WEBTVPLAY ORIGINAL APRESENTA
UM DRINQUE ANTES DE PARTIR


Conto de
Eduardo Canesin




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31 de outubro de 2020. 20h30. Periferia da cidade de São Paulo. Bar do Cornélio.

“Bar”, na verdade, era um elogio: tratava-se de um galpão imundo com mesas improvisadas e que vendia cachaça barata aos moradores do bairro. Ao menos vendia até uma semana atrás. Hoje, o lugar estava quase vazio – nem mesmo Cornélio estava lá. Apenas um estranho grupo encontrava-se sentado nos fundos do “bar”, bebericando suas bebidas. Tinham chegado há algum tempo, mas mal começaram o diálogo, já que, a princípio, ocuparam-se com algumas garrafas de uísque e vinhos de má qualidade.

– Confesso que fiquei surpreso com esse convite. Nunca fomos de nos reunir nem nada do tipo e sempre achei essas coisas um grande desperdício de tempo. Deram sorte que estava pela região e que tinha algumas horas ociosas antes do meu compromisso – disse um homem moreno musculoso e bem-vestido, entornando uma caneca de cerveja.

– Sim, foi um convite insólito, mas até que veio bem a calhar. Não é como se eu tivesse algo melhor a fazer – retrucou um estranho ser diminuto que, de tão desfigurado, poderia ser um velho ou uma velha índia.

– Eu os convidei aqui porque precisávamos conversar. Precisávamos ter feito esta reunião há muitos anos – comentou um rapaz negro deficiente. – Vocês sabem que dia é hoje, certo?

– Dia das bruxas? Ou seu dia, Saci? Não me diga que está com vontade de afogar as mágoas – o homem musculoso debochou.

– Nada disso, Boto. A questão é bem outra: vocês viram os cartazes dos últimos filmes, séries e livros? Há histórias de vampiros, de fantasmas, de demônios, de bruxas, de monstros, mas nada sobre nós. Ninguém sequer lembra que nós existimos…

– Viu, só? Era disso que eu estava falando: fomos trazidos aqui para te ouvir se lamentar – resmungou o homem, levantando-se, mal-humorado.

– Espere, não vá embora. Primeiro, deixe-me dizer o que pretendo… veja como as coisas são tão ridículas: estamos aqui, em um bar fechado, cujo dono saiu para viajar para conseguir visitar o túmulo dos parentes nordestinos no dia de finados. Estamos na periferia de uma cidade, ninguém está nem aí para nós e este território todo já foi nosso e fazíamos o que bem queríamos. Agora, as pessoas assistem histórias românticas e quase eróticas sobre vampiros, achando que são as únicas criaturas sobrenaturais que existem – comentou o rapaz negro, segurando o Boto pela manga do casaco.

– “Quase eróticas”? Você sabe o que os vampiros são? São mortos que tomam sangue, só isso. Deixe os humanos cretinos terem suas diversões com uma lenda cretina dessas. Eu, por meu lado, divirto-me muito mais: posso ter as mulheres que quero, não donzelas caucasianas virgens (um bem em extinção, a não ser que os vampiros, além de mortos, sejam pedófilos). E veja só: com aplicativos como esse, meu trabalho está facilitado – disse, apontando para seu celular. – Marco encontros, envolvo-me com quantas quero, sem perder tempo com seduções, e sumo. Como poderia ser melhor do que isso?

– Parece que você se deu bem com as novas tecnologias e as mudanças da atualidade – disse um dos membros do estranho grupo, um anão deficiente, com os pés tortos.

– Mas é claro que sim. Adaptação é a chave do negócio: posso não ter um rio limpo para viver, mas sempre terei uma amante e um leito confortável. E posso escolher quem quiser: mulheres casadas, estudantes colegiais, qualquer fetiche que eu tiver. E, se quiser me divertir um pouco mais, sempre posso filmar nosso intercurso e depois vazar na internet. Acabei com mais do que um casamento nos últimos meses e é sempre satisfatório. Como poderia querer qualquer outra coisa? – Explicou o Boto.

– É só isso que você quer? Ter relações sexuais com mulheres bonitas? – Indagou o Saci.

– Eu e o resto dos homens que não são gays. Mesmo agora, só estou aqui porque não me desvia de meus planos: daqui a pouco encontrarei uma moça evangélica aqui perto e vamos nos divertir muito nesta noite. Refaço a pergunta: o que mais posso querer? – Indagou o homem musculoso.

– Que tal reconhecimento? – Quis saber o Saci.

– Sério? Reconhecimento? É isso que você sempre quis, quando fazia suas traquitanas? Como é patético! Não dou a mínima para o maldito reconhecimento. Só quero minha satisfação, dane-se o que os outros pensam – riu o homem musculoso. – Acho, aliás, que estou perdendo meu tempo aqui – tentou sair da mesa, mas o Saci continuou segurando-o.

– Não é possível que essa vida te agrade! – Desesperou-se o homem negro.

– Mas é claro que me agrada. Por que não agradaria? E veja que não sou o único satisfeito: o Chupa-cabra não me parece entristecido com a mudança – disse o homem musculoso, pegando uma dose de cachaça, que estava na mesa, e se sentando de novo.

– Issssso éééé verdaaadeeee – disse o estranho e horrendo ser sentado à mesa, enquanto bebia aguardente.

– Como assim? – Perguntou o velho (ou velha) índia.

– Ooooraaa, Caipoooora… Tive de mudaaaar um pouco minhaaaaa dieeeeta, masssss trocando a caaaabra por boooiiisss e vacassss, tenhooo comiiiida coooomo nuuuncaaa antessss – respondeu o bicho.

– Você quer dizer que a pecuária extensiva está te beneficiando? – Berrou o outro anão (o deficiente).

– Ei, Curupira, não fique assim. Não é porque não há mais florestas por aí, nem uma fauna rica, que teremos de sofrer – o Boto riu. – A pecuária extensiva é um verdadeiro presente para o Chupa-cabra: centenas ou milhares de animais a um palmo de distância. Sabendo superar as cercas e cães de guarda, o banquete está sempre por perto. E, sabendo moderar, não há erro: um sertanejo com cinco cabras daria a vida para impedir que um dos seus animais morresse, mas um latifundiário? É só uma perda aceitável. Se preciso, aumentará o preço do gado e os consumidores pagarão pelo banquete do Chupa-cabra – deu uma golada em sua dose de bebida e riu ainda mais.

– Mas não há mais florestas, não há mais natureza – balbuciou Curupira.

– Sinal de que você e seu primo (ou prima) não foram bons guardiões da floresta – continuou rindo. – Ainda deve ter uma pracinha por aqui perto. Por que você não vai lá preservá-la? Talvez tentar fazer com que algum pichador malvado se perca?

– Fazer alguém se perder? Num mundo em que todos têm um GPS a tiracolo? Como fazer isso? – Reclamou o Curupira, ébrio e irritado.

– Tem razão. Aposto, então, que você não conseguiria ganhar dinheiro nem sendo taxista… não poderia fazer caminhos doidos, já que todo mundo saberia que você estava tentando se perder. Que triste, não? Ainda bem que eu uso a tecnologia ao meu favor  – o Boto riu ainda mais alto.

– Isso não é divertido – disse Caipora. – Não há animais, nem florestas e sempre vivemos em sintonia com a natureza, até mesmo você.

– Eu? Eu sou praticamente um ser psicanalítico: represento a libido. Sou universal! Vocês é que são índios e, como tais, perderam suas terras. Seu tempo passou. De vocês e do manquinho aqui – disse, apontando para o Saci.

– Mas não precisa ser assim – disse o homem perneta. – As coisas podem (e devem) mudar. Foi para isso que os chamei aqui.

– Ué, não tinha sido só para se lamentar? – Provocou o Boto.

– Temos de nos unir. Só assim conseguiremos ter a vida que queremos e merecemos. Esse país era nosso antes de essas tecnologias virem para cá, antes de os filmes e livros estrangeiros chegarem aqui… nós somos os verdadeiros donos da nação, não devemos ser esquecidos – Saci tentou convencer os outros personagens míticos.

– Que papo mais idiota é esse? Eu só me uno às mulheres, não a seres bizarros como vocês. E seu maior erro foi o de não ter convidado Iara para cá. Ela, sim, sabe usar a boca do jeito certo: não fica se lamentando ou falando, se é que me entendem – riu o Boto, dando outro trago.

O Saci pegou a garrafa que estava na mesa e encheu o copo de seus companheiros novamente. Bebeu em silêncio por alguns segundos e, então, retomou a palavra:

– Você e o Chupa-cabra estão mesmo satisfeitos com a realidade contemporânea?

– Mas é claro que sim, aleijadinho. Novos tempos pedem novas ações, não choradeira. Estamos prosperando mais do que nunca. E veja que o Chupa-cabra é horroroso, então até vocês, apesar das deficiências, conseguiriam algo. Aliás, graças às deficiências, talvez consigam algo: não estão interessados em algum emprego que tenha cota para gente sem perna ou com pé torto? – Provocou o homem.

Saci ignorou a provocação e virou-se para Caipora e Curupira:

– E vocês? Certamente não estão satisfeitos com essa vida, sem ter aquilo que era tão importante para vocês…

– Claro que não estamos – disse Caipora. – Vivemos escondidos em terrenos baldios, andamos por esgotos, não conseguimos fazer coisa alguma, ninguém nos teme, não nos dão presentes. Nossa era já passou, fomos esquecidos.

– Mas é aí que está! Não precisa ser assim. Se nos unirmos e agirmos conjuntamente, poderíamos reverter esse quadro – disse o Saci, bebendo mais uma dose e enchendo o copo de seus companheiros novamente.

– Não sejam ridículos! – Berrou o Boto. – “Agirmos juntos”? Droga, aleijadinho, está parecendo que você usou as cotas para ir à faculdade e fazer um maldito curso de humanas. O que você propõe? Uma nota de repúdio? Discutir a questão do gênero dos textos? Isso já passou dos limites – reclamou o Boto, tentando se erguer da cadeira, mas perdendo o equilíbrio, já que estava ficando ébrio.

– Então a proposta de criar um sindicato não seria bem-vinda, né? – Disse o Saci, rindo.

O Boto o acompanhou nas risadas e, em pouco tempo, todos da mesa estavam rindo também.

– Nós realmente fomos chamados aqui para você se lamentar, não é? – Questionou o Boto.

– É tudo tão difícil… eu já fui temido, mas depois virei uma história de crianças, um personagem de seriado infantil… isso não é justo, sabe? E quando achei que estava no fundo do poço, eis que políticos criaram uma lei para que o dia 31 de outubro seja meu dia: se muito, só sou lembrado nesse dia. Mas quase nada, já que não tenho como competir com as histórias de terror estadunidenses – comentou o homem negro, bebendo sua cachaça.

– É, isso é o fundo do poço – riu o Boto.

– Nem tanto quanto andar no esgoto descalço e com os pés tortos – riu o ébrio Curupira, sendo acompanhado por todos.

– Massss e voocêêêê, Saaacccciii? O quêê teeem feeeitooo? – Indagou o Chupa-cabra.

– É verdade. Todos nós já falamos sobre como fomos afetados pelas novas tecnologias. O que você tem feito nesse meio tempo, além de se lamentar? – Quis saber Caipora.

– Ah, nada de mais. Apenas ando por aí mendigando, fumando meu cachimbo de crack, nada muito emocionante – dizendo isso, tomou mais um gole de sua bebida e encheu o copo de seus companheiros novamente. – Querem ouvir algo engraçado sobre esse bar? O dono dele não foi viajar: eu o matei semana passada, para assumir o controle daqui. Esquartejei o corpo dele e o escondi lá na geladeira.

Todos ficaram em silêncio por algum tempo. Depois, o Saci começou a rir descontroladamente e os demais o acompanharam. Deram mais um trago em suas bebidas e continuaram a rir, pois não tinham mais nada que pudesse ser feito.

Boto olhou seu aplicativo e viu que já estava na hora de ir embora. Virou a dose que estava no seu copo e se levantou com esforço.

– Isso até que foi divertido, no fim das contas, mas agora tenho de partir, pois minha garota está saindo do culto e preciso encontrá-la. Ela me esperará no motel, só vou chegar e me divertir. Ei, querem saber? Acho que poderíamos fazer algo assim todo ano: ver pessoas tão fracassadas como vocês faz com que eu me sinta ainda melhor.

– Puxa, já vai? Que pena. Realmente foi um bom encontro, acho que estava precisando disso. Que tal mais um drinque antes de partir? – Perguntou o Saci, levantando-se e saltitando até o balcão do bar.

Durante o curto percurso, caiu uma vez de joelho, todos riram, mas o personagem conseguiu se recuperar, pegar uma bebida que estava escondida atrás do balcão e encher cinco copos. Tentou levar o drinque aos amigos, mas precisou de ajuda, já que estava por demais ébrio. Sentou-se com os amigos novamente e brindaram em silêncio.

Todos viraram a bebida e a terminaram em uma golada – menos o Saci, que estava meio caído na cadeira.

– Agora tenho de ir… – Levantou-se o Boto, mas tombou novamente na cadeira, sentindo seus braços e pernas sem força. – Mas o quê?

O Saci se levantou e começou a rir, atirando seu copo ainda cheio para longe.

– O que está acontecendo? – Perguntou Caipora, sentindo seu corpo inteiro formigar.

– Sabem o que é engraçado? O Boto, apesar de ser um escroto, estava certo desde o começo: a adaptação é a chave do negócio. Eu andei pesquisando muito nos últimos tempos… os vampiros são uma lenda do leste europeu; os demônios, da Europa Cristã; múmias, do Egito Antigo… a lista é muito mais longa do que isso, mas possui algo em comum: em todos os locais, apenas uma lenda sobrevive e se internacionaliza. E, nos dias de hoje, tudo tende ao monopólio, não é mesmo? Bem, imagino, então, que eu deva me internacionalizar, pois sou o único que se importa com isso: os demais ou levam vidas degradantes ou não possuem ambição e estão satisfeitos com coisas pequenas. Meus planos são os mais grandiloquentes, afinal quero o lugar que é meu por direito: quero ser temido, quero que minha história seja contada para todos, que crianças chorem ao ouvir falar de mim. Justamente por isso, tenho me reunido com vocês ao longo dos últimos dias dessa semana: ontem foi a vez da Cuca, da Iara e do Negrinho do Pastoreio. Amanhã, tenho uma reunião com o Boitatá. Até o fim da semana que vem, só sobrarei eu. Foi bem fácil, já que a mesma técnica funciona com todos: nos embebedamos e, por fim, na última dose, enveneno a cachaça… Sério, vocês deveriam procurar os AA. Não tem uma lenda brasileira que não seja alcoólatra? De todo modo, não se preocupem: não sentirão dores enquanto faço o que tenho de fazer – disse o Saci, enquanto tirava uma faca suja de sangue de seu gorro vermelho.

O primeiro que ele começou a cortar foi o Boto cor-de-rosa, que o olhava em pânico. Saci pegou o celular da vítima, parou por alguns instantes e sorriu: era melhor se apressar nos afazeres, pois teria um encontro naquela noite.


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