WEBTVPLAY ORIGINAL APRESENTA
CARTAS DE JEZRAEL:
AS PRIMEIRAS PÁGINAS ENCONTRADAS
Conto de
Marcos Vinícius da Silva
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***
As primeiras páginas encontradas
22
de outubro de 2021
Caro
amigo Melqui
Não
me resta outra coisa neste lugar a não ser escrever nas páginas
amareladas deste caderno velho. Na verdade nem mesmo sei se um dia
estes manuscritos chegarão até você. Mas sozinho nesse vilarejo há
três dias, sem poder retornar para a estrada que me trouxe aqui, sem
ao menos ver uma alma viva nestas ruas estranhas e desertas, sem
ouvir o zunido dos insetos ou o canto agudo de algum pássaro, isso é
tudo que restou...escrever para você, meu amigo, e torcer para que
um dia isso chegue até suas mãos. Olhei no meu relógio - que ainda
está funcionando - e já passam das 23 horas. Lá fora a chuva cai
intensamente desde o dia em que vim parar aqui, e só tem aumentado,
e hoje um vento gélido e cortante me fez recorrer aos cobertores
grossos que encontrei em um roupeiro velho de um dos quartos lá do
segundo andar, inclusive um deles está sobre minhas pernas me
aquecendo. Ahhhh, para que você saiba, neste momento estou sentado
em uma poltrona aqui no que parece ser um escritório/biblioteca. Há
prateleiras que vão do chão até o teto e estão cheias de
exemplares de livros raros de tudo que se possa imaginar. Pelo menos
é algo que eu posso me entreter, uma vez que a leitura é uma
companhia perfeita para mim.
Poucos
minutos atrás eu ouvi que o vento aumentou. Está, desde então,
batendo abruptadamente contra as janelas laterais e o seu zunido
percorre as ruas desertas deste lugar. Você não vai acreditar em
como vim parar aqui. Estávamos eu, Angel, Giulia e o nosso felino
Habib viajando por estas regiões, quando nos perdemos ao pegarmos um
desvio e fomos parar no meio do nada. À medida que a gente seguia, a
estrada de chão se tornava cada vez mais estreita até que não
podíamos mais ir adiante e muito menos voltar. O carro simplesmente
"morreu". Giulia começou chorar, Angel ficou nervosa e o
gatinho pulou a janela e sumiu. Dizem que os gatos pressentem as
coisas. Pois é, Habib parece ter pressentido algo. Por mais que eu,
Angel ou Giulia os chamasse, ele não obedecia e seguia estrada
adiante. Era como se algo estivesse o puxando...o chamando para este
lugar. Eu resolvi segui-lo. Mas, quanto mais eu me distanciava do
carro, de Angel e da Giulia, mais o Habib acelerava seus passos me
fazendo seguir atrás dele.
Foi
quando senti que o clima foi mudando, o silêncio predominando e um
ar gelado, congelante, começar a tomar conta de tudo. Olhei para
trás e uma neblina densa começava subir e predominar por toda a
região. Fiquei no meio daquilo e não conseguia nem mesmo ver para
onde Habib tinha ido. Então senti pingos de chuva caírem sobre
minha pessoa. Acelerei o passo, sempre adiante, pois por mais que eu
tentasse retornar, algo me puxava para a frente naquela estrada
estreita.
A propósito, este lugar se chama Jezrael do Sul. Vi o nome em uma
placa empoeirada quando cheguei na entrada principal. Recorri às
lembranças e me lembrei que Jezrael nos remete à Bíblia Sagrada. É
o nome de uma cidade citada ainda no Antigo Testamento e de grande
significado para o povo católico. Mas aqui, meu amigo, este
significado parece não fazer nenhum sentido. Este lugar não
transmite paz, não nos causa bons pressentimentos e o fato de estar
sempre chovendo e cinzento só tem me deixado cada vez mais
depressivo.
De
tanto andar por estas ruas próximas e vazias, essa casa que estou
acabou me chamando a atenção. Casa antiga feita de pedra, de dois
andares, largas janelas e cômodos assustadoramente impecáveis.
Aliás, a mobília aqui é invejável. Tudo nos remete ao passado e
está tudo em perfeito estado de conservação, que fica difícil
acreditar que alguém morou aqui e usufruiu destes móveis, enfim,
deste lugar. Posso citar três coisas que mais me intrigam neste
lugar: Primeiro, essa coleção gigantesca de diferentes livros e
periódicos, algo realmente surreal. Segundo, os dois lustres enormes
da sala principal, de ouro e prata, algo que deve valer uma fortuna,
que se fosse minha eu conseguiria fazer com que até minha quarta
geração pudesse ser contemplada. E por terceiro, um intrigante
cômodo no final do corredor do segundo andar, que contém quadros de
pinturas muito reais, de gerações que provavelmente viveram aqui
nessa casa.
O
que mais me intriga, meu amigo, é que tudo aqui nesta casa parece
que nunca foi tocado. Não há vestígios de que alguém realmente
habitou este lugar, que dormiu em alguma destas camas, que folheou as
páginas destes livros, que desfrutou de um belo banquete servido na
enorme mesa de carvalho da sala de jantar ou que apenas fechou os
olhos e sentiu alguma paz no jardim dos fundos. Mas...ao mesmo tempo
em que tudo isso me deixa desentendido, às vezes eu sinto não estar
sozinho aqui. Uma áurea estranha acompanha meus passos em muitos
momentos...talvez seja algo da minha cabeça, dos tantos filmes de
terror assistidos ou de tantos contos e histórias que li...ou não,
pois assim como eu, você sabe que estas coisas existem, que o mal
existe e pode estar em qualquer lugar.
Olhei
a hora novamente e já são 23:30 horas. Sempre vou dormir perto
deste horário, nunca depois da meia-noite. Na verdade este é o
horário em que essa casa parece ganhar vida. Mas, como te disse,
pode ser apenas coisas da minha mente que não tem sossego. Vou até
a cozinha tomar um copo de água e depois vou subir para o quarto que
escolhi, dentre tantos que têm por aqui. Acho que minha Angel e
minha pequena Giulia iriam gostar daquele aposento, confortável,
espaçoso, uma cama enorme que, sem sombra de dúvidas, poderia
comportar nós três juntos. Ahhh, sim, e mais o Habib, que adora
dormir nos nossos pés. Aliás, eu estive à procura dele por algumas
ruas aqui perto durante os dois primeiros dias que me perdi por aqui,
mas infelizmente não o encontrei.
Um
grande abraço meu amigo. Mande lembranças aos outros elementos e,
se eu sobreviver, nos próximos dias volto a escrever.
25
de outubro de 2021
Caro
amigo Melqui
Já
faz três dias que escrevi a primeira vez pra você. Por aqui as
coisas nada mudaram, ou melhor, até mudaram. A chuva parou e o vento
deu uma trégua, porém, o frio continua de cortar. Estranho porque
nesta época do ano não devia fazer tão frio assim. Mas este lugar
parece que parou no tempo e eu sinto a cada dia que passa que eu
faço parte disso aqui agora. Já não encontro saída, já perdi
algumas esperanças. Como a chuva resolveu deixar Jezrael por uns
dias eu decidi que iria dar mais uma volta pelo vilarejo, porque até
então eu só conheci algumas quadras próximas, algumas casas vazias
e algumas mercearias intactas que eu precisei dar um jeito de invadir
para "catar" alguns suprimentos.
Hoje
pela manhã, depois do meu desjejum na companhia de um estranho casal
pintado em um quadro na entrada da cozinha, vesti um sobretudo de lã
que encontrei em um roupeiro de um quarto do segundo andar, um gorro
preto e um cachecol grosso e comprido que precisei dar duas voltas no
meu pescoço, e saí pelas ruelas desertas de Jezrael. Foi bom sentir
aquele ar do lado de fora, porém, enquanto me distanciava da casa e
percorria as calçadas de pedras e as ruas de paralelepípedos do
vilarejo, eu sentia que o ar se tornava denso e carregado. E o
silêncio, meu amigo, ahhh, o silêncio era assustador. Nem mesmo eu
que sou adepto de ficar sozinho, estava me sentindo à vontade com
aquilo.
Dobrei
a esquina e avistei quatro quadras para baixo uma igreja de pedra.
Uma construção invejável, uma estrutura complexa que eu confesso
nunca ter visto nada parecido pelos lugares que já passei. Acredito
até que no país não tenha nada que se compare àquela igreja.
Posso afirmar que estava diante de uma catedral como aquelas vistas
na Europa medieval. Uma visão esplêndida, meu amigo, de encher os
olhos. Olhei as horas e passavam um pouco das 10 horas da manhã.
Ajeitei meu cachecol, puxei a gola do sobretudo, coloquei ambas as
mãos no bolso e desci as quatro quadras. A cada passo mais próximo
daquela catedral mais era encantadora a imagem.
Ahhh,
meu amigo, você também iria achar aquela catedral esplendorosa.
Quando cheguei à sua frente ela se erguia gigantesca, uma nave
inimitável com suas janelas de vidraças avermelhadas que pareciam
intocáveis, e uma entrada de porta dupla com entalhes de cruzes e
rostos desconhecidos, além de duas grandes maçanetas douradas. Subi
um lance de cinco degraus de pedras rústicas e, antes de ficar bem
próximo da porta, ouvi um murmúrio que parecia estar se aproximando
de mim. Virei o rosto para trás assustado e então aquele sussurro
se dissipou. Fiquei fascinado com a vista do vilarejo dali de onde eu
estava. Tudo tão deserto e impecável que me senti um invasor
naquele lugar. Mas eu não tinha culpa, meu caro, eu parei ali em
Jezrael sem querer e agora a curiosidade pelo lugar só se despertava
cada vez mais forte.
Pousei
minha mão em uma daquelas maçanetas douradas e tive que forçar um
pouco. Um dos lados da grande porta dupla se abriu fazendo um rangido
no que pareceu ser a única dobradiça ainda intacta. Senti um odor
fétido assim que a luz exterior adentrou aquele lugar. Uma
verdadeira catedral como eu jamais tinha visto antes...também quem
pudera...o que vou lhe descrever agora é de deixar qualquer um de
cabelos em pé, meu amigo.
Sempre
fui fascinado pelo interior das igrejas, catedrais,
mausoléus...aquele silêncio, aquele sentimento único sempre me
deixava incrivelmente maravilhado, mas o que estava diante dos meus
olhos me causou uma náusea estranha. Além daquele cheiro que
exalava pelo ar, a penumbra me gerou um embrulho no estômago. Os
bancos de madeira estavam visivelmente carcomidos pelos cupins e se
encontravam todos vazios, exceto as duas primeiras fileiras próximas
ao altar. Estranhei quando avistei seres sentados nestes bancos com
véus sobre suas cabeças que me impediam de ver se eram homens ou
mulheres que ali estavam. Desconfiei pelo fato de nenhum deles se
virar ao ouvir o rangido da porta quando entrei. Em um ato de impulso
eu dei um bom dia com minha voz quase não saindo, mas não obtive
resposta alguma, o que me causou maior estranheza ainda. Será que
aqueles seres realmente estavam ali? Será que eles me escutavam,
notavam minha presença?
Minha
curiosidade aguçada fez minhas pernas trocarem passos por aquele
corredor sem ao menos eu perceber. Quando me dei conta já estava
próximo da fileira onde já se encontravam aqueles seres. Minha voz
saiu rouca em um "ei" quase que imperceptível. É claro,
não obtive resposta alguma. Então, estendi minha mão trêmula até
o ombro do ser que se encontrava mais próximo ao corredor. Meus
dedos tocaram o gelado do tecido negro que cobria seu corpo e...os
ossos daquele ou daquela se espatifaram um a um pelas lajotas
quadriculadas do piso daquela catedral. O tecido deslizante também
foi ao chão e, então pude perceber que eram apenas esqueletos
posicionados estrategicamente nas duas primeiras fileiras de bancos
daquela igreja, cobertos por tecidos que cobriam até os seus crânios.
Antes que pudesse verificar mais alguma coisa, algo dentro de mim
dizia pra sair dali naquele momento. Eu corri em direção à porta
pela qual entrei, um pouco de costas até metade do corredor, quando
tropecei em meus próprios pés e me virei correndo para sair
depressa daquele lugar...
Já
fora da igreja coloquei minhas mãos sobre minhas coxas com o corpo
arqueado tentando respirar melhor. Te digo, meu amigo, o caminho de
volta foi o mais difícil, pois parecia que à todo momento algo me
seguia por aquelas ruelas vazias enquanto um vento começava a soprar
gelado vindo do norte. Cheguei no alto da rua e me virei. Pude ver a
catedral primorosa lá embaixo. Pressenti que devia retornar àquele
lugar e descobrir o que mais se escondia no seu interior,
porque...caro Melqui, quer você acredite ou não, há muitos
segredos escondidos nas entranhas mais profundas deste mundo. Há
algo que nenhum homem pode explicar, apenas sentir. Eu vou retornar
lá. Mas não hoje, não amanhã. Eu preciso me recuperar do baque
que passei.
Ahhhh,
olhei as horas assim que cheguei em casa. Meu relógio parou às
11:59, e está sem funcionar até agora. E olha que a lua já ganhou
os céus e as estrelas emitem seu brilho lá do alto. Parece que a
chuva realmente vai dar uma trégua em Jezrael do Sul. Sabe,
estranho. Estava pensando agora, e...eu não ouvi o sino no alto da
torre tocar as doze badaladas do meio dia como já escutei todos os
outros dias que estive aqui. Isso me deixou bastante relutante. Bom,
preciso comer alguma coisa agora. Eu...eu volto a escrever...eu acho.
27
de outubro de 2021
Despertei
e algo me impedia de virar o rosto para o lado direito, era como se
mãos segurassem minha cabeça para que eu não olhasse pra o que
quer que seja que estivesse ali. Virei para o lado esquerdo e estendi
o braço alcançando meu relógio que estava sobre o criado - mudo.
Esfreguei os olhos e olhei as horas. Ele tinha voltado a funcionar,
embora a hora marcada provavelmente estivesse errada. Pelos meus
cálculos e o meu senso de temporalidade já deviam ter passado dois
dias desde que escrevi pela última vez. Por certo então, já era
dia 27 de outubro e a data ali em cima não está errada.
Lentamente
fui virando a cabeça para o lado direito e, por Deus, meu amigo, o
que eu vi me gelou a espinha e me petrificou. Diante da minha cama
havia uma figura masculina, um homenzarrão gordo com uma papada que
mais parecia o traseiro de um porco e a sua barriga enorme saía da
camiseta branca manchada de sangue e caía por cima da calça jeans
surrada e rasgada. O seu sorriso amarelado foi se intensificando na
medida em que erguia o braço direito para o alto segurando uma faca
de açougueiro. Achei que este seria meu fim. Apertei os olhos com
muita força na esperança de que tudo não passasse de um
pesadelo...
Adormeci...nem
sei por mais quanto tempo, mas eu dormi. E quando acordei novamente o
sol entrava pelas frestas da janela que ficou entreaberta e fazia as
cortinas grossas tremularem ritmadas em uma dança agradável de se
ver. A lembrança daquele homenzarrão bizarro prestes a me atacar
ainda me atormentava. Levantei e olhei em volta, mas nada dava sinal
de que alguém estivesse entrado naquele quarto. Caminhei até a
janela e abri as cortinas deixando toda a luz entrar. Por Deus! Lá
no gramado, próximo da entrada da mata estava ele. Do mesmo jeitinho
que vi mais cedo, sorrindo aquele sorriso amarelado e amedrontador e
erguendo aquela faca de açougueiro para o alto. Então, um bando de
urubus sobrevoou baixo passando pela janela e me desviou a atenção.
Quando voltei olhar para a entrada da mata ele não estava mais lá.
Apenas... apenas, uma mancha vermelha no gramado esverdeado. Sim, era
a faca de açougueiro caída ali.
Bom...eu
vou ver o que será dos próximos dias, nas estou ficando preocupado.
Este lugar tá se revelando aos poucos e o que quer que seja que
habita por aqui, parece não ser algo bom. Fica...bem, meu amigo, que
eu vou tentar o mesmo por aqui.