Sinopse: Quando dois corpos são encontrados em estado de decomposição próximos à barragem que abastece a região, uma renomada investigadora da singela cidade de San Juan Holistico, no sul do Brasil, resolve interrogar uma intrigante serial killer, detenta da penitenciária feminina mais eficiente do país, mas acaba descobrindo que os segredos do seu passado obscuro podem se tornarem seus piores pesadelos.
Tentando ser forte e sangue frio, a investigadora Deborah trava um diálogo cruel com a prisioneira Rebecca, que mostra-se calculista e impiedosa com suas palavras que atingem o "eu" mais profundo da detetive, a qual precisa decidir se vai enterrar de vez os acontecimentos do passado e focar nas suas buscas ou desistir e acabar cedendo a inteligência e audácia de Rebecca Steffens.
Uma história com pitadas de suspense que beiram a loucura e as profundidades de um abismo que parece não ter volta. Seja forte, seja firme nas suas decisões ou o mundo lhe dará rasteiras para além daquilo que te assombra.
Ás de Espadas
de Marcos Vinícius da Silva
Penitenciária Feminina de San Juan Holistico - sul do Brasil - dias
atuais
A fúria, o profundo desespero e o egoísmo insensível eventualmente
se cristalizam em fantasias de vinganças violentas em uma escala que
chama a atenção. O assassinato é um dos crimes que mais podem
traumatizar uma sociedade. Embora não esteja entre os mais
cometidos, não podemos deixar de nos sentir, em certa medida,
atraídos pelos assassinos e por tudo que os rodeia. O que os leva a
cometer tal atrocidade? Como é o perfil psicológico do assassino? O
assassinato requer qualidades específicas. O que se condena não é
apenas a morte em si, mas o modo pelo qual ela foi realizada. A
maioria dos assassinatos requerem um plano bastante orquestrado. Os
assassinos geralmente não têm grande empatia e, para se aproximarem
de suas vítimas, utilizam técnicas de persuasão, sedução, entre
outras. Porém, isso tudo não é uma ciência exata. O crime é
flexível e as razões pelas quais ele é cometido só se encontram
na mente do próprio assassino.
A chuva caía incessantemente nos últimos dias e naquele final de
tarde não era diferente. O veículo preto de vidros fumê entrou no
estacionamento e parou na vaga 14 que era a última do lado esquerdo
- e única livre - fazendo com que quem quer que fosse tivesse que
atravessar todo o caminho debaixo de muita água. A investigadora
Deborah Santarém, 38 anos, loira de cabelos chanel e olhos azuis,
usava uma saia justa preta até a altura dos joelhos que mostravam o
motivo de ser sempre cortejada pelos homens por onde passava, um
corpo escultural de dar inveja à qualquer um(a). Também vestia um
terno preto por cima de uma camisa branca de gola e, pendurado no
pescoço, um cordão com o seu distintivo, maior orgulho que
carregava consigo. Quando saiu do carro logo tratou de abrir seu
guarda-chuva e saiu pisando firme pela calçada de pedra com seus
sapatos de salto alto. Imponente, elegante, uma mulher independente e
que sabia exatamente onde queria e devia chegar.
Quando passou pela porta de ferro se deparou com a precariedade
daquele lugar que há tempos não era visto pelos olhos do governo.
Paredes mal pintadas descascando, algumas rabiscadas, goteiras em
alguns pontos específicos e, atrás de um balcão de madeira caindo
aos pedaços, uma agente penitenciária travava uma guerra particular
na frente de um computador de mesa tentando ligar o sistema interno
da penitenciária. Respirou fundo, afinal precisava manter sua
concentração apenas no real motivo de ter que se deslocar até o
outro lado da cidade para estar ali naquele exato momento de um dia
tão "chato", como sua própria irmã e colega de quarto
definiu mais cedo.
San Juan Holistico era uma cidadezinha de pouco mais de cem mil
habitantes que se localizava a duzentos quilômetros de distância da
capital. Cidade de colonização espanhola e que foi a escolhida pelo
governo no passado para abrigar a maior penitenciária feminina do
Estado. Um evento grandioso na sua inauguração, mas que com o
passar dos anos foi sendo "ignorada" pelos governos que
vieram, e que começaram a passar verbas inconsistentes para a
manutenção do lugar.
Ainda assim, as detentas mais perigosas eram enviadas para San Juan
Holistico, pois a penitenciária mantinha a fama de ser a mais segura
independente da sua situação.
Deborah se aproximou do balcão onde a agente penitenciária "bufava"
diante do computador. Se apresentou e foi encaminhada por um corredor
estreito e escuro até uma sala pequena no final deste: a sala do
diretor geral da penitenciária, Afonso Nero.
Afonso, o diretor, um homem alto e robusto, de 55 anos de idade,
cabelos grisalhos e bigode, já estava à sua espera. Levantou,
cordial, com um sorriso estampado no rosto e a convidou para
sentar-se. A investigadora observou cada detalhe daquela sala pequena
e só pôde confirmar o que já imaginava: que aquele lugar, aquelas
detentas e aqueles funcionários públicos que ali atuavam eram
invisíveis aos olhos do governo. Sentou-se enquanto Afonso servia
duas xícaras de café de uma garrafa térmica. "Obrigado",
agradeceu quando ele lhe entregou.
"E então, detetive Deborah, o que te traz novamente aqui na
nossa penitenciária? Algo muito importante, creio eu. Pra vir assim
sem prévio aviso." Disse o diretor Afonso enquanto saboreava
seu café.
Deborah tomou um gole do café antes de começar a falar. Já estava
ciente da fama do diretor e não daria atenção para suas indiretas.
Afinal, o delegado da cidade tinha dado carta branca para ela diante
do assunto que se tratava.
"Acredito que o delegado Cunha tenha lhe enviado um ofício
explicando a minha vinda. Mas, eu posso muito bem lhe explicar."
Começou falando a investigadora enquanto largava a xícara sobre a
mesa do diretor. "Vou direto ao ponto. Dois corpos foram
encontrados neste final de semana próximo da barragem do Seival, em
estado avançado de decomposição. Estão neste momento no Instituto
Médico Legal e o doutor Jimenez é o responsável por buscar suas
identificações."
Afonso Nero sorriu abrindo os braços. Mostrou uma pilha de
documentos sobre sua mesa e tomou mais um gole de sua bebida.
"Eu aqui só preciso cuidar das minhas hóspedes, detetive.
Estes assuntos eu deixo pra vocês. Acredito que não posso lhe
ajudar" Respondeu o diretor.
Deborah Santarém pegou seu celular, desbloqueou e abriu a foto de
uma mulher, mais ou menos 50 anos de idade, morena clara, cabelos
cacheados e algumas rugas no rosto. Virou a tela para Afonso, que
arregalou os olhos ao ver de quem se tratava.
"Rebecca Steffens? O que tem ela? Quer dizer, sei de tudo que
ela já aprontou. Sua ficha é extensa, mas está aqui há menos de
seis meses, não tem incomodado...não entendo" Disse Afonso
surpreso com o que acabara de ver.
Deborah sorriu e guardou o celular. Tomou mais um gole do seu café,
o que para ela era o que de melhor tinha naquele lugar e naquele
momento. Se ajeitou melhor na cadeira velha desconfortável antes de
começar a falar e encarou os olhos do homem à sua frente.
Rebecca Steffens foi julgada por um júri popular e presa a cumprir
50 anos e 8 meses de prisão, acusada de ser a pior serial killer que
o Estado já presenciou. Confesso, colecionava 23 mortes, todos
jovens independente de sexo, entre 18 e 21 anos, com quem mantinha
relações sexuais após "batizar" suas bebidas e depois os
matava, desovando seus corpos em diversas partes da cidade. Porém, o
Departamento de Investigação de San Juan, sob comando do delegado
Cunha e serviços da investigadora Deborah, ainda trabalhava no
desaparecimento de um jovem e de uma jovem há dois meses, sem
sucesso. Foi quando um grupo de trabalhadores do Sistema de
Abastecimento de Água da cidade, encontrou dois corpos em estado de
decomposição próximos à Barragem do Seival, que abastece a cidade
e região.
"Eu só preciso da sua autorização para interrogar esta sua
"comportada hóspede", diretor." Disse Deborah
finalizando sua xícara de café e largando a mesma sobre a mesa.
Afonso Nero observou a perspicácia e serenidade da investigadora na
sua frente. Enrolou o bigode com os dedos pensativo por alguns
instantes e, só depois, resolveu o que fazer. Também finalizou seu
café, levantou e pediu que Deborah o acompanhasse. Ela sorriu sem
demonstrar, mas sabia que tinha dado um passo importante para ter a
chance de interrogar Rebecca Steffens.
Lado a lado diretor e investigadora atravessaram um longo e largo
corredor em direção a uma sala no final deste. Enquanto caminhavam
eram observados por diversas detentas agarradas nas grades das celas
do andar superior. Deborah também as observava e, este trajeto a fez
relembrar o estudo que fez para seu trabalho final na especialização
em psicologia criminal: o sistema carcerário brasileiro trata as
mulheres exatamente como trata os homens. E isso significa que não
lembra que elas necessitam de papel higiênico para duas idas ao
banheiro em vez de uma, que elas precisam de papanicolau, exames
pré-natais e também de absorventes internos. Era a segunda vez que
a investigadora se fazia presente naquela penitenciária e ela só
pôde ter a certeza de tudo que estudou em um passado recente, que as
penitenciárias femininas no Brasil são sujas, encardidas e escuras.
O mundo é cruel, não tem pena de ninguém e, se você acredita que
isso um dia vai mudar, Deborah sabia que era pura ilusão. Esta é a
realidade e nenhum governador, presidente, senador ou deputado vai
cumprir o que prometeu em sua campanha.
A sala era pequena e fechada com vidros em toda a parte da frente. No
centro uma mesa metálica retangular com um banco de cada lado e, ao
fundo, uma outra porta que levava para um outro segmento. Afonso Nero
abriu a porta principal e deu lado para a investigadora Deborah
passar, entrando logo em seguida e fechando a mesma. Orientou que ela
sentasse e ficasse à vontade e seguiu para o outro segmento através
da porta dos fundos sem dirigir qualquer outra palavra, deixando
Deborah com uma "pulga atrás da orelha" sem entender o que
se passava.
Não demorou mais que três minutos para o diretor Afonso retornar,
desta vez, acompanhado por uma mulher mal encarada, acima do peso,
com os cabelos cacheados bagunçados e um olhar que causaria medo em
qualquer um que resolvesse lhe encarar. Ela usava o uniforme laranja
da penitenciária e estava com as mãos algemadas à frente do corpo.
Ela era Rebecca Steffens.
Afonso Nero ordenou que a detenta sentasse no banco do outro lado da
mesa, de frente para a investigadora, que demonstrava um misto de
alívio por conseguir o que foi procurar e de tensão por aquela
mulher estar ali diante dos seus olhos. Por mais que não quisesse,
Deborah só conseguia lembrar da extensa ficha criminal de Rebecca
Steffens, a qual ela leu mais cedo e também no dia anterior.
"Rebecca, essa é a detetive Deborah Santarém. Ela precisa ter
uma conversa com você. Espero que colabore com ela, assim como tem
colaborado com todos nós" Explanou Afonso.
Rebecca apenas consentiu com a cabeça sem tirar os olhos grandes e
assustadores da mulher à sua frente. Em contraponto, a investigadora
sentia-se incomodada com aquela presença, mas precisava ser forte,
afinal, sua investigação dependia do que aquela mulher pudesse lhe
falar. Afonso encarou as duas, respirou fundo e se retirou sem
proferir mais nenhuma palavra.
A detenta acompanhou com seus olhos os movimentos do diretor Afonso
até ele bater fechando a porta principal. Então, voltou sua atenção
para a investigadora intacta na sua frente. Ajeitou-se melhor naquele
banco desconfortável e colocou as mãos algemadas sobre a mesa
metálica.
"Eu lembro de você..." Disse Rebecca arrancando um olhar
de espanto da investigadora. "Garanto que está se perguntando
como eu sei disso, não é mesmo?"
Deborah desviou seu olhar daquela mulher. Tentou concentrar sua
atenção em algum outro ponto, nem que fosse por alguns segundos.
Sentia-se incomodada, uma aflição tomou conta do seu corpo. Por
dentro se questionava de verdade como é que aquele ser poderia
conhecê-la. Foi quando Rebecca começou batucar calmamente com os
dedos sobre o metal da mesa.
"Uma investigadora famosa que nem você...uma mente tão
brilhante capaz de juntar as peças de um quebra - cabeças que
parecia ser impossível de montar, precisa ser estudada por pessoas
como eu..."
Deborah gelou por dentro e concentrou sua atenção para as palavras
de Rebecca, que parecia estar satisfeita por conseguir o que queria.
"...você sabia que muitos antes de você tentaram a sua
façanha, não é mesmo? Mas só você..."
Rebecca, mesmo algemada, apontou com o dedo indicador na direção da
investigadora e sorriu um sorriso amarelado de dar medo em qualquer
pessoa.
"...só você foi capaz de entender um pouco do que passa na
cabeça de pessoas como eu."
Rebecca se ajeitou melhor no banco. Levantou as mãos algemadas e as
levou até a escápula direita coçando-a.
"Você conseguiu prender o "colecionador de cabeças",
virou manchete em rede nacional, teve o seu nome estampado nas capas
de jornais, pousou de boa detetive. Deve ter ganho um bom aumento de
salário, não é mesmo?"
Rebecca apoiou os cotovelos na mesa metálica e inclinou o pescoço
observando melhor a mulher incrédula à sua frente.
"Pelos trajes que está usando a valorização salarial foi
admirável"
Deborah fechou os olhos por alguns segundos tentando voltar à si e
concentrar-se no real objetivo de estar ali naquele momento. Estava
sendo hipnotizada por Rebecca e agora também se questionava sobre a
origem daquela detenta, tão requintada nas suas palavras.
"Eu só preciso que você me diga uma coisa..." Deborah
falou com a voz firme tentando se impor diante daquela situação.
"Encontramos os corpos de dois jovens, um casal, na Barragem.
Estavam desaparecidos há um bom tempo e..."
Deborah pegou seu celular, abriu algum arquivo e virou a tela para a
detenta.
"...tudo leva a crer que sejam vítimas suas também, Rebecca
Steffens.
Se confirmado, sua estadia por aqui pode aumentar um pouquinho."
Rebecca encarava a tela do celular, agora com as imagens dos corpos
encontrados na tela, e sorria.
"Eu acho tão magnífico como eles ficam com o tempo...o corpo
humano é realmente perfeito, fantástico, não acha, detetive?"
Aquelas palavras, de certa forma, enojaram a investigadora, que
sentiu seu estômago embrulhar, se revirou naquele banco, mas tratou
de se manter imponente para o restante do interrogatório.
Rebecca podia sentir o cheiro do medo impregnado no corpo da
investigadora. Ela sabia, como ninguém, fazer os outros se sentirem
acuados em diferentes situações. E Deborah Santarém estava
incomodada com aquilo, tentava lá no fundo compreender o que estava
acontecendo, nunca tinha ficado assim em anos de profissão. Nem
quando prendeu "o colecionador de cabeças", um homem
extremamente frio e calculista, ficou desta forma. Se mexia naquele
banco gelado e desconfortável procurando uma melhor maneira de se
acomodar, mas tudo parecia só piorar. Enquanto isso, aquela mulher à
sua frente lhe encarava com olhos sedentos de quem à qualquer
momento poderia se desfazer das algemas, pular e agarrar seu
pescoço. Deborah sentiu um frio percorrer sua espinha e com a mão
direita massageou a região inferoposterior de sua cabeça enquanto
Rebecca sorria aquele seu sorriso amarelado intimidando cada vez mais
a experiente investigadora.
"A vida é um eterno jogo de cartas, detetive Deborah. Temos que
saber jogar, saber blefar. E é como eu sempre digo: não importa as
cartas que você tem em mão, eu sou o Às de Espadas que poderá te
colocar no fundo do poço". Disse Rebecca cada vez mais
confortável em sua posição.
Quando a investigadora Deborah Santarém prendeu, em um passado
recente, um serial killer frio e calculista, o "colecionador de
cabeças", como ficou conhecido em todo o Estado, ela virou
manchete em rede nacional e, querendo ou não, foi alvo de muita
gente. Rebecca Steffens foi presa, mas assim como aquele
"colecionador de cabeças", sempre tivera muitos
privilégios na sua estadia na penitenciária. Ela conseguiu
informações muito importantes e relevantes à respeito de Deborah
Santarém, desde a sua infância até os dias atuais e agora ela
podia usufruir destas informações frente a frente com a renomada
investigadora.
"Ainda tens muitos pesadelos, detetive? O uivo dos lobos e o
berro desnorteado dos carneirinhos durante as madrugadas ainda lhe
causam insônia?"
As questões levantadas por Rebecca embrulharam mais uma vez o
estômago da investigadora. Deborah sentiu que estava prestes a ser
derrotada nesta batalha. Levantou abruptamente do banco, se debruçou
com as mãos na grande janela de vidro e fechou os olhos respirando
profundamente. Do outro lado da vidraça o diretor Afonso conseguia
ver tudo o que se passava dentro daquela sala e Deborah sabia que ele
estava ali, embora não o visse. Repentinamente, ela abriu os olhos e
fez sinal para que ele não interrompesse, que estava tudo sob
controle. Ouviu a gargalhada de Rebecca, de quem os olhos lhe
devoravam a cada movimento, puxou o ar dos seus pulmões com toda a
sua força e se virou para a detenta.
"Calma, detetive. Sente-se novamente." Disse Rebecca antes
que Deborah pudesse proferir alguma palavra.
A investigadora se recompôs. Passou as mãos no cabelo chanel e
sentou mais uma vez de frente para aquela mulher que estava lhe
tirando do sério.
"Estamos aqui para falar de você. Dos teus crimes. Das tuas
atrocidades. Da sua falta de consideração com os familiares das
vítimas e com toda a sociedade."
Rebecca apenas a observava. Sabia causar sentimentos de raiva à seus
adversos sem precisar abrir a boca. E quando abria, conseguia atingir
as feridas mais profundas.
"Eles nunca param, não é mesmo?" Questionou Rebecca
arrancando um olhar de dúvida na investigadora. "Tô falando
dos uivos e berros. Eles vem e vão, não é? Eles estão aí dentro
da tua cabeça para te lembrar de onde você veio." Complementou
a detenta.
E estas palavras entraram na mente da investigadora que, por alguns
instantes, retornou ao seu passado distante, quando ainda era uma
menininha serelepe correndo descalça nos campos verdes da fazenda
onde morava com os pais e o irmão mais velho. Mais precisamente na
fria noite de inverno do dia 24 de julho de 1993, quando ela com
apenas 10 anos de idade presenciou cenas que ficariam marcadas para
sempre.
"Você ainda acorda no meio da noite, não é? Admita detetive.
A imagem do seu pai jogando os lobos para dentro da ala dos
carneirinhos e se satisfazendo com aquela sangria deslavada ainda lhe
atormenta. E depois, o que ele fazia mesmo? Ahhh, ele abria a
porteira para que os lobos, com suas bocas cheias de sangue, fossem
para as colinas mais altas e ficava ali se deliciando com as sobras.
Ahhhh, ele era um devorador de carneirinhos também, não é mesmo?
Ele era o líder da alcateia." Rebecca falou fazendo algumas
lágrimas escorrerem pela face corada da investigadora.
E então os olhos de Deborah Santarém se encheram de lágrimas. Ela
encarou Rebecca sem esboçar reação por alguns instantes, depois
levantou abruptamente e se retirou daquela sala batendo a porta. Do
lado de fora foi contida por Afonso Nero que observava toda a
situação. Ele colocou as mãos nos ombros da investigadora e a fez
lhe encarar.
"Ela não dá trabalho algum aqui dentro porque todas as
detentas a respeitam e evitam chegar perto. As poucas que tentaram no
início sentiram na pele que não poderiam lidar com ela. Ela entra
na mente de qualquer um. Se você não for forte o suficiente eu
sugiro que deixe assim mesmo, detetive. Desista."
As palavras de Afonso soaram como uma afronta, um desafio para
Deborah. Ela respirou fundo, se recompôs e limpou os olhos
lacrimejados.
"Eu só preciso de um copo d'água". Disse a investigadora
desviando de Afonso e indo até o bebedouro contra a parede.
Enquanto Deborah Santarém pegava um copo no suporte e o enchia no
bebedouro, Afonso se parou diante da janela de vidro observando mais
uma vez a detenta Rebecca lá dentro. Ela sorria diabolicamente e
batucava com os dedos sobre a mesa.
Alguns minutos depois a investigadora Deborah retornou para aquela
sala. Parecia estar mais centrada no que devia fazer. Sentou à
frente de Rebecca sempre de cabeça erguida, lhe encarando. A detenta
continuava sorrindo de forma diabólica quando, de repente, pigarreou
alto e forte por alguns segundos.
"Eu vou te ajudar, detetive. Você quer saber se os corpos
daquele casalzinho também são obras minhas, não é? Se eu te
disser que sim, você aceita jogar comigo?"
Deborah relutou por alguns instantes, precisava de todas as
informações referentes aos corpos encontrados, mas sabia que não
podia cair "no joguinho fácil" de Rebecca.
"Mesmo sabendo que minha estada por aqui pode se tornar maior,
eu tô disposta a correr o risco e vou lhe dizer tudo que você quer
saber, detetive. Mas..."
A detenta se debruçou sobre a mesa, seu olhar sanguinário, seu
sorriso cada vez mais diabólico, pareciam penetrar nas entranhas
mais profundas da investigadora que permaneceu imóvel em seus
pensamentos e não desviou o olhar desta vez.
"Mas o quê? Você acha que tá em plenas condições de exigir
algo aqui dentro, Rebecca?" Perguntou firmemente a investigadora
Deborah.
A detenta soltou uma alta gargalhada que chegou ecoar pela pequena
sala.
"Eu dou as cartas por aqui, detetive" Respondeu Rebecca
voltando a ficar séria. "Me diz uma coisa: qual foi a sensação
de ver seu pai com a boca cheia de sangue daqueles carneirinhos pela
primeira vez? Medo, angústia, nojo?" E da seriedade Rebecca
soltou mais uma gargalhada no final erguendo ambos os braços com as
mãos algemadas para o alto deixando à vista sua tatuagem no seu
tríceps braquial, uma carta de baralho, um Às de Espadas com sangue
escorrendo.
Os seriais killers vivem em uma zona cinzenta, fronteiriça, entre a
loucura e a normalidade. Nascem, crescem e morrem com essa sina. Eles
têm uma deformidade de caráter que os torna pessoas consideradas
como de "altíssima periculosidade". Não conhecem o
remorso, não conhecem o significado da palavra arrependimento.
A investigadora Deborah Santarém sabia exatamente onde estava se
metendo. Na verdade já tinha passado por situações semelhantes,
principalmente quando esteve à frente do caso do "colecionador
de cabeças". Aliás, este caso veio à sua memória depois das
últimas palavras de Rebecca. Ela voltou lá atrás em um devaneio
sem consistência. Se viu em um escritório escuro com suas anotações
em mãos.
Há um tempo atrás
Escritório da investigadora Deborah Santarém
A detetive loira de cabelo chanel, usando apenas uma camisola
transparente e sem maquiagem, adentra seu escritório particular no
segundo andar de sua residência. Dá um tapa no interruptor
acendendo a luz amarelada e dirige-se até a mesa próxima à janela.
Senta sobre as pernas torneadas e começa vasculhar dentre diversas
anotações espalhadas.
"TSANTSAS - REGIÃO AMAZÔNICA - COLECIONADOR DE CABEÇAS
O título em letras de forma lhe chamou a atenção. E diante de
tanta repercussão que o caso teve e que levou-a a um reconhecimento
enorme na Delegacia, Deborah resolveu ler novamente aquelas
anotações, uma vez que o sono tinha lhe abandonado.
"Constituía-se em uma forma especial de conservação
cadavérica, utilizada por aborígenes, com a finalidade de manter as
cabeças de seus inimigos como troféu de guerra ou talismã. Essas
cabeças, além de conservadas apresentavam-se com acentuada
diminuição do seu volume. Tal redução se devia à retirada de
todos os ossos do crânio e da face, com o cuidado de manter a pele
íntegra. Era realizado um corte na parte posterior do pescoço por
onde retiravam os ossos e a bolsa de pele da cabeça era colocada em
água fervente com ervas por cerca de vinte minutos, o que diminuía
em cerca da metade do seu volume. Eles conseguiram encolher e
endurecer a pele da face e da cabeça, colocando nessa espécie de
saco de pele humana uma pedra quente e recheio de areia que lhe
servia de molde, o que ia diminuindo pouco a pouco o seu tamanho..."
De volta à Sala de Interrogatório
Deborah Santarém retornou dos seus devaneios com o chamado da
detenta à sua frente. Ela precisou inclinar-se e chamar três vezes
por "detetive? detetive? detetive?" até que a
investigadora voltasse para a realidade.
"Estava longe, detetive?" Perguntou Rebecca.
"Você conheceu o "colecionador de cabeças?"
Questionou Deborah.
"Ora, ora. Também estudei os passos daquele lá. Homem
perspicaz, inteligente demais, você não acha?"
"Ele era um psicopata infernal!" Respondeu Deborah.
"Ora, detetive. No fundo, no fundo, todos nós carregamos um
lado psicopata".
"Eu não sou!" Gritou alto a investigadora. "Ele era.
Você é..." Mesmo algemada Rebecca apontou o dedo na direção
da investigadora.
"O seu pai era! Ou será que ainda é? Ele foi desta pra melhor
ou você o escondeu em algum lugar? Você ainda o visita, detetive?
Penteia seus cabelos, faz a sua barba? Porque pelo que eu sei ele
tinha enlouquecido de vez, não é? Ou foi o que vocês armaram para
ele não vir parar em um lugar como este aqui?"
As palavras de Rebecca colocaram Deborah novamente para baixo. Se a
renomada investigadora tinha um ponto fraco, este era o seu passado
obscuro, principalmente quando se tratava deste período com o pai.
Levantou tentando conter o choro. Deu um murro com a mão direita
sobre a mesa e saiu porta agora esbravejando. O diretor Afonso Nero
ainda tentou parar e acalmar a investigadora mais uma vez...em vão.
Ela o empurrou e seguiu seu caminho. Sem entender nada, ele adentrou
a sala com cara de poucos amigos, se debruçou sobre a mesa e apontou
o dedo bem no meio da testa de Rebecca.
"Você é uma vadia louca! Eu ainda te defendi dizendo que não
causava problema algum aqui dentro. E agora, olha o que você fez?"
Rebecca apenas sorriu.
"Ela é uma detetive muito durona, mas só até que se encontre
o seu ponto fraco. Todos temos um, sabia diretor?"
Afonso Nero não deu atenção para aquelas palavras. Levantou a
detenta pelo braço e a conduziu de volta para a cela.
Dois dias depois
Clínica Psiquiátrica Gertrudes Fogaça
A investigadora estacionou seu carro em frente à bonita entrada da
clínica. Olhou para aquela fachada, saiu do veículo e subiu cerca
de trinta degraus de uma escada íngreme cercada de árvores altas
até a entrada daquele lugar.
Foi recebida por um jovem e simpático enfermeiro que a conduziu até
o segundo andar abrindo a porta de um quarto no final do corredor
dando-lhe passagem para entrar. "Fique à vontade, Deborah. Ele
sentiu sua falta todo esse tempo", disse o enfermeiro antes de
voltar para suas tarefas.
No interior do quarto branco e praticamente sem mobília, estava um
senhor sentado em uma cadeira de rodas diante da janela aberta
olhando o topo das árvores e os pássaros que pousavam e cantavam
nos galhos.
"Papai?" Disse Deborah se aproximando e lhe abraçando,
chorando logo em seguida.
No dia seguinte
A chuva voltava a cair incessantemente em toda a região. A
investigadora Deborah Santarém, cabelos mal penteados e maquiagem
borrada de tanto chorar, dirigia sem destino por uma rodovia que
cortava a cidade. A chuva ficava mais forte a cada quilômetro que
ela se movia. Chegou na parte alta e estacionou no acostamento da
ponte sobre o rio Damares. Desceu do veículo e não se importou com
toda aquela água gelada que caía, foi até o parapeito e encarou o
rio lá embaixo. Atrás dela os carros passavam a toda velocidade
parecendo nem se importar com aquela mulher parada na chuva debruçada
no peitoril. Foi quando um estrondoso raio cortou o céu que Deborah
assustou-se e virou para a rodovia. Achou que estava enlouquecendo,
pois cada carro que passava ela avistava o rosto da detenta Rebecca
jogando cartas que caíam pelo chão molhado. Olhou então, para sua
volta, e viu vários "Às de Espadas" espalhados. Colocou
ambas as mãos na cabeça em sinal de desespero, subiu no parapeito,
abriu os braços lateralmente olhando para o céu escuro e...
...deixou seu corpo cair em direção ao rio Damares enquanto várias
cartas a seguiam até seu corpo chocar-se com a forte correnteza.
Conto escrito por
Marcos Vinícius da Silva
Produção Four Elements
Marcos Vinícius da Silva
Melqui Rodrigues
Hugo Martins
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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