas ou milhares de animais a um
palmo de distância. Sabendo superar as cercas e cães de guarda, o banquete está
sempre por perto. E, sabendo moderar, não há erro: um sertanejo com cinco
cabras daria a vida para impedir que um dos seus animais morresse, mas um
latifundiário? É só uma perda aceitável. Se preciso, aumentará o preço do gado
e os consumidores pagarão pelo banquete do Chupa-cabra – deu uma golada em sua
dose de bebida e riu ainda mais.
– Mas
não há mais florestas, não há mais natureza – balbuciou Curupira.
– Sinal
de que você e seu primo (ou prima) não foram bons guardiões da floresta –
continuou rindo. – Ainda deve ter uma pracinha por aqui perto. Por que você não
vai lá preservá-la? Talvez tentar fazer com que algum pichador malvado se
perca?
– Fazer
alguém se perder? Num mundo em que todos têm um GPS a tiracolo? Como fazer
isso? – Reclamou o Curupira, ébrio e irritado.
– Tem
razão. Aposto, então, que você não conseguiria ganhar dinheiro nem sendo
taxista… não poderia fazer caminhos doidos, já que todo mundo saberia que você
estava tentando se perder. Que triste, não? Ainda bem que eu uso a tecnologia
ao meu favor – o Boto riu ainda mais
alto.
– Isso
não é divertido – disse Caipora. – Não há animais, nem florestas e sempre
vivemos em sintonia com a natureza, até mesmo você.
– Eu? Eu
sou praticamente um ser psicanalítico: represento a libido. Sou universal!
Vocês é que são índios e, como tais, perderam suas terras. Seu tempo passou. De
vocês e do manquinho aqui – disse, apontando para o Saci.
– Mas
não precisa ser assim – disse o homem perneta. – As coisas podem (e devem)
mudar. Foi para isso que os chamei aqui.
– Ué,
não tinha sido só para se lamentar? – Provocou o Boto.
– Temos
de nos unir. Só assim conseguiremos ter a vida que queremos e merecemos. Esse
país era nosso antes de essas tecnologias virem para cá, antes de os filmes e
livros estrangeiros chegarem aqui… nós somos os verdadeiros donos da nação, não
devemos ser esquecidos – Saci tentou convencer os outros personagens míticos.
– Que
papo mais idiota é esse? Eu só me uno às mulheres, não a seres bizarros como
vocês. E seu maior erro foi o de não ter convidado Iara para cá. Ela, sim, sabe
usar a boca do jeito certo: não fica se lamentando ou falando, se é que me
entendem – riu o Boto, dando outro trago.
O Saci
pegou a garrafa que estava na mesa e encheu o copo de seus companheiros
novamente. Bebeu em silêncio por alguns segundos e, então, retomou a palavra:
– Você e
o Chupa-cabra estão mesmo satisfeitos com a realidade contemporânea?
– Mas é
claro que sim, aleijadinho. Novos tempos pedem novas ações, não choradeira.
Estamos prosperando mais do que nunca. E veja que o Chupa-cabra é horroroso,
então até vocês, apesar das deficiências, conseguiriam algo. Aliás, graças às
deficiências, talvez consigam algo: não estão interessados em algum emprego que
tenha cota para gente sem perna ou com pé torto? – Provocou o homem.
Saci
ignorou a provocação e virou-se para Caipora e Curupira:
– E
vocês? Certamente não estão satisfeitos com essa vida, sem ter aquilo que era
tão importante para vocês…
– Claro
que não estamos – disse Caipora. – Vivemos escondidos em terrenos baldios,
andamos por esgotos, não conseguimos fazer coisa alguma, ninguém nos teme, não
nos dão presentes. Nossa era já passou, fomos esquecidos.
– Mas é
aí que está! Não precisa ser assim. Se nos unirmos e agirmos conjuntamente,
poderíamos reverter esse quadro – disse o Saci, bebendo mais uma dose e
enchendo o copo de seus companheiros novamente.
– Não
sejam ridículos! – Berrou o Boto. – “Agirmos juntos”? Droga, aleijadinho, está
parecendo que você usou as cotas para ir à faculdade e fazer um maldito curso
de humanas. O que você propõe? Uma nota de repúdio? Discutir a questão do
gênero dos textos? Isso já passou dos limites – reclamou o Boto, tentando se
erguer da cadeira, mas perdendo o equilíbrio, já que estava ficando ébrio.
– Então
a proposta de criar um sindicato não seria bem-vinda, né? – Disse o Saci,
rindo.
O Boto o
acompanhou nas risadas e, em pouco tempo, todos da mesa estavam rindo também.
– Nós
realmente fomos chamados aqui para você se lamentar, não é? – Questionou o
Boto.
– É tudo
tão difícil… eu já fui temido, mas depois virei uma história de crianças, um
personagem de seriado infantil… isso não é justo, sabe? E quando achei que
estava no fundo do poço, eis que políticos criaram uma lei para que o dia 31 de
outubro seja meu dia: se muito, só sou lembrado nesse dia. Mas quase nada, já
que não tenho como competir com as histórias de terror estadunidenses –
comentou o homem negro, bebendo sua cachaça.
– É,
isso é o fundo do poço – riu o Boto.
– Nem
tanto quanto andar no esgoto descalço e com os pés tortos – riu o ébrio
Curupira, sendo acompanhado por todos.
– Massss
e voocêêêê, Saaacccciii? O quêê teeem feeeitooo? – Indagou o Chupa-cabra.
– É
verdade. Todos nós já falamos sobre como fomos afetados pelas novas
tecnologias. O que você tem feito nesse meio tempo, além de se lamentar? – Quis
saber Caipora.
– Ah,
nada de mais. Apenas ando por aí mendigando, fumando meu cachimbo de crack,
nada muito emocionante – dizendo isso, tomou mais um gole de sua bebida e
encheu o copo de seus companheiros novamente. – Querem ouvir algo engraçado
sobre esse bar? O dono dele não foi viajar: eu o matei semana passada, para
assumir o controle daqui. Esquartejei o corpo dele e o escondi lá na geladeira.
Todos
ficaram em silêncio por algum tempo. Depois, o Saci começou a rir
descontroladamente e os demais o acompanharam. Deram mais um trago em suas
bebidas e continuaram a rir, pois não tinham mais nada que pudesse ser feito.
Boto
olhou seu aplicativo e viu que já estava na hora de ir embora. Virou a dose que
estava no seu copo e se levantou com esforço.
– Isso
até que foi divertido, no fim das contas, mas agora tenho de partir, pois minha
garota está saindo do culto e preciso encontrá-la. Ela me esperará no motel, só
vou chegar e me divertir. Ei, querem saber? Acho que poderíamos fazer algo
assim todo ano: ver pessoas tão fracassadas como vocês faz com que eu me sinta
ainda melhor.
– Puxa,
já vai? Que pena. Realmente foi um bom encontro, acho que estava precisando
disso. Que tal mais um drinque antes de partir? – Perguntou o Saci,
levantando-se e saltitando até o balcão do bar.
Durante
o curto percurso, caiu uma vez de joelho, todos riram, mas o personagem
conseguiu se recuperar, pegar uma bebida que estava escondida atrás do balcão e
encher cinco copos. Tentou levar o drinque aos amigos, mas precisou de ajuda,
já que estava por demais ébrio. Sentou-se com os amigos novamente e brindaram
em silêncio.
Todos
viraram a bebida e a terminaram em uma golada – menos o Saci, que estava meio
caído na cadeira.
– Agora
tenho de ir… – Levantou-se o Boto, mas tombou novamente na cadeira, sentindo
seus braços e pernas sem força. – Mas o quê?
O Saci
se levantou e começou a rir, atirando seu copo ainda cheio para longe.
– O que
está acontecendo? – Perguntou Caipora, sentindo seu corpo inteiro formigar.
– Sabem
o que é engraçado? O Boto, apesar de ser um escroto, estava certo desde o
começo: a adaptação é a chave do negócio. Eu andei pesquisando muito nos
últimos tempos… os vampiros são uma lenda do leste europeu; os demônios, da
Europa Cristã; múmias, do Egito Antigo… a lista é muito mais longa do que isso,
mas possui algo em comum: em todos os locais, apenas uma lenda sobrevive e se
internacionaliza. E, nos dias de hoje, tudo tende ao monopólio, não é mesmo?
Bem, imagino, então, que eu deva me internacionalizar, pois sou o único que se
importa com isso: os demais ou levam vidas degradantes ou não possuem ambição e
estão satisfeitos com coisas pequenas. Meus planos são os mais grandiloquentes,
afinal quero o lugar que é meu por direito: quero ser temido, quero que minha
história seja contada para todos, que crianças chorem ao ouvir falar de mim.
Justamente por isso, tenho me reunido com vocês ao longo dos últimos dias dessa
semana: ontem foi a vez da Cuca, da Iara e do Negrinho do Pastoreio. Amanhã,
tenho uma reunião com o Boitatá. Até o fim da semana que vem, só sobrarei eu.
Foi bem fácil, já que a mesma técnica funciona com todos: nos embebedamos e,
por fim, na última dose, enveneno a cachaça… Sério, vocês deveriam procurar os
AA. Não tem uma lenda brasileira que não seja alcoólatra? De todo modo, não se
preocupem: não sentirão dores enquanto faço o que tenho de fazer – disse o
Saci, enquanto tirava uma faca suja de sangue de seu gorro vermelho.
O
primeiro que ele começou a cortar foi o Boto cor-de-rosa, que o olhava em
pânico. Saci pegou o celular da vítima, parou por alguns instantes e sorriu:
era melhor se apressar nos afazeres, pois teria um encontro naquela noite.
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