Palavras Obscuras - 1x02 - Estação Paraíso, Rua Apeninos


Sinopse: Roman é um policial dos bons, mas devido a um ato falho, foi suspenso pela polícia de São Paulo. Agora, ele é orientado a frequentar os Alcóolicos Anônimos, enquanto busca conforto em sua namorada e na igreja. Era o que restava até o Departamento de Polícia pensar em aceitá-lo de volta. Mas, certa noite, um fato curioso lhe chamou atenção, despertando seu velho e bom faro investigativo: algo estranho acontecia na garagem do prédio, que conectava-se aos becos da cidade, de forma estranha, mau cheirosa e manchada de tinta zarcão. Mesmo fora do batente e sob olhares de reprovação, Roman vai investigar por sua conta e risco e fazer de tudo para conseguir retornar ao trabalho. Resta saber se ele vai sair triunfante ou cometer mais um ato falho, dessa vez, sem volta...



Estação Paraíso, Rua Apeninos
de Nei Rafael Filho

 

O mundo

   Sob o ponto de vista de Mathias.

   Ou quase tudo. Isto é, conforme andou os relatos cochichados às esquinas povoadas nos dois sonsos bairros vizinhos, o da Aclimação e do Paraíso. Era dito sob a curta conversa e a pedido por segredo. No bar, no armazém do Florêncio, na frente do Hotel Três Corações. Acontecia quando do retorno das gentes chegadas da zona Sul e vindas dos subterrâneos do metrô, desde a Avenida Vergueiro cruzando em descida a Avenida Paulista do engenheiro uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, a cidade não sossegada. E tudo se dá desde os claros passando aos escuros, nas sombras e nos becos.

   Ao dizer ao pé do ouvido se distribui versões aos cantos da cidade, por mais povoada. Existe heroísmo e covardia, os fatos vão se modificando na erosão do pensamento de cada um. Mathias tudo vê, e para tudo olha. Sabia os dramas e conhecia os habitantes antigos da Rua Apeninos; a rua curta, dobrada ao meio e feita em curva acentuada para baixo. Desaguava à elegante via Dr. Nicolau de Souza Queiroz, onde a Padaria Amanda era o alívio à truculência do trânsito automotivo da aflita Avenida 23 de Maio, porque ainda não se compôs àquele entorno qualquer  elegia, fosse um samba a respeito das coisas que acontecem no coração.

  Considerada a importância do ex-funcionário das docas no Porto de Santos, Mathias Alberton andou como quase amigo de Roman de Andrade, o policial enganchado pelo motivo, ou  em razão, do descuido da sua automática de 9 mm à linha de tiro da Academia de Polícia de São Paulo. Suspenso, não obstante o esforço para retornar à ativa, era obrigado a submeter o entendimento da consciência e lógica às sessões de psicoterapia. Mais que isso: às reuniões nos Alcoólatras Anônimos de Vila Mariana. Dava para percorrer o trajeto a pé. Perdera a licença para condução de automotivo da categoria amadora. Virgínia conseguiu refazer e montar aos poucos o namorado policial; a advogada Dra Mirthes – hábil, dura, gorda, fumante,  combativa e redigia ao estilo noir à escrita jurídica. Conseguiu  mantê-lo (ainda) nos quadros da polícia civil, ora pendurado por um fio à folha de pagamento como Escrivão da 3ª Classe. A causídica foi indicada por Virgínia. A busca da cura emocional corria verborrágica e lacrimosa. E vertido no grupo dos AAs, afinal, esse era o carinho da moça vinda do Tatuapé. Que sabia a respeito de Virna, outra musa de Roman. Afinal até Mathias testemunhou gritarias e berros ensandecidos da dançarina de São Caetano do Sul ao tentar arrombar a porta de entrada do prédio residencial da Apeninos, passagem onde estavam fincados todos os edifícios e as rotas dos transportes para a imensa cidade nua.

— A moça aparecia para cobrar serviços! — declinou Mathias para uma terça parte da população do Paraíso e padarias.

                            ...

  A ressurreição de Roman partiu de numa noite gelada, mês de julho. Desceu à garagem subterrânea para livrar-se do lixo seco. A coleta acontecia na madrugada. A multa por misturar descartados destinados à reciclagem ao não aproveitável era altíssima. Ao descer do elevador observou luzes neon do fundo da garagem piscando. Atentou e foi em direção à parte oposta de onde estava. Lamentou não estar armado. Suspenso, impossível.  A área vazia e piscando, não conseguiu identificar a aparição em movimento. Alguém de baixa estatura caminhava rente à parede. Mas era ágil. Roman acelerou o passo e o perdeu de vista. A porta da garagem foi aberta e o vulto disparou em retirada, saltando por sobre latas de lixo. E o perdeu de vista. Foi ao fundo do estacionamento subterrâneo e notou o piso reluzente pautado apagões às radiações luminosas. No percurso viu-se frente a uma poça de líquido vermelho. Não soube identificar. O odor era fétido. Perturbado, observou a poça espalhada num imenso círculo. E chamou pela Síndica. E acionou a policia.

— É uma tinta utilizada em dutos de água para PPCI... — declarou o policial da 36ª Distrital Vila Mariana.

— Ridículo esse Roman! Não sabe mesmo fazer! É um bêbado! Nada mais que um atirador bêbado da linha de tiro da policia desfalcada! — clamou Mathias aos quatro ventos.    Dias seguidos.

— Estamos reformando o prédio, Sr. Andrade... — limitou a Síndica, à altura da noite, írrita, vestindo a saída de cama. A cena aconteceu no derradeiro de mais um dia tenso da metrópole de milhões de almas.

  Max Albert, o Comissário, aceitou a aparição como prova de indício de crime sendo construído. Na noite anterior Roman relatou ter avistado uma mulher de baixa estatura, próxima ao prédio. Tinha pendurada no ombro, uma mochila.  Uma das alças arrastava pelo chão. O que o fez questionar a despeito dos sem teto, os andarilhos da Praça Rodrigues de Abreu, população habituada às barracas e improvisações próximas à fechadíssima Catedral Ortodoxa de Antioquina. Entram e saem às ruas abertas, talvez crias da República da Cracolândia; vendem-se uns aos outros,  magérrimos. O maior terror do mundo procria em bandos na segunda cidade do  global da frota de helicópteros particulares.

   Otaviano Savoya, Delegado, acompanhava os progressos do policial suspenso. Almeja Roman de volta à sua equipe. Reconhecia o raríssimo dom do escrivão afastado. Malgrado o álcool, dantes caído às noites quentes na Sodoma Parque da Luz, carcomido por depressão irredutível. Mas o Digníssimo  Delegado de Quarta Classe comparava-o aos demais da equipe: Andrade tinha o sentido apurado. Bastava um simples olhar em qualquer cena de embate do delinque cotidiano, no verniz do crime espetacular. Observou a façanha quase mítica do policial ao sabor da diligência realizada no distrito.  De poder único, afundava visão às entranhas do objeto. Relata riqueza, o detalhe é superior. Obrigado ao tratamento psicoterapêutico, pontual e assíduo, permanente e associado involuntário dos Alcoólatras Anônimos e cantar no coro da Igreja Batista, identificar-se à crença de Virgínia seria cinismo? O decadente homem é par ideal — renascemos dentro de nós mesmos quando em arrependimento, ela pregava. Qual mundo soterrou o frequentador contumaz do boteco lascivo? Voltara ao subsolo da garagem. O das luzes rentes à parede ao fundo piscando. Ágil, novo vulto cruzou de um lado a outro, exalando fétido odor. Pôs a correr e apontou o facho de luz para o que avistara. A criatura nanica portava  uma sacola. Ao perceber a lanterna lançou pedra contra Roman. Agora próxima, previu a criatura em fuga à porta lateral, não estava chaveada! Desarmado, o anti-herói policial em roupas desajustadas pela magreza, viu o visitante furtando lata de tinta de zarcão utilizada nos canos do PPCI.

   Mathias, elegante, da sacada riu-se ao vislumbrar o vizinho do prédio fronteiriço: ridículo! Atrás do intruso em luta quixotesca! O suspenso numa investigação paralela? Por uma lata de tinta!

— Aqui, no domínio privativo  — disse ao policial ofegante    é confortável acentuar manobras ao trágico episódio.

   Foi o que aconteceu ao camarote de Mathias; mas Roman vestiu o casaco, as calças, esperou Virginia e a acompanhou ao templo batista. Quarta-feira, noite de adoração. Vagas oscilantes de pessoas cruzavam a catedral ortodoxa em busca ao abrigo de marquises de prédios comerciais. Ao relento. No culto esquecia obrigações do próximo dia: a psicóloga, a nova reunião nos Alcoólatras... Os pensamentos tumultuam: a lata de tinta derramada no piso do estacionamento subterrâneo e o porquê da tinta zarcão; pessoa ágil, rápida, de baixa estatura; o mau cheiro; alguém  carregando o saco de estopa — seria uma mochila?

    Ela trinava a voz, ele resiste ao pensamento invasor. Entre o agudo e o grave escuta a predica do Pastor Omar. Reprisou cena macia à memória: a nudez do brilho oleoso de Glauce no Pole Dance. A miríade por desejo e consumo à bebida. A boate. Virginia sonante pousa o olhar nele sob os  versículos da Palavra. Ele deixava inundar recordação e desejo latente. Aprisionado, combatia a si; os relatórios, ele mesmo, o tiro ferindo o colega. Teria de beber só água, chá. Dormidas regulares, exercícios de desintoxicação,  reunião dos passos do homem novo nos alcoólatras. Relatórios, voltar à ativa. Andava de blazer amarfanhado, corpo diminuído, um rosto riscado por rugas fundas.

— Roman! Faça um curso de detetive. Se prepare! No caso de não reintegrar! Trabalhe como investigador particular! — opinava a namorada consulente.

Sacada do Edifício Beta

   Sob o ponto de vista de Roman, policial de Terceira Classe, suspenso por atos não condizentes ao cargo. Investigado por ofensa à Administração.

   Visivelmente magro e abatido por conta da lerdeza do penoso rito da cúpula policial, se contém a rota cíclica da hora dura e do minuto ácido. À medida do andamento das semanas insossas e sedento às novidades do pesado autodisciplinar — tudo levado a ele através da secretária de sua advogada — Roman  permanecia resumido, apertado era mal visto. A hora da reunião nos Alcoólatras, a Igreja e o breve passeio à Avenida Vergueiro ganhava alívio à noite, da sacada para ver o mundo escuro nos acessos da ação  sorrateira do habitante urbano. Crianças abandonadas de rua ou brincando às praças imediatas à Apeninos eram as mesmas ao entardecer e, posterior, às horas estranguladas, pequeninos chacais atrás de vítimas provavelmente indefesas. Pouca ronda e reduzida guarda versus o aumento de adepto ao delito na leva migratória da República Unida da Cracolândia. A procura por um prédio abandonado, nova invasão, um toco de cigarro, o alívio químico no Eldorado do comércio das pedras, do líquido transparente injetável por seringa de uso coletivo. Se bem que o churrasco na casa dos tios da namorada significou ao policial sem farda provocação aos sentidos. Observou o cão da casa espirrando enquanto às voltas do papel de embrulho da carne destinada ao espeto. Associou a Padaria Amanda. Na subida íngreme da rua, um cão espirrara semelhante junto à lixeira ao farejar a calçada e à cercania.

— É muito simples o que vou querer de você, Max — discursou enfático Roman ao celular ao colega Max Albert. Incisivo, cobrou dele favores de antigamente.   

   Dois dias depois Albert chegou acompanhado de uma perita química, Adelina, a policial feita de gelo. Cuidadosa e sob o silêncio dos colegas, pôs-se a trabalhar, ensacando as mãos de unhas muitíssimo pintadas em luvas brancas. Lavou o piso indicado com luminol, substância mágica; à superfície identifica a presença de sangue devido ao oxigênio da hemoglobina.

— O laboratório informará a reação ao gradiente espectral.   Do ultravioleta ao infravermelho — afirmou magistral — Sangue humano... Observem o traço de mancha... — pediu frente aos investigadores ambientados a rotina da prova homicida.

   Roman alertou:

— Saí em perseguição de um estranho, dias atrás. Correu do estacionamento subterrâneo. Observo o depósito de bebidas logo mais ali — disse apontando para a esquina da Dr. Nicolau de Sousa Queirós. — Escondida, a perdi de vista. Era rápido, e apoderou-se de uma mochila. 

   No decorrer das horas, Roman da sacada prestou guarida. Fez uso do binóculo, tinha uma garrafa térmica com café. Divertia-se de onde estava ao sabor da arquitetura transparente feita por canhões de fachos de luz instalados do pé ao alto do Hotel Mercury. Pessoas  saiam em passadas diagonais às embocaduras da Estação Paraíso, carregando os pertences após a jornada. Àquele instante, menos crianças abandonadas às ruas contíguas e já povoadas significativo grupo de pedintes às dezenas, errantes, vagarosos à Av. Vergueiro e desciam a ribanceira do talude de escora à Avenida 23 de Maio.  

   Em duas noites de plantão cuidou o entra e sai do armazém, antigamente era depósito. Funcionou como estufa de frutas Santa Clara. As caminhonetes estacionavam rente ao meio fio, junto à porta de correr de aço. Tudo transcorria na calada noturna. O mundo mergulhava quieto no véu de silêncio da madrugada e afastado dali escutava o apito e sirene do carro policial em perseguição.

   Resolveu descer. Observou o poste, a calçada de lajotas de cerâmica e se afastou da sacada de costas. Na última hora da tarde foi surpreendido. O resultado do laudo pericial do exame luminol. Havia precisão nos dados. Era sangue humano. E recente. No subsolo da garagem percebeu o mau cheiro e dessa vez encontrou roupas soltas no piso, rente às lixeiras. Abaixou-se e de joelhos contemplou os objetos. Estudou o achado, de nauseante odor; recordou a grande lição do estudioso detetive carioca Bechara Jalkn, dos anos 1950 — mesmo famoso carregou a pecha de ‘Sherlock Holmes brasileiro’. O grande detetive recomendava: Jamais toque em nada. Não se deixa rastros do investigador no objeto investigado.

   As peças foram cuidadosamente introduzidas para um saco plástico utilitário da polícia. No início da manhã telefonou para Savoya. Roman pediu o favor de examinar o material. O Delegado mandou nova viatura para o local.

— Examinaremos. Você ainda está fora. Cuide de si.

  Virginia subiu ao apartamento de Roman. E do bem vindo interlúdio amoroso, terminada a agonia da palestra no “Clube dos AA”, ele se motivou, afinal a mulher foi vencida pelo sono após o encontro.       

   Observando da sacada presenciou outra caminhonete. Chegara na contra mão. Deduziu o improvável, como observador e observado! Nos três pontos, o triângulo formado no subterrâneo da garagem, ao poste da lixeira e ao antigo depósito de abastecimento de frutas. Retiravam as caixas de dentro. Eram retangulares. Mas outras apareceram, maiores,  puxadas do fundo da caçamba. Desceu para anotar as placas. Mas parou. Estupidez seria dar prosseguimento, perturbando a memória as orientações do Delegado, da Advogada, e meiguices da namorada. Os ensinos da comunidade batista e do Centro Espírita, também — que passou o frequentar incógnito. Urgia o passe, a fase atual da vida são estertores do carma, conforme os médiuns.

   Trajou vestimenta escura para reconhecer. Com dificuldade de pegar no sono, a síndrome da abstinência instigava gradualmente aos ensinos da investigação. Onde estaria Mathias àquela hora da noite? Foi visto nas saias de uma viúva rica, Dona Eulália, na feira de antiguidades do MASP. O mundo retratará sob o ponto de vista de um alcoólatra, formado em educação física, policial suspenso,  elevado às graças da musicista de família temente, a magra e alta Virginia de fala branda. Tomou a Apeninos e fez em sentido contrário. Percorreu até a Rua Correia Dias, cruzando a Vergueiro para logo em seguida, adentrando à esquerda, pisar na curvilínea Dr. Nicolau de Souza Queirós,  onde está instalada a Padaria Amanda. Fez isso munido de lanterna. Realizou o percurso em face de outro cão vira-latas das imediações e não propriamente a da caminhonete e das caixas. O cão à tarde farejou a lata de lixo. Roman observou o esforço do animal para subtrair o que fora depositado na lixeira. Lamentou não ver toda a cena anterior,  adormecera ao amanhecer. Percorrendo passos, repaginou a observação urbana decadente, honestamente, nem muito urbana: a assombração escandalosa de mendigos de rua. Por onde recontar crianças de póvoas antipedagógicos da praça seca e do farol do semáforo? O provável em breve ocorrerá: assalto, violência. Sabe-se lá mais o quê! As ordens da advogada de evitar as ruas à noite. A do Delegado. A de Virgínia. A vontade de abandonar o curso EAD para formação de psicologia criminal bastasse a ciência para entender o crime qualificado. O grande delito nem qualificado é: faz-se estruturado. Percorreu a via pública e escutava grunhidos. Melhor se estivesse investigando o subsolo da garagem, o subterrâneo oferece proteção. Mas na andança escutara gemidos, falas em dengos sussurrados vindo de dentro das barracas. E que se esfregavam a cópula, o poeta marginal contido no instante, versaria do amor dos andarilhos maltrapilhos das ruas quase humanas.

   Então ao avistar o cruzamento – Dr. Nicolau com Apeninos — parou outra caminhonete. Não tinha placas de identificação. E um toldo a cobria. Homens colocavam caixotes e volumes em formato cilíndrico para dentro. Estacionada defronte ao prédio envidraçado de três pisos, a porta de saída de emergência estava aberta. Talvez fosse melhor requerer força policial. Os homens trabalhavam com luvas, máscaras, não falavam e eram possantes, observou. Quais as chances e mínima condição de enfrentamento perante  musculatura de três, quatro homens fortes comparativamente a Roman, magro, carcomido, recém erguendo às próprias cinzas? Um dos carregadores o viu e Roman tratou de abandonar o local.

   Melhor sorte foi à lixeira do poste onde normalmente afixavam placas sobre gatos perdidos e recompensa. Sob a luz do amanhecer ensacou as mãos com sacas plásticas. Retirou todo o lixo contido no interior do cesto. Cães perseguiam o descartável alimento. E permaneciam à volta. Mas a rua silenciou ao advento da manhã. O comércio local recém acordara. O lugar da estufa desativada para frutas resultou limpo. Era como se ninguém andasse por lá havia séculos! Em casa Roman retirou o lixo, depositando-o sobre um pano nunca utilizado. Usou técnica arqueológica de extração do leve e fácil remover. O odor era forte. No meio de diminuto entulho havia o orgânico em decomposição. A coleta seletiva, por mais insinuante, não abarcar adeptos.  Enquanto trabalhava ponderou: lidar com o lixo é como uma religião, um credo. O pensamento deduziu o policial em meio a cascas, pedaços de frutas, pacotes de carteira de cigarros amassados e um lápis. Como seria a devoção ao lixo limpo? — questionou — Aprofundava a prospecção  da camada mais afundada do enxurro de odor insuportável e mais forte ainda. Separou  pedaços de madeira, pilha de rádio, baganas de cigarro e um pequeno embrulho. Era um enrolado de papel celofane no tamanho de um punho fechado. O cheiro era absurdamente intolerável. Tratou de desembrulhar sem tocar no objeto encontrado em meio a outros de menor completude. Com dois talheres sem uso, guardados junto às ferramentas de uso doméstico, finalmente em manejo cirúrgico puxou as folhas que o encobria. Estavam quase apodrecidas. E úmidas, o interior molhado. O aspecto observado associou-se a despeito da madrugada anterior; o piso da calçada da Rua Dr. Nicolau apresentava mostras de gotejamento, de pingos densos e apesar da pouca luz, reluzia, poderia ser pingadas de algum líquido viscoso, com odor nauseabundo. Roman provavelmente colherá mostra da substância onde esteve e só não o fez ainda por cautela; os assustadores carregadores mascarados da hora. Abriu as cortinas da janela da cozinha e concedeu a invasão da luz do dia. Prosseguiu desembrulhando. Alcançou à outra folha de papel. Tocou no papel. Confuso, deu-se diante de papel especial. Era dinheiro. Abriu o mais que pode as folhas externas  chegando à camada interior. O objeto estava enrolado em duas notas bancárias de cem reais. Foi atrás de uma pinça. Por sorte tinha a ferramenta desde o tempo da coleção de selos. Com a mão esquerda segurando uma das pontas do embrulho, desfez-se das dobras da cédula. Eram duas cédulas do mesmo valor. Uma cobrindo a outra. À medida do esforço praticado com demasiada delicadeza para estender as duas cédulas e não danificar o objeto contido em seu redor, finalmente vislumbrou diante dele, em ligeiro estado de putrefação, acondicionado em duas notas de cem reais, um par de olhos. Eram dois globos oculares. Deviam ser perfeitos,  seguiam com o nervo óptico exposto, à imagem de um cordão preso na parte posterior do órgão.    

— Não é um par de globos oculares. São dois. Dois globos distintos. Pertenciam a duas pessoas — explicou Max Albert repassando o laudo do IML. Comentou que desde o  nascimento  o olho seguirá  com idêntica proporção por toda a vida.  Mesmo peso e diâmetro. Os que foram encontrados apresentavam patologias no cristalino e na íris. E o nervo indica consumo de drogas químicas.

   No repertório, perícias mais contundentes, interessava-lhe o lixo apreendido examinado sob as lentes da polícia técnica. Encontraram pedaços de gazes e algodão. A outra perícia de coleta mais antiga, embora fosse da semana anterior à descoberta dos dois globos oculares, o laudo técnico discorreu a respeito das roupas encontradas no estacionamento do subsolo do Edifício Beta. Era pouco animador.

— São roupas femininas. Pertenciam a algum travesti. O exame de gordura e hormônios da pele encostada à roupa revelou o uso por homens prostitutos.

   Somando os fatos, de casa Roman meditou. Recebera as fotos das provas colhidas. E olhou-as muito bem,  se sentia muito mais firme desde quando logo ao início do afastamento das atividades policiais. E numa conversa particular com Virgínia, cheio de dedos e modos cavalheirescos, pediu-lhe compreensão e paciência; meigo ele solicitou para não aparecer no prédio por uns dias. Confirmou frequentar as reuniões dos AA e dos cultos aos sábados. Marcaram encontro no templo da Aclimação. Transcorriam os dias. Roman soube da advogada Mirthes o inusitado: a arma seria submetida à  nova perícia balística. Animador.

— É mais um ponto positivo ao nosso embate, Roman — revelou estirada na cadeira giratória a advogada, entremeando palavras espaçadas em suaves tragadas do longo e perfumado Misty Slim.

   A escuridão definitiva das noites intermináveis estava por explodir. O treinado grupamento do Distrito Policial não associou a nada mochila esvaziada na lixeira. Era o lixo apreendido! Evitou aos colegas a respeito das caixas e caixotes pintados sob o escarlate do zarcão. A mente estilhaçou destroços amontoados à memória desde o marco zero, o estacionamento, a mancha de tinta, o furto das latas de tinta antioxidante feitas para suportar a salinidade da água. Munido da mesma lanterna e uma diminuta máquina de fotografar, rastejou os cantos escuros das  proximidades. O telefone na cozinha e desarmado, foi a campo e se observou pela primeira vez desde quando lamentou o reflexo turgido às sarjetas por onde tombou vezes muitas! Viu-se denso, acordado, tinha a sensação de liberdade e já quase livre da desumana sedição pela bebida. Caminhou com a  indumentária opaca, e acrescentou. Colocara à cabeça um gorro breu. Estupefato assistiu discussão violenta entre dois sem teto andarilhos. Ponderou afasta-los, precisava de silêncio. Felizmente portava moedas no bolso. Truque do detetive suplementar, o de segunda; urge distrair para tirar fotos ou penetrar no ambiente vigiado. Lançou os metais de níquel na calçada. Pateticamente amontoaram-se aos reluzentes níqueis. Seguiu em frente, pararam de brigar. Cuidadoso alcançou a dobra da esquina da Rua Correia Dias, e vigiou a chegada das caminhonetas. Mais adiante, na Apeninos, outras chegaram. Descarregavam  caixas habitualmente observadas e os cilindros eram cobertos por bandagens. Fotografou. Detrás de um container de lixo o foco estrangulado dos postes à luz de mercúrio permitiu constatar vapores, algo parecido, esvaído dos cilindros. Essa operação solitária, por reconhecimento ou agindo por instinto, Roman acautelou detalhe, o suficiente para afastar imediatos cães ou gatos, esterilizou as vestes. Nos últimos dias lavava-se com glicerina. Cobrira a boca com fita adesiva metálica. Protegido em luvas de borracha aderente, graças à varredura do olhar perfeito coletou muito pouco. Do sucedâneo em completo abandono subiu à superfície da lembrança lição dos primeiros passos nos Alcoólatras Anônimos. A propósito da visão! O perfeito do olho é graças à anatomia. O álcool não é amigo dos olhos. É inimigo do nervo transportador da luz ao cérebro. 

  Num mergulho às forças de dentro, andou mais a frente.  Municiou-se do aprendizado; voltar ao apartamento seguro e salvo era sorte! Os carregadores das caixas falavam ao mesmo tempo, concluindo por intruso às imediações. Talvez  um mendigo pedinte. Em dupla, correram em direção ao container e levantaram a tampa. O mais fétido odor exalou de dentro como nuvem  aprisionada de apodrecido odor. Roman encolhera-se rente a parede posterior, os pés sob o coletor de lixo. Sem respirar, surpreendeu-se, tinha resistência,  tudo de si aos poucos ressuscitava.

— Não há ninguém aqui — afirmou um dos homens, o mais possante.

  Despejaram dentro do container sacos de supermercado amarrados pelas alças. Pesados da sobra de algum conteúdo a ser mais tarde localizado por Roman. Oxalá examinado. Não tinha mais projetil no tambor: os favores da equipe foram pagos. E Savoya queria resultado!

   E foi o que ele fez, prontamente, passada as horas e na saída das caminhonetes. Não amanhecera e ruas permaneciam desoladas no silencio bendito da madrugada serena, lavada em nevoas de altitude. São Paulo é um terreno de platô típico de planalto. É cidade alta, ao nível do mar corresponde à serrana. Nauseado, com esforço, ergueu a tampa, retirou as bolsas plásticas de supermercado servido às vezes como saco de lixo. Restos de lanche — cogitou.  Ao apertá-los sentiu maciez. A lição detetivesca, recordada mais tarde, aula número 38, é jamais comprimir no tato o objeto de prova. 

   Transitou até a Rua Apeninos sem dificuldade. O piso do deposito abandonado ganhara lavagem e escovação. Mas ninguém escutou. As janelas permaneceram de venezianas quietas, desfocadas e o interior dos prédios não tinha claridade. Certamente a rua dormia. Ao caminhar por sobre a pista de rolagem, pisando no meio fio, suas narinas exalaram o cheiro de cloro oxidante. E a si mesmo confirmou, mais uma vez retomando outra das lições de seu curso urgente: a missão do investigador é a descoberta. Jamais o autoengano. Voltou ao local. Haviam lavado o piso em frente ao depósito! 

   Contido na calada noturna do monumental preparativo à vinda do Sol, embora perdurada as sombras da noite pesada, permitiu ele, o policial desativado, acionar outro de seus sentidos: escutou compressores funcionando, o reverberar tinha semelhança à de geladeiras domésticas. Mais que isso, recordava a de frigoríficos.  

 “Traços de cloro e gelo seco nos globos oculares”, recordou a leitura do laudo do IML feita por Max Albert.

 

                          Epílogo                       

   Elaborou o dossiê. A prova colhida nos sacos de lixo era apenas de restos de comida. Roman escondeu o que apanhou no chão: fios de cabelo. Entregou à Savoya o relatório e o pedido de nova perícia. E não se abalou. Mas o Delegado advertiu:

— Melhor para você que encontremos drogas — destacou áspero. Roman, contudo, mal moveu os lábios, em um sutil sorriso, a última versão do de Mona Lisa.

— Daremos batida. Vamos estourar o lugar — alertou o comissário Albert.

   A  Apeninos foi fechada sem alarde. Às seis da manhã viaturas com cães farejadores e a polícia técnica chegaram. Primeiro arrombaram o armazém. Savoya ordenou que abrissem as geladeiras e os frigoríficos. Encontraram gelo. Caixas vazias. Mas todas pintadas de zarcão. Num armário, recolheram mostras de gaze e plástico aderente.

— Por aqui apenas o indício de que as caixas teriam de flutuar. Mas onde enfiaram a droga? 

   O policial suspenso sugeriu abrir o depósito da Rua Dr. Nicolau Queirós. Arrombaram. Dessa vez houve muito ruído, despertando a vizinhança. Duas portas pesadas lacravam. Nada surpreendeu, inicialmente; fotografaram diversas geladeiras e câmaras frias de gelo seco. Havia tubos de amônia. A equipe foi adentrando. Os técnicos perceberam marcas de sangue no soalho e seguiram as manchas borrifando o luminol até a parede de tijolo como se fosse divisória no entre câmara. Savoya Delegado andou rente à parede tateando-a. Pediu para arredar os dois imensos frigoríficos encostados. Por trás dos compressores de gelo seco havia uma porta. Ordenou que pusessem fachos de luz para dentro. Escuro e extremamente gelado a equipe cruzou a linha divisória da sala das geladeiras a outra, uma imensa câmara fria rescendendo a amônia. Ele olhou firme para Roman, como indagando o óbvio não muito evidente.

— Abram as geladeiras e os balcões frigoríficos — disse e, ordenou à retaguarda, arma em punho. Roman respirou em alívio.

— Certamente encontraremos uma estranha surpresa, meu Delegado distrital — disse convicto. Avançou e pediu que fizesse do relatório um auto de remissão a ele — Quero e mereço voltar à ativa!

— Vou abrir. E você voltará para a equipe. Prometo. Abram – culminou sob a ordem dada. Os frigoríficos abertos, as geladeiras, as câmaras fechadas com cadeados, tudo era estourado. O gelo cobria corpos infantis ensacados. À primeira vista um dos técnicos gritou. Savoya exigiu silêncio. Abram tudo. À cena descortinada, pasmaram. Crianças congeladas, esticadas ou em posição fetal. Roman, o policial da terceira visão, solicitou remover o conteúdo.

— Digníssimo, por favor, retire de dentro uma, apenas...

   E assim procederam dois policiais. O que acharam? Olharam o corpo de uma criança aberta ao meio. Tinha o peito oco, aparentemente sem o coração - o gelo seco confunde e turva a percepção – braços enrijecidos, sem os olhos, não tinha língua e desprovida de cabelo. E agiram afoitos, arrombando as câmaras frias. Muitas crianças. Todas ocas, limpas dos órgãos, aguardando o desfecho no desfiladeiro dos rios, nas fronteiras, em pedaços talvez. Acidentalmente um órgão ou outro ainda seria encontrado nas lixeiras da metrópole, enrolados em cédulas de dinheiro circulante para despistar os atravessadores, no rude desfiladeiro da selva brava do país brutal.

  Tráfico de órgãos — concluiu o relatório. Alguma prisão? Capturaram novos delinquentes da cracolândia? Os de gravata? De onde vinham as crianças? As perguntas da imprensa frequentaram os jornais nas semanas seguintes. As respostas arriscavam dizer: estão diante do abandono, desde as curtas ruas acesas e aceleradas dos dias loucos da cidade gigante, nas noites intermináveis dos obreiros do crime a céu aberto.

                       .........

                            Porto Alegre, setembro de 2021.





Conto escrito por
Nei Rafael Filho

Produção Four Elements
Marcos Vinícius da Silva
Melqui Rodrigues
Hugo Martins
Cristina Ravela



Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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Antologia Palavras Obscuras






PALAVRAS OBSCURAS

Antologia

star10min | Suspense, policial
Classificação: 16 anos
Formato: Conto
Autor(a): vários autores
Estreia Original: 01 nov 2021
Tema: Que País é Este? - Legião Urbana

Sinopse


"O crime compensa?"

Perguntou o detetive Melqui para o delegado Martins ao seu lado, observando o delinquente Marcos Vinicius do outro lado do vidro, sentado e algemado batucando com os dedos sobre a mesa.

Quando estava para responder foram surpreendidos pela doutora Ravela, advogada especialista em soltar criminosos, que chegou e se parou ao lado dos dois com um documento em mãos.

"Meu cliente deve ser solto imediatamente. Aqui está a ordem do juiz!"

Os dias de hoje estão mais difíceis. A justiça tarda. A justiça comete erros. A justiça nem sempre compensa.

O mundo está mais perigoso. As ruas abrigam os mais diversos crimes e a população fica à mercê das mentes mais insanas.



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Palavras Obscuras - 1x01 - Valete de Paus


Sinopse: Nosso matador de aluguel, já conhecido Benjamin do conto “A Cobrança”, é contratado para eliminar duas pessoas na mesma noite. Após uma partida de poker com os criminosos da cidade, Benjamin consegue apoio do agiota Armandinho para executar seu plano de duplo homicídio.
Só que nem Armandinho sabe quem são os alvos do amigo matador, nem o matador poderia imaginar que apenas dois assassinatos vão se transformar em uma grande chacina
.



Valete de Paus
de Cristina Ravela

 

PARTE I – Aquele valete valia ouro

As três cartas do baralho, dispostas sobre a mesa, fizeram meu companheiro de jogo dedilhar sobre a madeira. Era um suntuoso Rei de Copas, a Dama de Ouros e o Às de Espadas, três cartas que fizeram brilhar os olhos de todos os presentes. Éramos cinco, à espera da próxima jogada.

Qualquer um poderia matar o jogo ali, fazer uma Sequência Real e levar os R$ 5 mil que eu ganhei rindo na quinta-feira passada. Eu disse que ganhei rindo porque matei um palhaço na ocasião, um dos poucos que me fizeram rir na vida.

Quem eu pegar roubando, mato! – afirmou o Armandinho, já prevendo a derrota.

Armandinho era um sujeito magricelo, preto, nascido e criado nas vielas do Cezarão, sempre trajando aquela blusa preta apertada sob a jaqueta surrada. Estava sempre contando dinheiro, de preferência, dos outros. Afinal, ele precisava sustentar o vício sem limites dos cigarros dele. Inclusive, ele trazia um na boca. Apagado.

O cenário onde eu estava parecia criminoso. E era. Sob a luz baixa da lâmpada quase despencando sobre nós, cada um ali tinha um passado a esconder ou um presente para sustentar. Um total de 10 homens, sendo cinco assistindo ou aguardando para iniciar uma briga. De agiota a miliciano, não restava dúvidas de que naquela noite, alguém deixaria de pensar no futuro.

Se quiser, pode sair do jogo, Armandinho. Tá toda hora ameaçando, uma merda já!

O carinha que meteu a real era meu parceiro fiel do Poker. André, o nome dele. Branco que nem papel, ficava vermelho só em mover os músculos da cara. A gente dividia a grana conquistada com muito esmero e talento. Ele era mais tacanho no ramo, e como sou um cavalheiro, quase um lorde saído das entranhas dos castelos europeus, sempre deixava uns 20% a mais para ele.

Armandinho nos espiava; ele tinha uma obsessão comigo, não sei explicar. Entendo a força da natureza que eu represento, mas acho que não faço o tipo dele. Ajeitei meu coque, coçei minha barba aloirada. Por fim, aspirei o ar putrificado pelo décimo cigarro do Armandinho. Ele ainda mantinha o décimo cigarro apagado na boca.

Enfim, Armandinho jogou sua carta: um 2 de paus. Achei simbólico, já que ele sempre parece um dois de paus estacado nas esquinas, aguardando um trouxa para agiotar.

Puta que pariu…

Foi a vez do Naldão reclamar. Ele, um sujeito truculento, parceiro das vias de fato do Armandinho, parecia saído dos filmes de faroeste: sempre pronto para puxar a arma, com olhos semicerrados, enquanto equilibrava o cigarro no canto da boca.

Ele não fumava, fato. Mas Armandinho, sim.

Armandinho, então, jogou suas últimas cartas sobre a mesa. Já tinha dado o jogo como perdido. Pegou o copo de uísque barato e engoliu de uma vez só. Aquilo bastou para causar um certo alvoroço, já que toda vez que ele perdia, ele saía para cobrar uma dívida antes do prazo combinado.

Foi nessa deixa que, sem ninguém perceber, retirei um perfeito Valete de Paus da minha manga e coloquei no lugar o 4 de Copas. Sob o olhar matuto de André, mostrei que eu tinha pressa.

Não sei vocês, mas hoje será uma noite daquelas. Preciso me apressar, por favor?

Naldo e os demais me espiaram e menearam a cabeça. Foi quando eu lancei o Valete de Paus sobre a mesa e fiz uma linda Sequência Real. Raspei as fichas da mesa sob o olhar fuzilante de Armandinho.

Eu ainda te mato, cara. É a terceira vez que tu mete um Valete nessa porra.

Levantei da cadeira e já me posicionei para pegar a mala de dinheiro.

Da próxima, faço Poker com um Rei de Copas.

O deboche foi claro, não restava dúvidas sobre isso. Armandinho se levantou na fúria, queria me atacar. DO NADA. Naldo e os demais tentaram apartar e levaram socos e pontapés. Acabou que todos eles estavam envolvidos na briga e não me viu sair de fininho com o André. Armandinho deixou os outros se divertirem – ele chamava briga de diversão – e saiu em seguida.

Dividi a grana com o meu parceiro e dei aqueles 20% maroto por ele ser fiel na jogatina.

Todo homem, em algum momento da vida, precisa ser fiel aos seus compromissos. E eu já estava atrasado para o meu.


PARTE II – O Otário

Eu estava colocando a minha máscara ninja quando percebi que o Armandinho se aproximava sorrateiramente.

A bituca de cigarro fora jogada no chão e pisada por ele, como se fosse um forasteiro que acaba de chegar à cidade atrás do alvo para matar. Ele tinha esse jeito brega, mas era um agiota legal.

Tu usa máscara, Benjamin? – indagou ele, sério.

Meneei a cabeça de forma positiva. Uma coisa que aprendi nessa pandemia é o valor do silêncio: quando não falo muito, evito a falta de ar.

Armandinho já estava se preparando para puxar outro cigarro, quando eu pedi para ele dar um tempo. “Pra evitar deixar pistas”, eu disse. Eu tinha falado para ele que um cliente não me pagou pelo serviço da semana passada. Alegou que eu devia ter esperado o carinha tirar a fantasia de palhaço.

E que diferença fazia?

Matei o cara errado – menti. Óbvio que não faço rolê aleatório por aí. E óbvio também que ninguém deixou de me pagar, mas eu precisava da grana do Poker e da companhia de Armandinho.

Armandinho arregalou os olhos, para logo depois gargalhar.

Tu é maluco, otário!

Uma coisa legal do Armandinho é que todo mundo pra ele é otário, não importa com quem ele esteja falando. Sei que é uma coisa nossa de carioca, mas eu nunca gostei de tratar as pessoas assim, afinal, não sei com quem estou falando. E se for bandido?


PARTE III – Éramos Seis

No meio do caminho, eu e Armandinho caminhávamos com rumo definido. Adiante, algo me deixou puto, e poucas coisas me deixam puto nessa vida: um aglomerado de quatro pessoas no ponto de ônibus.

Quem é o carinha que tu vai pegar? – perguntou o Armandinho, olhando atentamente para o grupo.

Um otário.

Enquanto Armandinho ria, eu observava as pessoas no ponto de ônibus. Aquele cenário na Presidente Vargas estava curiosamente nebuloso. Parecia cenário de Silent Hill.

Algumas poucas pessoas que passavam de carro olhavam pra gente de forma esquisita. Não julgo. O moleque de cabelo verde rebolava cada vez que rodava para ver se vinha algum ônibus.

Nada contra, tenho até amigos que pintam o cabelo de rosa.

A garota morena, que devia ter uns 25 anos, trabalhada na blusinha e calça de couro, não tirava os olhos de mim. Imagino que seja difícil mesmo resistir a esse cavanhaque e a esse coque samurai. Sou irresistível.

O jovem negro ali da ponta, tentando fazer uma ligação sem sucesso. Tinha cara de funcionário de alguma empresa de contabilidade. Não sei, mas sempre acho que esses caras de relógio grosso, camisa de manga ¾ listrada e portando pasta trabalha com a contabilidade.

E o idoso bocejando com as mãos nos bolsos? Velho não pode ficar de bobeira que já quer dormir. Não julgo. Quase bocejei também.

Todos eles me encaravam igualmente. Com certeza, assim como eu, ideias a respeito da minha aparência faziam parte de seus pensamentos. Um cara como eu, branco, cabelos aloirados e de coque samurai, bonito; trajando uma camisa preta por baixo de um paletó marrom, uma calça social e sapatos de camurça; e claro, meu histórico de atleta, verdadeiro, sem sombra de dúvidas.

É, nenhuma ideia errada sobre mim eles teriam. Fico satisfeito quando eu tiro conclusões acertadas.

Vamos rachar um Uber? – perguntei, fazendo todos menearem a cabeça, na dúvida. Não esperei uma resposta positiva, e saquei meu celular do bolso.

Armandinho me puxou no canto, tentou falar entredentes para ninguém ouvir.

Uber, cara? Fala logo quem é o otário que tu quer encaçapar que eu te ajudo e a gente se manda daqui.

Mas, por que você acha que eu chamei o Uber?

Armandinho fez cara de surpresa, e logo piscou o olho, entendendo a malandragem.

Vai caber todos no carro? – indagou o moleque do cabelo verde.

Posso ir no colo de alguém – rebateu a morena, me secando descaradamente. O moleque do cabelo verde fez cara de nojo, por um momento, achando que era com ele.

Desliguei o celular e avisei que o Uber estava para chegar. “Demos sorte, ele tá perto”, eu disse. Como num passe de mágica, um carro preto cruzou a esquina e parou rente à calçada. Todos aliviados, já preparados para se aproximar do veículo, quando três caras saltam do carro, armados de pistolas.

Fiquei horrorizado, já que nem no cenário de Silent Hill a violência dá sossego no Rio de Janeiro. Os caras mandaram passar tudo, mas o jovem negro com cara de contador, tentou correr. Não sei o que ele pensou, porque não havia nada ali para se esquivar de uma bala. E não se esquivou. Levou DOIS balaços pelas costas e caiu de cara no chão.

A morena gritou, deu chilique, pediu pela própria vida. Um dos meliantes analisou o caso com esmero, mas foi interrompido pelo grito abafado do velho. Teve um infarto ali mesmo. Velho é um perigo, morre por qualquer coisinha.

A essa altura, o moleque do cabelo verde já tinha dado mais bandeira que a torcida a favor do Governo em dia de manifestação. Os caras não gostaram.

Mete o carai nessa bicha que eu não tenho paciência!

Tive a impressão de que o moleque ia correr, mas não deu tempo; levou muita surra. Era para virar homem, dizia um deles. O moleque desmaiou, banhado de sangue. Armandinho não entendendo nada.

Que tá acontecendo, Benjamin? Nera só um otário?

Nem respondi. Saquei que a morena queria vazar, mas um dos bandidos, mordendo os lábios, começou a afrouxar o cinto na direção dela.

Para aí, rapaz – impedi – vocês já pegaram o que queriam, não? Não precisa disso.

A lá, o cara tá de saca – disse o branquinho de cabelo loiro – mete o bagulho?

Pode meter – disse um neguinho.

O sujeitinho branco apontou a pistola pra mim, enquanto isso, o neguinho se posicionou na frente da morena, já arriando as calças e calibrando a peça. O branquinho não gostou.

Tira o olho que eu vi primeiro, maluco!

Tu é mole demais, aposto que nem no ponto tá.

Tu quer ver o meu ponto, rapá?

O branquinho disse isso e sacudiu a peça mole, enquanto segurava a pistola na outra mão. O outro parceiro riu. O branquinho não gostou.

Mané!

E meteu dois tiros nas fuças do colega, que caiu no asfalto, mortinho. O outro parceiro ficou indignado: “tudo isso por conta de mulé?”

E meteu bala na direção do pescoço da garota. O sangue espirrou pelas costas do neguinho, que viu o sonho de se aliviar tombar na calçada. Aquilo tinha ido longe demais.

Olha a sujeira que nóis fez, maluco? – observou o neguinho sob o olhar matuto do único parceiro que sobrou – Bora vazar daqui!

Os dois caras empurraram eu e Armandinho e mandaram a gente entrar no carro, um gol branco de 2008. Armandinho atento, mas entendeu que era melhor seguir quieto.



PARTE IV – Cidade Violenta

Nós quatro, a 80 km/h, quem sairia vivo dessa noite sangrenta? Eu não fazia ideia, apenas que o carro deu uma guinada, cantou o asfalto e, por fim, freou de forma brusca em um cantão qualquer. Os caras não tinham tato mesmo. Abriram a porta e nos puxaram lá de dentro.

Pronto! Vou querer os 25% do vacilão lá, hein, quero nem saber.

Falou o neguinho, cheio de marra, mas 50% era muito para quem fez tanta sujeira. A propósito, todos fizeram sujeira por igual.

Era só o idoso, aquele senhor endividado até o pescoço. Não precisava fazer chacina – eu disse.

Qualé? – indignou-se o outro parceiro – Tu pediu delivery, agora tá reclamando do pacote extra?

Eu não pedi brinde.

Não dei tempo para ninguém. Puxei, de surpresa, minha g-lock escondida próxima do calcanhar e disparei contra o segundo elemento. O neguinho estava esperto, mas eu sempre tive boa cognição. Acertei logo a cabeça que é para ele não ter ideias inovadoras ali. Com ambos mortos, encarei Armandinho, mais passado que o bife da dona da pensão onde resido humildemente.

Cara, que noite! Então o velho é quem tava na tua mira? E acabou infartando – Armandinho riu, que nem um desgraçado que ri com a própria piada na mesa de bar.

Pra tu vê como meu trabalho é difícil. Por isso pedi que me acompanhasse, para que nada mais saísse dos meus planos.

Opa! Mas eu não fiz nada. A propósito, quanto vou ganhar nessa brincadeira?

Quem assiste é quem paga o ingresso.

Armandinho não teve tempo de reagir, e meti um balaço nas fuças dele. Caiu para trás no susto. Na ocasião, caiu também uma carta da minha manga: o valete de paus, minha sorte nas jogatinas.

Enquanto os três corpos jaziam sob a luz de uma belíssima lua cheia, caminhei até a beira da estrada, admirando minha carta de um lado, e mantendo a minha g-lock na outra.

Eis que um chevette preto com cara de carro de bandido estaciona adiante. Um sujeito de 60 e poucos anos desceu, pinta de chefe da máfia, paletó marrom, e um cigarro pendurado no canto da boca. Avaliou o cenário, deu uma baforada com o cigarro. Pigarreou.

Tu usa máscara?

A gente se encarou por instantes. Depois ele riu e tossiu de novo. Na minha cara. Deu um tapinha maroto nas minhas costas.

Salvando vidas, entendo...– ele espia por cima do meu ombro – Era pra ser só o Armandinho.

Era, não foi. Chamei por um Uber, recebi assaltantes.

Cidade violenta – ele concluiu, depois tossiu de novo.

Se ele soubesse como é difícil trabalhar para uma lista de clientes em uma mesma semana. Eu não daria conta sozinho de duas ofertas, o velho e o agiota. Mas, da próxima, não vou chamar o Uber. Amadores.

E sim, a cidade está muito violenta, e eu odeio violência, inclusive.




Conto escrito por
Cristina Ravela

Produção Four Elements
Marcos Vinícius da Silva
Melqui Rodrigues
Hugo Martins
Cristina Ravela



Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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