Palavras Obscuras - 1x08 - Misoginia (Traumas)


Sinopse: Quando crimes cruéis de um assassino em série, que mata mulheres e as violenta sexualmente, se tornam a principal investigação do Departamento de Polícia local, um experiente delegado precisa encontrar o malfeitor e levar justiça àquelas vítimas tendo como principal vestígio para solucionar o problema, um exemplar de Bíblia que destaca trechos cruciais no caso. Um conto que mostra até que ponto o ser humano pode chegar e nos ensina que ninguém é inocente, até que se prove ao contrário...nem os homens do Senhor.



Misoginia (Traumas)
de João Baptista dos Santos

 

Do púlpito, o pastor impecavelmente vestido, pregava para os fiéis. Parecia saído do banho naquele momento, o cabelo bem penteado brilhava, refletindo as luzes do templo no gel fixador.

Entre os crentes, senhor de meia idade, a barriga proeminente esticando a camisa social, os olhos fixos no pregador. Parecia deslocado naquele contexto por causa do olhar, não transmitia credulidade, antes, desconfiança. Dezenove horas de domingo calorento. Apesar de vários ventiladores funcionando em velocidade máxima, aquele homem, a todo o momento, enxugava o suor da testa com o lenço embolado na mão direita.

A veemência do pastor ao falar mantinha a assembleia dominada sob o impacto das palavras. Possuía o dom da oratória, as pessoas se subjugavam à voz tonitruante.

O homem suarento se deixou levar para o passado. Aquele ambiente o remetia para a adolescência. Aluno de Colégio administrado por padres da Ordem do Divino Coração, ele assistia com devoção às missas domingueiras na capela da Escola. Pelo menos uma vez por mês recebia a comunhão eucarística. A confissão dos pecados não era como agora, coletiva ou comunitária como dizem, mas sim, individual. Ali, cara a cara com o confessor. Lembrou-se então do padre alemão, professor de matemática, dizendo: “masturbarrrrr... pecado grave”, o sotaque carregado dando maior peso à falta, aumentando o sentimento de culpa do pecador. Com certeza, por isso, o remorso viria sempre após o ato solitário. Recorria menos a este expediente com o passar do tempo, evidentemente, mas quando o praticava ainda sofria. Não entendia o persistente trauma, pois a sua fé se enfraquecera em decorrência da sua atividade profissional, por isso obrigatória, com as mais sórdidas mazelas da sociedade; logo já não devia temer os castigos advindos, segundo a religião, do prazeroso ato.

Voltou ao tempo real, afinal não estava ali para reminiscências, mas para observar o pastor. Tentar ouvir nas entrelinhas da homilia algo aproveitável para a investigação que ora executa. Contudo, nada ouviu para ajudar, o tema versou sobre a volta de Cristo, “orai e vigiai”.

Após o culto o homem gordo que suara em bicas entrou num carro onde o aguardava o motorista. Este lhe perguntou algo, o homem respondeu que durante a semana intimaria o religioso a ir à Delegacia para explicações. Apesar de ainda não possuir indícios consistentes, o pastor se configurava como primeiro suspeito.

Há três meses, provável “serial killer” tirava o sono daquele senhor, Delegado de Polícia; exercia suas funções numa Delegacia de bairro nobre da capital mineira, Belo Horizonte. O criminoso parecia determinado a mostrar ser o único autor dos delitos, tal a quantidade de pontos comuns entre eles. O “modus operandi” do delinquente não deixava dúvidas.

O Delegado no dia seguinte àquele domingo, no seu gabinete, olhava os volumes dos inquéritos daquele caso empilhados sobre a mesa. Leu o resumo dos crimes:

No dia 24 de maio, Maria de tal, advogada, 36 anos, encontrada morta dentro do carro dela numa rua sem saída. Enforcada com cordão usado nos varais de roupas. Violentada sexualmente. Em cima do corpo, folha de papel com a seguinte inscrição: “Deus fez o homem reto. Apliquei-me em explorar e sondar a sabedoria e a razão das coisas, e reconheci que a maldade é estulta e a má conduta é insensata! Descobri que a mulher é mais amarga que a morte, porque ela é um laço, seu coração uma rede e seus braços liames; quem é bom aos olhos de Deus foge dela, mas o pecador será sua presa. (Eclesiastes 7:25-26)”

O segundo crime ocorreu no dia 25 de junho. Suely de Tal, 40 anos, secretária executiva de grande empresa, enforcada com cordão de varal num terreno baldio. Também violentada sexualmente. Preso ao corpo, folha de papel onde se lia: “O homem não deve cobrir a cabeça: porque ele é a imagem e o reflexo de Deus; a mulher, no entanto é o reflexo do homem. Porque o homem não foi feito da mulher, mas a mulher do homem. Nem o homem foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. (Coríntios 14:34)”

O terceiro crime, no dia 28 de julho, idêntico aos outros, Francisca de Tal, 39 anos, arquiteta, assassinada dentro de seu apartamento onde morava sozinha. Os dizeres escritos no papel sobre o corpo: “Os esposos Santidade do lar. As mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, ele o salvador do Corpo. Como a Igreja está sujeita a Cristo, assim as mulheres estejam sujeitas em tudo a seus maridos.” (Efésios 5.22-24).

O perfil do assassino estava definido: Homem ligado a alguma religião, provavelmente fanático ou psicopata. Demonstrava aversão às mulheres ou as temia. A idade estaria entre os 40 e 50 anos. Ganhava a confiança das vítimas antes de matá-las, daí a suposição da idade do criminoso. As armas para as conquistas seriam: o encanto pessoal, mentiras, falsas promessas, posição social. Sistematicamente mantinha um intervalo médio de trinta dias entre os delitos. Aquelas mulheres frequentavam a mesma igreja, mas não se conheciam. Este último detalhe perdia importância pelo grande número de fiéis frequentadores do templo. Agia numa área de quatro quilômetros quadrados, levando-se em conta o local do primeiro crime como ponto central das ações.

O Delegado abriu a gaveta da mesa e retirou de dentro dela uma Bíblia. Abriu a capa, leu em voz alta o nome escrito na contracapa: Pastor Josias. Fechou-a, bateu o livro contra a palma de uma das mãos repetidas vezes, olhando para o alto, talvez tentando recriar mentalmente como se deram os fatos. Usaria toda a argúcia no interrogatório, por à mostra as idiossincrasias daquele homem; não seria fácil, pensou.

Intimado, o Pastor Josias compareceu à Delegacia de Polícia visivelmente constrangido, abatido, não parecia o mesmo homem vigoroso de dias atrás na igreja. Acompanhava-o o advogado de uma empresa multinacional, Dr. Hipólito, que também era escritor, com alguns livros publicados cujos temas invariavelmente eram policiais. Homem de postura empertigada, óculos redondos, aparência de competência incontestável, transpirava segurança. Há dois anos chegara à cidade, passara a frequentar a comunidade religiosa tornando-se membro ativo.

O Policial revelou ao inquirido que a bíblia fora encontrada próximo ao local do último crime do “serial killer”. Além do nome do religioso na contracapa, destacavam-se naquele exemplar, circundadas com tinta vermelha de caneta, as mensagens encontradas sobre os corpos das vítimas. Esta edição do Livro Sagrado era uma das quatro de sua propriedade, duas ficavam em casa e duas na igreja, esta fora roubada do templo, dissera o pastor. Durante uma hora outras perguntas foram respondidas.

Na volta para casa, Josias, absorto dentro do carro, se transportou para outros tempos. Boca vermelha de batom ordinário se abrindo num sorriso debochado de mulher mundana, humilhando um garoto de dezesseis anos pelo seu fracasso sexual ocasional. Fiasco provocado pela necessidade dela de alta rotatividade ,”goza, goza logo”. Imagem fixada no subconsciente voltaria sempre no momento crucial sem ser invocada naturalmente, perturbadoramente. Bloqueando. Sessões de psicoterapia no decorrer dos anos, apenas paliativas, não solucionando o problema totalmente.

A suspeita sobre o pastor ganhou as manchetes dos jornais, mas a Polícia não conseguiu sustentar a acusação. As provas técnicas, como o exame laboratorial do sêmen encontrado nos corpos das mulheres e o teste grafológico das mensagens bíblicas deram negativo para o acusado. Não encontraram impressões digitais, provavelmente o assassino usara luvas. A maestria do Dr. Hipólito na condução da defesa jogara por terra todos os argumentos da acusação. O Ministério Público não aceitou a denúncia. Optou pelo despacho de não pronúncia.

Livre da acusação, o Pastor Josias recebeu a visita do Dr. Hipólito, viera se despedir, fora transferido, isto ocorria sempre na vida profissional dele. Josias agradeceu o advogado pela atuação no caso. O advogado respondeu “o agradecimento é recíproco, o senhor bem sabe”.

Dois anos se passaram. O Delegado, envolvido com outros casos, jamais esqueceu os crimes hediondos do misógino. Sentia-se frustrado, apesar de haver cessado a série de delitos depois da investigação envolvendo o religioso. Dizia haver falhado porque focara a investigação em cima de suspeito único. Deveria ter aberto um leque maior de linhas de investigação. Às vezes sonhava com aquelas ocorrências, via o pastor sempre seguido por sombra de aspecto humana não identificada. Sentia a sensação de que o criminoso estivera ao alcance da lei, mas escapara entre os dedos da polícia.

Aproximadamente a oitocentos quilômetros dali, em bela cidade capital de Estado, Dr. Hipólito saía do Clube de Cultura local num fim de tarde, acontecera ali encontro de escritores, reunião bastante concorrida. O advogado se fazia acompanhar de uma mulher a quem levou até ao carro dela e ali se despediram marcando encontro para aquela noite. Mais tarde, em casa, sentado no sofá, taça de vinho nas mãos, naufragou no buquê exalado da bebida. Viu-se pré-adolescente, doze anos de idade, trancado num quarto levado pela vizinha de mesma idade. A avó dela abrindo a porta com violência. ”Onde já se viu menino trancado com menina?” O corpo sentindo ainda o calor feminino que estivera junto ao dele, os lábios sentindo o longo beijo roubado pela amiguinha, agora o responsabilizando maliciosamente por estarem ali juntos. Pela segunda vez ela o jogava em situação constrangedora, a primeira vez ocorrera na casa dele, flagrados por sua mãe que lhe castigou fisicamente, além da reprimenda verbal. Ele não resistira ao apelo sexual aflorando em seu corpo naquela idade de mudanças. O sofrido castigo, jamais esquecido, apenas para ele, considerado o sedutor. Agora tudo se repetia, não houve castigos físicos desta feita, mas ficara envergonhado na presença de outras pessoas. Retornou ao tempo presente, levantou-se, foi até a estante, pegou um livro. Após folheá-lo o abriu em determinada página, seu olhar cintilava um brilho cristalino. A testa franzia em rugas. Os lábios entreabertos davam à boca um ricto nervoso. Então o advogado pegou a caneta de tinta vermelha e circundou, vendo a cor de sangue destacar a seguinte citação do filósofo alemão Arthur Schopenhauer: ”O leão tem dentes e garras, o elefante e o javali têm presas de defesa, o touro tem chifres, o polvo tem sua tinta para turvar a água a seu redor; a natureza deu à mulher mais que a dissimulação para defender-se, a traição, a ingratidão, a falsidade”.

Fim



Conto escrito por
João Baptista dos Santos

Produção Four Elements
Marcos Vinícius da Silva
Melqui Rodrigues
Hugo Martins
Cristina Ravela



Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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