WEBTVPLAY APRESENTA
OS PECADOS DE CADA UM
Episódio especial da pré- segunda temporada
de
Francisco Siqueira
© 2021, Widcyber.
Todos os direitos reservados.
“O
inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.”
William
Shakespeare
28
de fevereiro, 2017,
terça-feira
de carnaval: 14h40min.
As
pupilas de Ronaldo
se
dilatam. Ele sente a boca completamente seca e então range os
dentes, um impulso tão vigoroso que faz as mandíbulas doerem.
Agachado, no final de uma escadaria, com os braços enlaçando os
joelhos com extrema força, Ronaldo chora copiosamente, como uma
criança desamparada —
e
não como um homem no alto dos seus cinquenta e cinco anos —,
até conseguir recuperar a calma —
ou
uma relativa calma. Ato contínuo, após desatar os braços, resgata
com uma das mãos —
ambas um bocado
trêmulas —
o celular depositado sobre o degrau ao seu lado. Conforme segue
teclando, um tanto hesitante a sequência de números sobre a tela,
vai repetindo para
si mesmo, tentando se convencer,
enquanto tomado
por um misto de preocupação excessiva, irritabilidade e uma
vergonha avassaladora,
de
que sim, precisará dramatizar, se alterar, dissimular se for
preciso...
A
ligação, por fim, é completada. No visor, o nome de Márcio
Antônio.
—
Alô?
— a
voz de Ronaldo se acelera um pouco —
Por favor, me ajude! Me ajude!
1962...
O
choro estridente do bebê ecoava pela casa. Um choro rítmico e
repetitivo que deixava Antoniel cada vez mais impaciente, se sentindo
perdido e incapaz, a ponto de enlouquecer. Norma precisava reagir. A
criança precisava ser amamentada. Não ia demorar muito para que
recebessem reclamações de algum vizinho.
Antoniel
respirou fundo e engoliu saliva o quanto achou necessário, à medida
que andava de um lado para o outro, sobre o tapete da sala, a passos
largos. O choro do bebê, o senso de urgência, a apatia de Norma...
Precisava resolver aquilo quanto antes. Desde a manhã anterior,
quando haviam retornado da maternidade, que não dormia. Em que
estado iria chegar no dia seguinte ao Tribunal de Justiça para
trabalhar? E com certeza não conseguiria se concentrar para exercer
suas funções de desembargador, ou qualquer outra função por mais
irrelevante que pudesse ser diante da situação que estaria deixando
em casa. Ainda que com o apoio de sua mãe, que já estava a caminho
para ajudar a ele, e, principalmente, à Norma.
Antoniel
se dirigiu ao banheiro com o mesmo afã que vinha mantendo em sua
peregrinação sem destino sobre o tapete da sala. De frente para o
espelho, acima da pia, ele recebeu de volta o reflexo de uma sombra,
um rosto completamente agastado, com inchaço nos olhos, olheiras,
quase não reconhecendo a si próprio... Por fim, pegou um
comprimido, um calmante, no pequeno compartimento atrás do espelho e
o engoliu de uma só vez com água. Quando tentou devolver o copo
para a borda da pia, se surpreendeu ao ouvir o som do vidro se
espatifando no chão.
O
choro do bebê, o senso de urgência, a apatia de Norma...
Antoniel
se abaixou, sem pressa, para recolher os cacos próximos de seus pés
e, tão logo os derramou dentro da lixeira, não conseguiu se conter,
não conseguiu conter as lágrimas que começavam a correr em
profusão por sobre o seu rosto.
1974...
Ronaldo
sentia mais e mais a aceleração dos batimentos do seu coração, o
suor, a alteração na respiração, o frio na barriga e uma vontade
quase incontrolável de urinar enquanto ouvia Antoniel, impaciente,
gritando seu nome a cada chamamento, conforme esmurrava a porta
trancada do seu quarto.
— Escuta
seu moleque! Abra logo a porra desta porta. Se eu tiver de colocá-la
abaixo, você não vai gostar do que vai ver.
Ronaldo,
encolhido sobre a cama e mantendo os olhos cerrados, teve a impressão
de que iria enfartar tamanho o descontrole absurdo dos batimentos do
seu coração. De repente, sentiu uma mão
tocar sua testa. Uma mão fria, tão fria como o suor que o queimava,
e então abriu os olhos. Laura, graças a Deus, estava lá, sentada
ao seu lado e sorrindo, um sorriso discreto, quase imperceptível.
— Por
quê? Por que ele, eles não me deixam em paz? — Ronaldo indagou à
medida que tentava estancar o choro que já rolava em profusão.
— Infelizmente
não há o que se fazer. Não por agora, querido — Laura respondeu
pausadamente, sem deixar de acariciar a testa do irmão — Vamos
arranjar um jeito de resolver tudo isso, certo?
— Sei
o que eles irão fazer. Você sabe o que eles irão fazer. Por que
eles se esqueceram de você, Laura?
Laura
permaneceu em silêncio por alguns instantes sem deixar de fitar o
irmão.
— Eles
não se esqueceram de mim, querido — ela retrucou, por fim, firme
como uma rocha, exibindo, ainda que um tanto reticente, os hematomas,
as manchas rochas nos braços e pernas.
De
repente, Ronaldo viu-se em meio a uma escuridão terrível e olhou à
sua volta, ansioso, procurando a pequena Bruna, enquanto a dimensão
do quarto retornava à sua visão, enquanto os murros sobre a porta e
os brados do pai se sucediam,
— Onde
ela está? Precisamos protegê-la...
— Ela
quem, querido?
A
voz de Laura soou a Ronaldo carregada de dúvidas e ambiguidades.
— A
nossa irmã — ele devolveu incisivo, impaciente — Bruna! Onde ela
está? Eles irão fazer com ela o que fazem com a gente. Sei disso...
O
estrondo da porta do quarto sendo arrombada fez com que Ronaldo desse
um salto da cama, célere, buscando se proteger imediatamente,
encolhendo-se, acuado, num canto de parede, ao mesmo tempo em que
enxergava, desesperado, com os olhos semicerrados voltados para o
chão, a sombra de Antoniel se avolumando na sua direção, ao passo
que uma sensação de morte, perda de controle e de que estava fora
do corpo, e que as coisas no seu entorno não eram reais, lhe tomavam
de assombro.
1962...
Antoniel
estacou sob o batente da porta do quarto e ficou observando Norma,
sentada à beira da cama, as mãos sobre os joelhos, os olhos no
vazio e de camisola, a mesma com que saíra da maternidade na manhã
anterior. O choro do bebê continuava e Norma permanecia impassível.
Antoniel, claudicante, caminhou na sua direção até que, após se
aproximar, inclinou o corpo para frente, baixando-o a uma altura
considerável, e, tão logo abeirou o rosto ao da esposa, chamou por
seu nome. Nenhum retorno. Norma seguia inerte, como se qualquer sinal
de vida houvesse desaparecido de seu corpo.
— Por
quê? Por quê?
Antoniel,
rangendo os dentes, não conseguiu se conter. Esbofeteou Norma, uma,
duas vezes e ela, ainda assim, não lhe deu qualquer retorno.
— Por
quê? Por quê?
Outra
vez. Nenhuma reação. Mais um tapa, depositado com mais força e
finalmente Norma reagiu, recuando de pronto, retirando as mãos de
sobre os joelhos e agarrando o tecido da colcha, agarrando o colchão,
passando a encarar Antoniel, que continuava a enxergar em seus olhos
a mesma tristeza, intensa, infinita, que a invadiu tão logo após a
notícia do nascimento da criança, da criança que eles tanto haviam
desejado...
— Por
favor, Norma. Por favor!
Norma
pestanejou, sem pressa alguma, até decidir manter os olhos cerrados
por completo, entreabrindo-os, em seguida, morosamente, ao mesmo
tempo em que engolia em seco para só então, por fim, se pronunciar;
a voz fraca realçando toda sua vulnerabilidade.
— Ela
se foi.
Antoniel
meneou a cabeça, repetidas vezes, enquanto dizia a si mesmo que não,
que tudo aquilo não poderia estar acontecendo, até que se permitiu
lançar um grito, tão alto e duradouro quanto pudessem suportar seus
pulmões. Era a única coisa que lhe restava fazer naquele momento
para que não enlouquecesse de uma vez por todas.
Norma,
inalterada, mediu o marido de cima a baixo; em seguida, desviou o
olhar, voltando a contemplar o vazio à sua frente.
Num
rompante, Antoniel deixou o quarto, e, sem demora, retornou com o
bebê em seu colo, não tardando a aproximá-lo de Norma, que, mesmo
diante da agitação da criança, do choro estridente, rítmico e
repetitivo, não demonstrou nenhuma reação de incômodo. Apenas
parecia contemplar o pequeno ser disposto diante de si, como se
buscasse reconhecê-lo, como se quisesse ter a certeza do que estaria
vendo.
— É
a nossa Laura. Ela está aqui. Ela não se foi. Ela precisa de você.
O
sentimento de desamparo, a desesperança e os pensamentos negativos e
intensos que vinham tomando conta de Norma a invadiram com uma fúria
absurda, tornando sua respiração curva e seus membros, trêmulos.
Ato contínuo, seu corpo recuou sobre a cama alguns centímetros. A
expressão em seu rosto, demonstrando horror, ansiedade e surpresa,
começava a digladiar com a inesperada sensação de que não havia
feito o suficiente por sua filha Laura; de que não havia feito o
suficiente para salvar o mundo...
Uma
taquicardia; uma exaustão emocional...
Antoniel
continuava a insistir em lhe apresentar a criança indefesa, o
rostinho retorcido e também assustado.
— Ela
precisa de você, Norma. A nossa Laura precisa de você, de nós.
Norma
sentiu a alma esmagada, um cansaço imenso, entretanto, a intensidade
de um amor, talvez inevitável, e na mesma proporção, começou a
penetrar-lhe o ser, acelerado, potente... Laura! Laura! Realmente
sua pequena Laura estava lá, à sua frente? Não seria uma
alucinação?
Ela
se recordou do bebê crescendo em seu ventre, do seu corpo mudando.
Recordou-se também do vínculo, da conexão que sentiu com aquela
criança dentro de si enquanto Antoniel via no seu semblante a
neutralidade sendo substituída pela emoção e pelo choro que não
demorou a escapar entre soluços.
— É
a nossa filha?
— Sim.
Sim — Antoniel afirmou, um sorriso amargo no canto dos lábios —
É a nossa pequena Laura.
Norma,
finalmente, cedeu e carinhosamente retirou o bebê do colo do pai e o
trouxe para si, com um zelo extremo, buscando confortá-lo.
03
de julho, 1998, sexta-feira...
Ronaldo,
vestindo um terno azul-marinho, uma gravata social em tom claro e
camisa social também clara, entrou na cozinha do pequeno apartamento
em que morava com Gaby e se deparou de pronto com a mesa posta do
café da manhã e com a companheira sentada à cabeceira, lhe
ofertando um sorriso um tanto tímido, mas também banhado de
cumplicidade, conforme o examinava de cima a baixo, fascinada.
— Está
lindo! — Gaby, com um sorriso alargado, se apressou em enaltecê-lo.
— Quem
sabe? — Ronaldo devolveu, dando de ombros — Detesto essas trocas
de chefia de gabinete...
— Quando
você vai decidir começar a aceitar elogios sem se autossabotar?
Ronaldo,
estreitando os olhos e franzindo a testa, deu de ombros mais uma vez.
Ainda permanecia parado, a poucos passos da mesa, observando a
companheira apaixonadamente feliz por um homem que não lhe fazia
jus... A noite passada havia sido maravilhosa. O sexo de
reconciliação, quase sempre, vinha sendo um dos melhores. Pelo
menos, nesses últimos meses, era o que ainda fazia despertar algum
desejo por Gaby, Ronaldo ponderou, enquanto seguia examinando a
companheira, ao mesmo tempo em que se questionava para onde tinha
ido, ou estava indo, toda aquela ardente inundação de sentimentos,
que havia chegado quase quatro anos antes, sem pedir licença, lhe
surpreendendo.
Por
que Gaby não passou de uma boa noite de sexo, um caso fugaz como
tantos outros antes dela? Como tantos outros durante esses quase
quatro anos em que estão juntos? Ronaldo meneou a cabeça, um gesto
quase imperceptível, digladiando com a sucessão de questionamentos
e ponderações descabidas que vinham invadindo sua mente já há
algum tempo, à medida que de novo e de novo tentava expulsá-los
para bem, bem longe.
— Café?
— Gaby perguntou solícita, amável, já apanhando a xícara
depositada à frente da cadeira vazia.
— Claro.
Ronaldo
respondeu sem pestanejar, se aproximando a passos rápidos, tomando
das mãos de Gaby a xícara cheia e entornando num só gole o seu
conteúdo, para, em seguida, depositar a louça sobre a mesa.
— Estou
atrasado.
Ele
informou, encolhendo os ombros largos e apertando os lábios numa
linha angustiante, para, daí, virar-se, abrupto, partindo sem
cerimônia.
04
de julho, 1998, sábado...
Ronaldo
estava sentado no sofá, de pijama, olhando para a TV sem saber ao
certo se deveria estar ali. Uma comichão o incomodava desde que
saíra da cama, há pouco. Tinha vontade de gritar bem alto! Tinha
vontade de sair correndo daquele apartamento e cruzar a rua bradando
aos céus...
— Bom
dia!
Ronaldo
voltou-se rapidamente na direção da voz que vinha da entrada da
sala. Lá estava Gaby, em pé, com uma xícara entre as mãos e um
sorriso irritante nos lábios.
— Trouxe
café pra você — Gaby esticou a xícara na direção do
companheiro ao mesmo tempo em que pareceu entrever em seu semblante
uma expressão de desagradável surpresa — Está tudo bem? —
perguntou, devolvendo a xícara de imediato para entre as mãos —
Como foi o primeiro dia com o novo chefe do gabinete? Nem tivemos
tempo de conversar ontem à noite. Estava exausta, desculpe...
Ronaldo,
com uma vivacidade notável, sem deixar de fitar Gaby nos olhos um
instante sequer, deu de ombros e cruzou e descruzou as pernas, uma,
duas, três vezes até decidir mantê-las abertas, bem abertas,
conforme ajeitou a postura, alinhado-se sobre o sofá.
— Você
sabe que eu não bebo café. Sou alérgico — respondeu, sublinhando
em voz alta, num misto de espanto e genuína indignação.
1981...
A
esperança de Ronaldo em começar um novo ciclo de sua vida quase
desapareceu, e por completo, ao colocar os pés naquele albergue para
pessoas desamparadas; aparentemente todas, como ele, moradoras das
ruas. O ambiente mal cheiroso e com um aspecto de relativo abandono,
com indivíduos transitando de um lado para o outro, alguns parecendo
confusos, além de um falatório que dava a impressão de que ninguém
se entendia, só contribuiu, e muito, para que os ecos do desespero e
desalento aumentassem dentro de si. Contudo, qualquer coisa seria
melhor que continuar a viver pelas calçadas,
praças, rodovias, parques, viadutos, postos de gasolina, túneis,
depósitos e prédios abandonados, becos, lixões, ferros-velhos...
Melhor
até mesmo que viver naquela Colônia Correcional que chamam de
Instituto Disciplinar, Ronaldo
refletiu, amargo, sentindo um tremor absurdo por todo o corpo
franzino, ligeiramente curvado, conforme buscava se convencer que
faria de tudo que fosse preciso para sair
daquele fundo de poço.
— O
rapaz parece bem assustado.
Ronaldo,
arrancado de suas ponderações, virou-se de imediato tão logo
surpreendido por aquela repentina observação. Ao seu lado, não
muito distante, um homem aparentemente de meia-idade, magro ao
extremo, cabelos ralos e com um semblante desconfiado, apesar do
sorriso entredente, o encarava, firme, enquanto mantinha uma das mãos
na cintura.
— Já
deu pra perceber que aqui não é o paraíso, né mesmo?
O
tal homem voltou a se manifestar, sem deixar de fitar o jovem um
instante sequer, ao passo que Ronaldo decidiu manter-se em silêncio,
retornando a atenção para frente, supervisionando
a torre de babel exposta diante de si.
— Existe
a opção de voltar às ruas, rapaz, ou seja lá de onde você veio —
completou o tal homem num tom áspero — Vou te avisar. Escute bem —
anunciou, conquistando, por fim, a atenção de Ronaldo mais uma vez
— Aqui, quem não está doente, acaba pegando alguma coisa —
acabou por declarar, ao mesmo tempo em que uma mal disfarçada careta
tomava conta de seu rosto a fim de tentar amenizar a fisgada forte
que irrompeu no lado da cintura em que ainda mantinha uma das mãos —
Realmente isso aqui não é o paraíso. Tem
gente com problema de bebida, de droga. Todo mundo tem algum problema
rapaz. Quando começa uma briga, então, a gente tem de intervir. E
aqui roubam de tudo: tênis, cueca. E é muito difícil de descobrir
quem roubou.
Ronaldo,
após um dar de ombros, baixando as sobrancelhas e arqueando-as
juntas e ao mesmo tempo, estreitou os lábios enquanto rugas
impiedosas surgiram nos cantos da boca. Com um brilho glacial nos
olhos, voltou a mirar todo o seu entorno, indolente, firme, não
deixando de notar, também, o tal homem ainda parado ao seu lado,
observando-o como um gato observa a toca de um rato.
Não
será este o primeiro inferno o qual irei atravessar e tampouco será
o último de onde sairei com vida,
Ronaldo balbuciou, frio como o granito.
1999...
Gaby
estava de pé, apoiada à borda da mesa, no pequeno escritório do
apartamento onde morava com Ronaldo. Exibindo um ar inquietante,
seguido de uma respiração semi-irregular, encarava, com um olhar de
pouca surpresa e ressentimento, o companheiro sentado sobre o pequeno
sofá, não muito distante, onde se mantinha cabisbaixo, com os
cotovelos apoiados sobre os joelhos e as mãos cobrindo todo o rosto.
Ela o amava, reconhecia, ainda o amava. Mas fisicamente. Nada mais,
além disso. Nenhuma sintonia. Seus corações há muito já tinham
deixado de se colapsar e harmonizar. A magia que os tinha unido há
cinco anos, depois de terem vivido quatro meses de uma intensa
paixão, vinha se perdendo pelo caminho, se dissolvendo naturalmente,
como toda e qualquer relação. Entretanto, Ronaldo vinha sendo o
maior responsável por apressar essa queda.
— Estou
cansada... — Gaby falou, por fim; a garganta seca, arranhando —
Estou cansada das suas mudanças de humores. Estou cansada das suas
recaídas. Estou cansada de ver como você vem se entregando cada vez
mais à bebida...
— Pelo
amor de Deus, Gaby — Ronaldo retrucou, descobrindo o rosto,
passando a mirar a companheira com uma perplexidade raivosa — Eu só
tomei dois drinques...
— Hoje.
Agora. Mas a bebida, ao menos, ainda, não é o maior dos problemas e
você sabe disso — a voz dela soou agressiva. Mais agressiva do que
gostaria — Entramos num turbilhão... Melhor, você entrou num
turbilhão e não está mais conseguindo lidar com isso, Ronaldo.
Você precisa de ajuda médica, de um profissional...
— Eu
não quero falar sobre isso.
Ronaldo
respondeu de pronto, calmo, apesar dos pesares, e já decidido a sair
do escritório, a sair do apartamento, andar, espairecer... Contudo,
sabia muito bem que Gaby o aguardaria, de prontidão, disposta a
retomar aquela discussão independente da hora que ele decidisse
regressar.
— Você
se recusa a falar sobre isso, como sempre — Gaby cravou um olhar
crítico sobre Ronaldo, parecendo que o estava cortando em pedacinhos
— Só que não há mais como ignorar o que está acontecendo. E eu
estou muito preocupada...
— Não
há com o que se preocupar. Quantas e quantas vezes terei de repetir?
Gaby
se apoiou um pouco mais sobre a borda da mesa.
— Ronaldo,
você vem perdendo a percepção de si mesmo, os distúrbios de
memória, os formigamentos... — ela meneou a cabeça, permanecendo
em silêncio por alguns segundos antes de continuar — Esses sinais
não podem mais ser ignorados...
— Não,
não, Gaby. Você não tem esse direito...
— Tenho
o dever, Ronaldo. Estamos a cinco anos juntos e desde que essas
crises começaram, tenho a impressão de que venho te perdendo...
— Tenho
andado cansado, estressado. É somente isso — Ronaldo se defendeu;
a tensão nitidamente estampada em seu semblante — Sabe como estou
me sentindo, aos 37, em ter que disputar, pela segunda vez, uma vaga
de assessor, lá, no Ministério Público, com aquela garotada. É a
minha última chance, Gaby. Eles não vão querer saber se ingressei
na faculdade de Direito tarde demais.
— Não
ouse desviar do assunto — Gaby falou com a voz afetada, erguendo as
sobrancelhas.
— Você
deveria estar me apoiando...
— E
o que eu tenho feito ininterruptamente nesses últimos dois anos,
Ronaldo? Diga-me.
— Eu
não confio neles — Ronaldo disse, levantando-se — Nenhum deles
me ajudou quando os procurei. Ao contrário. Deixaram-me ainda mais
confuso... Eu não confio. Eu não confio. Eu cursei três anos de
Psicologia, esqueceu Gaby? Vocês, psicólogos, psiquiatras, Gaby,
pensam que o mundo todo está doente. Acreditam serem semideuses,
acima do bem e do mal, detentores de todas as verdades sobre a mente
dos outros, mas não aceitam nenhuma outra verdade que não esteja
dentro das suas arrogantes convicções.
— Você
está equivocado. Nós, psiquiatras, tratamos todas as questões de
ordem mental com equilíbrio e senso clínico. E além do mais, não
estou dizendo que você deva buscar um de nós... Tente um
neurologista...
— Porque,
diabo, então não me ajuda, já que acredita que eu tenho um
problema?
— Você
tem um problema! — Gaby replicou furiosa, indignada, afastando-se
um pouco da mesa — E se recusa a aceitar. Se recusa a me ouvir.
Você precisa identificar o que está acontecendo, até mesmo pra
saber se é algo com que deva se preocupar, de verdade. E eu não
posso fazer isso.
Uma
súbita quietude caiu sobre o pequeno escritório, a mesma de alguns
instantes, entretanto, conforme ouviam o silêncio um do outro,
Ronaldo e Gaby se olharam como seres humanos comuns. O efeito dessa
segunda trégua momentânea foi devastador. Ao menos para Ronaldo,
que se sentiu invadido, sendo analisado como um paciente qualquer,
por mais que Gaby parecesse manter a distância ética necessária.
— É
claro — Ronaldo iniciou; um sorriso entredente, ao mesmo tempo em
que vislumbrou uma visão dupla, tripla da imagem de Gaby que se
formou e desapareceu num intervalo de segundos — Você não me ama.
Não mais.
— O
quê? — Gaby o fitou entre desconcertada e incrédula — O que
isso tem a ver com o que estamos discutindo?
— Você
não me ama. Não mais — Ronaldo, sem perder Gaby de vista, começou
a caminhar de um lado para o outro no curto espaço da distância que
existia entre ele e a porta aberta do pequeno escritório — Essa
história de que está indo passar uns dias na casa dos seus pais...
— Já
tivemos essa conversa — ela o interrompeu sem demora — O meu
irmão está vindo me buscar e irei, sim, ficar um tempo na casa dos
meus pais. É para o nosso bem, Ronaldo. Eu preciso de um tempo.
Preciso pensar e aqui dentro deste apartamento...
— Não
— Ronaldo falou alto, avançando na direção de Gaby, fazendo com
que ela recuasse alguns passos — Isso é uma desculpa. Sei que você
não vai mais voltar. Está sem coragem de me dizer isso cara a cara
porque está saindo dessa relação, da nossa relação, da porra da
nossa relação com a consciência pesada.
Ronaldo
esticou o braço e socou a mesa, assustando Gaby.
— Esse
ex-professor que arranjou um espaço para que você atendesse seus
pacientes... Pensa que eu não sei o que está acontecendo entre
vocês dois?
Gaby
respirou profundamente por um momento, encarando o companheiro,
temerosa e perplexa, mas também, e principalmente, preocupada. Muito
preocupada. Não havia dúvidas de que o cérebro de Ronaldo estava
em ebulição; a questão era saber o grau dessa efervescência e o
quão estaria interferindo no seu nível de consciência.
— Ronaldo
— Gaby disse em tom calmo e contrito, mas com os dedos das mãos
tamborilando sobre a calça jeans — Eu preciso montar uma carteira
de pacientes. Desde que terminei minha Residência Médica, há dois
anos, você, melhor do que ninguém, sabe como foi e está sendo bem
difícil fazer isso. Assim como também está sendo difícil
encontrar um lugar para atendê-los... Esse ex-professor...
— Por
que não me deixa ajudá-la a montar um consultório?
— Não
vou deixar você contrair outra dívida por minha causa. Esqueceu-se
do financiamento que ainda estamos pagando deste apartamento?
— Precisamos
nos apoiar.
A
voz de Ronaldo, naquele instante, se tornou ilusoriamente suave,
apesar do seu olhar estável e ofendido. Mas Gaby não se deixou
enganar. O companheiro havia interpretado de outra maneira o que fora
dito.
— Estamos
andando em círculos — ela arrematou, já fazendo menção em
passar por Ronaldo, parado a poucos centímetros à sua frente —
Vou esperar meu irmão lá na sala...
Ronaldo
não permitiu que Gaby desse sequer mais um passo. Numa fração de
segundo a agarrou pelo pulso e a puxou para si.
— Eu
cuidei de você, Gaby. Eu escutei todas as suas lamúrias, eu
enxuguei suas lágrimas...
— Me
solta, por favor — Gaby pediu, perplexa, sentindo a amargura
palpável insinuada na voz de Ronaldo.
— Eu
passei por cima de todas as dificuldades, de todos os medos que eu
carregava e que me impediam de me aproximar, de me relacionar com
alguém, só para tê-la ao meu lado. Você me fez lutar por isso,
Gaby. Você me ajudou a acreditar que eu poderia deixar toda aquela
merda do meu passado pra trás e eu não precisei da ajuda de nenhum
idiota pra que isso acontecesse.
Gaby
sabia que o atordoamento que já a vinha consumindo a cada milésimo
de segundo sobrepujava uma possível tentativa de manter o controle
da situação. Pensou, censurando a si mesma, enquanto fitava Ronaldo
e seu semblante transtornado e, por incrível que pudesse parecer,
também amedrontado, que deveria ter insistido, deveria até mesmo
ter forçado Ronaldo a buscar ajuda. Os sinais começaram, há dois
anos, tão logo ela havia terminado a Residência, contudo, será que
eles já não existiam? Será que já não estavam lá, mas ela,
egoísta, determinada a se tornar a melhor, deixou o companheiro em
segundo, terceiro plano?... E por acaso se tornou a melhor para quê?
Para ficar atendendo meia dúzia de pacientes num espaço paliativo
fornecido por um ex-professor da faculdade?
— Ronaldo...
— Gaby anunciou um tanto hesitante, mas sem deixar de encarar o
companheiro — Vou te ajudar, mas não da forma que você deseja.
Até porque não posso... Irei conversar com alguns colegas... —
ela engole em seco — Há uma delas que vem buscando se especializar
em casos que envolvem amnésia crônica, mudanças de humores e
mudanças comportamentais... Inclusive comentei por alto...
Ronaldo
desconectou-se. Não ouviu mais nada ao seu redor. Não ouviu Gaby.
Nenhum som alcançava o seu cérebro, que viajou imediatamente ao
passado, ao momento em que salvou a irmã, a pequena Bruna das garras
daqueles verdugos. Há quanto tempo não lembrava daquilo? Na
verdade, nunca havia esquecido, todavia, aprendera a não permitir
que essas recordações o afetassem, tomassem o primeiro plano de
seus pensamentos, de sua existência...
Meneou
a cabeça, uma, duas, três vezes lutando contra o caleidoscópio de
emoções que começava a assolar cada um dos cantos de sua mente,
trazendo à tona, naquele instante, remorso e sentimento de culpa. O
que estava fazendo com Gaby? Por que a mantinha daquele jeito? Ele
deveria deixá-la partir, fazer o que quisesse. Ele era o vilão
dessa história. Sim. Sim. Se Gaby não o amava mais, que direito
tinha sobre isso? Ele que tivesse lutado antes, buscando valorizá-la
ao invés de desrespeitá-la, menosprezando a relação de ambos ao
se render às próprias fraquezas, às próprias más inclinações,
indo atrás de novidades, diversão ou fuga — ou o que fosse —,
tanto nas ruas ou em saunas, mergulhando de cabeça nas mais
repulsivas depravações em todos aqueles corpos, todos aqueles
homens que passaram por suas mãos, ainda que muita das vezes
carregasse a impressão de que todos aqueles absurdos não tivessem
passado de um pesadelo, de um maldito pesadelo.
Por
quê? Por que se deixou levar? Por que se permitiu voltar às saunas
neste último ano, quando as coisas entre ele e Gaby começaram a se
tornar cada vez mais insustentáveis? As ruas, as ruas, os garotos de
programa, os anônimos dispostos a fazer sexo rápido, sem
compromisso, eram bem mais seguros que a porra de uma sauna, onde
poderia acabar encontrando algum conhecido, esbarrar com alguém do
trabalho, ainda que estivessem lá pelo mesmo motivo... Onde poderia
dar de cara com a porra de algum conhecido de Gaby.
Gaby!
Gaby! Gaby!
Porque
permitiu se convencer a experimentar uma sauna? Não sentimos falta
daquilo que desconhecemos.
Ronaldo
se recorda do árduo autoconvencimento, dos dias e semanas de
racionalização depois das investidas, da obstinação do infeliz,
do maldito...
Oscar
Wilde, Oscar Wilde disse, sim, ele disse que um verdadeiro amigo te
apunhala pela frente.
“Ronaldo,
já conversamos sobre isso. O que seu pai fez foi horrível,
entretanto, a orientação sexual de uma pessoa não pode ser
causada, ou sequer modificada por abuso, ou agressão sexual. Você
não deve acreditar nessa questão. É mais um sofrimento que você
não precisa carregar...”
Não.
Não. Não confio. Não confio. Ronaldo balançou a cabeça,
veemente. Um gosto amargo na boca. Não. Não. Não era ele,
determinou para si com extrema ferocidade. Não podia ser ele.
Aquilo... Aquilo... eram... são impulsos homossexuais com os quais
vinha lutando todos os dias de sua vida... O seu subconsciente
continuava a arrastá-lo para aqueles esgotos e ele, um fraco, um
covarde, não se permitia lutar...
Um
cheiro de pele, pele humana, quente e úmida, um cheiro repulsivo
tomou conta das narinas de Ronaldo, enquanto uma dor irradiou, sem
grandes alardes, de um ponto a outro em seu cérebro. Era a culpa,
ele pensou, a culpa. Sim. Mesmo de olhos cerrados podia enxergar o
visível fio que o ligava à sua culpabilidade, mergulhando-o num
manto vazio, um abismo profundo de uma descrença enlouquecedora.
A
cueca, a cueca sempre vermelha...
O
cheiro de pele...
A
gravata...
O
cheiro de pele humana, quente e úmida...
Os
beijos dele... Ela assistindo a tudo... As mãos dele rendendo-se
diante de sua beleza, a beleza de um efebo proibido...
Não...
Não...
— Ronaldo
— Gaby o chamou, a voz embargada, praticamente invocando a presença
do companheiro — Me solta, por favor.
Remorso,
sentimento de culpa e tristeza, mas também raiva, ódio, mágoa e
repúdio tomaram conta de Ronaldo de uma só vez — emoções
lutando entre si para impor-se às demais; cada uma delas presentes e
concretas em sua consciência. Em contrapartida, essas mesmas emoções
pareciam pertencer a outra pessoa, a um terceiro, a alguém que, de
alguma forma, Ronaldo não conseguia distinguir... Mas isso era
impossível. Óbvio. Ronaldo certificou-se, prático, cuidadoso,
como aprendera a fazer sempre que se deparava com essas oscilações,
essas alternações. Tinha de se manter calmo. Encarar a realidade.
Esse absurdo há muito ficou para trás. Ele, Ronaldo, era bipolar.
Isso. Bi-po-lar. E também carregava uma tendência absurda para
fantasiar situações, criar memórias falsas, por mais que aquele
psicólogo idiota tenha ousado sugerir o contrário.
Talvez
eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha
própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração
pelas costas de minha própria mente. Ronaldo balbuciou,
balbuciou enquanto tentava desesperadamente se controlar. O céu e
o inferno provêm do mesmo coração, considerou
e repetiu e repetiu de novo e de novo e de novo e de novo,
respirando, respirando, respirando...
— Ronaldo...
Estamos cansados... Vamos...
A
voz de Gaby...
Ronaldo
encarou a companheira com um olhar indolente ao se deparar com sua
expressão espantada. Gaby o fitava fixamente, olhos arregalados,
marejados de lágrimas, e isso acabou por deixar Ronaldo, de certa
forma, contrariado, fazendo-o reagir, por fim, com um ar de surpresa
raivosa.
— Nós
te odiamos! — Ronaldo disparou alto, estridente. A raiva vindo em
seu auxílio.
“Nós?
Nós?”... Gaby franziu a testa e sentiu um frio na espinha como
nunca antes. Ronaldo, de fato, já não mantinha mais o controle
sobre si próprio; ele estava sob o efeito de uma raiva mais violenta
do que naqueles momentos de discussões que vinham permeando a
relação progressivamente.
— Nós
te odiamos!
Ronaldo
repetiu, suspirando e deixando o olhar vagar pelo espaço, meneando a
cabeça, sem pressa, enquanto Gaby, aflita, tentava escapar das mãos
que voltavam a apertar os seus braços. Resistência que deixou
Ronaldo ainda mais irritado, forçando, a partir de então, Gaby a
caminhar, ainda que de costas, até o pequeno sofá não muito
distante, lançando-a com fúria sobre o estofado, onde desmoronou,
quase perdendo o equilíbrio.
— Ronaldo...
— disse Gaby, ofegante — O meu irmão está para chegar...
Ronaldo
permaneceu de pé, parado por alguns instantes, as mãos firmes
continuando a prender os braços de Gaby. Sua mente cansada
enxergava, do alto, a companheira como uma tempestade violenta,
arrastando tudo o que via pela frente. Por fim, sorriu, a boca
aberta, a máscara da tragédia encarando Gaby, que lhe devolvia um
olhar carregado de desespero e aflição, um olhar que não deixava
dúvidas que ela estava diante de um ser humano sendo tomado por
algum tipo de surto psicótico.
— Bruna
— com a expressão atenuada e uma respiração cada vez mais
desacelerada, Ronaldo foi se abaixando à frente de Gaby até ficar
totalmente de joelhos — Bruna — repetiu, a voz pausada, um olhar
de pura surpresa e ressentimento confrontando Gaby — Bruna...
Onde... Onde você esteve todo esse tempo? Onde?
Gaby
precisava sair dali imediatamente. Precisava deixar o apartamento
quanto antes. Não adiantaria, naquele instante, tentar entender o
estressor que desencadeara aquela reação de Ronaldo e muito menos
ajudá-lo. Estava assustada demais para isso. Não sabia do que ele
seria capaz.
— Nããããããõoo!
Um
repentino grito, esganiçado, tomou conta de todo o escritório,
fazendo Gaby estremecer dos pés à cabeça, não lhe dando tempo
sequer de pensar ou reagir, pois, num átimo, Ronaldo se atirou de
vez sobre ela, segurando suas mãos para o alto, ao mesmo tempo em
que tentava alcançar seu pescoço e suas orelhas com os lábios e
com a língua, que mais parecia uma serpente exasperada... Investidas
inúteis, já que Gaby se debatia, buscando de todas as maneiras
possíveis se livrar daquele ataque anunciado.
— Ronaldo...
— ela suplicou, as pernas se agitando, as lágrimas começando a
cair pelo rosto — Sou eu. Gaby.
— Nós...
— Ronaldo estacou de súbito, recuando, permanecendo a poucos
centímetros de distância, entretanto, sem libertar Gaby — Eu e
sua mãe, lhes demos tudo. Então, nada mais justo que nos
retribua... — sua voz soou rouca, porém,
firme, ameaçadora, conforme olhava para a companheira como se
estivesse apreciando algo vivo, belo e intocável, mas que, ao mesmo
tempo, tinha sofrido um golpe mortal.
— Nããããããõoo!
Ronaldo
tentou largar os braços de Gaby, tentou desesperadamente se afastar,
mas não conseguia. Algo, alguém mais forte que ele, não lhe
deixava agir, não permitia que movesse um músculo sequer que não
fosse ao intuito de mantê-lo na posição opressora em que se
encontrava.
— Nããããããõoo!
Ele
gritou de novo e mais uma vez, meneando a cabeça com força,
repetindo para si mesmo que talvez fosse vítima de uma forma leve de
esquizofrenia, é isso, e que carregava uma tendência absurda para
fantasiar situações, criar memórias falsas... Aqueles
psicólogos idiotas. Aqueles psicólogos idiotas. Eu não preciso de
um psiquiatra, insistiu, insistiu e insistiu enquanto lutava com
suas emoções e seus segredos mais sombrios, enquanto lutava com o
dom e a percepção de si mesmo.
Nesse
instante, Gaby, num nanossegundo que não lhe passou despercebido,
reuniu todas as suas forças, conseguindo, por fim, empurrar Ronaldo,
que, desequilibrado, ainda tentou se apoiar no que fosse possível,
mas em vão, caindo para trás, um baque surdo no chão, ao tempo que
voltava a assumir, sem demora, a postura colérica e ofensiva,
acompanhada de um rugido crescente na cabeça. Sim. Um bramido
que vinha exatamente de dentro de sua cabeça conforme ouvia outro
rumor em alguma parte de dentro dela.
Gaby,
de um salto, após limpar o rosto com as costas das mãos, se pôs de
pé, preparada para a fuga mais que emergencial, mas não conseguiu
ir adiante, visto que Ronaldo segurou um de seus pés, firme,
derrubando-a no chão, contudo, determinada, movida pelo instinto
básico de sobrevivência, ela chutou a mão para longe enquanto
forçava o próprio corpo, se arrastando para frente.
Não.
Não estava em total desvantagem. Ronaldo podia ser homem, sua força
física o beneficiava, além do fato de estar fora de si, mas não
seriam suficientes para impedir Gaby de reagir, enquanto pudesse se
manter distante dele. Ela afirmou entredentes, se levantando, não
deixando de fixar um só instante a porta aberta do pequeno
escritório. Entretanto, foi novamente derrubada, e antes mesmo de se
deixar imobilizar, virou-se, já subindo o joelho direito até a
altura do ombro, conforme via Ronaldo, a compleição magra, as
costas ligeiramente curvadas, indo na sua direção, disposto a cair
brutalmente sobre ela. Gaby permitiu deliberadamente que ele se
aproximasse o bastante para, só então, estender a perna para
frente, dando um chute bem forte em sua barriga, fazendo com que
Ronaldo, com o impacto, fosse jogado para trás, mas não o
suficiente para derrubá-lo.
Onde
estava o seu irmão que não chegava? Gaby praguejou à medida que
tentava se erguer, tropeçando nos próprios pés, conseguindo, por
fim, correr.
Eu
não preciso de um psiquiatra. Eu não preciso de um psiquiatra. Mas
é claro que você não precisa de um psiquiatra, Ronaldo debatia
dentro de sua mente ao passo que recuperava o equilíbrio, já
correndo atrás de Gaby, alcançando-a antes que chegasse à porta do
apartamento, agarrando num salto o seu pescoço e puxando-a para
trás.
Uma
vadia. Uma vadia, ele gritou. Ela não vai nos destruir.
Ronaldo continuava a bradar enquanto empregava toda sua força,
tentando derrubar Gaby, que com sua maldita resistência tonara-se
extremamente pesada e seguia lutando até, finalmente, levar uma
cotovelada na testa.
Morrer...
Eu não posso morrer... Gaby pensou, sentindo uma dor aguda se
espalhando por todo o seu corpo ao mesmo tempo em que se viu tombada
no chão, avistando Ronaldo se colocando acima dela, pressionando as
pernas dele ao redor da sua cintura, imobilizando-a por completo
enquanto buscava avidamente o caminho de sua virilha.
— Ronaldo,
por favor. Não faça nada comigo.
Gaby
começou a debater os braços e Ronaldo, possesso, tentou segurá-los,
conseguindo prender um deles.
— Ronaldo...
Gaby
suplicou, ofegante, encarando o companheiro com firmeza, tentando,
num último e desesperado recurso, trazê-lo de volta à realidade,
mesmo diante de seu semblante carregado de uma frieza sem igual, sem
remorso ou sentimento de culpa... Um esforço em vão, pois Ronaldo a
golpeou na lateral da cabeça, fazendo-a perder os sentidos.
2019...
— Não
há sombra de dúvidas que neste caso a raiva foi desencadeada por
estressores... — Júlia Mathias busca esclarecer; uma expressão
solene e determinada — E a outra identidade tomou as rédeas da
situação.
— Estressores?
— o advogado Gregório, atrás de sua mesa, com os braços cruzados
diante do peito, questiona um tanto intrigado.
— Fatores
que instigam. Podem ser provocados por estímulos pequenos ou por uma
tensão crônica.
O
advogado descruza os braços e em seguida inclina-se um pouco para
frente ao mesmo tempo em que apoia os cotovelos sobre a mesa,
deixando as mãos sobrepostas, próximas ao queixo, enquanto assume
um semblante reflexivo.
— O
meu cliente esfaqueou a esposa seis vezes — Gregório diz num tom
de voz extremamente obstinado, liberando as mãos logo em seguida
para retornar de pronto ao encosto da cadeira — Os dois estavam
discutindo, ferozmente, de acordo com os vizinhos. E não foi a
primeira e nem a segunda e tampouco a terceira vez que isso
aconteceu. E a senhora quer realmente que o tribunal acredite que não
foi o marido que a golpeou?
— É
exatamente o que estou tentando explicar. O seu cliente... — Júlia
diz, realçando o pronome possessivo, usado com veemência pelo
advogado — Vai precisar responder pelo ato cometido, porém...
— Doutora
— Gregório
a interrompe, sem pestanejar, reforçando, num átimo, a seriedade
estampada na face —
Estou lutando para jogar por terra a determinação da Promotoria em
transformar este processo numa tentativa de homicídio. Se eu não
conseguir, o caso irá parar nas mãos do Tribunal do Júri. A
senhora não faz ideia de como será enfrentar um Tribunal do Júri e
ainda mais tendo como carro-chefe o depoimento da vítima.
— Eu
não estou aqui para convencer o Júri, a Justiça, ou o que seja.
Até mesmo porque o senhor ainda não decidiu sobre a necessidade do
meu depoimento. Estou aqui para fornecer ao senhor uma análise
sensata e precisa da situação mental do seu cliente, meu paciente —
Júlia completa, sem pressa.
— Ok
— Gregório assente à medida que inspira forte, profundo —
Então, o meu cliente, o seu paciente, ou melhor, a segunda persona
dele, não é isso? — ele ergue as sobrancelhas em
descrédito — Foi quem tentou eliminar a esposa
porque descobriu que ela o traía? Quer dizer, traía o outro?
— Esse
é o raciocino da sua linha de defesa, correto? A dignidade, a
hombridade ferida ante a descoberta do adultério. Mas o senhor sabe,
tanto quanto eu, que o seu cliente tinha ciência dos casos
extraconjugais da esposa há tempos, e decidiu, ainda assim, seguir
adiante. Entretanto, optou por não encarar o que lhe incomodava, por
não resolver o problema ou demais contratempos oriundos dessa
decisão, dessa omissão. Decidiu reprimir mágoa, tristeza, medo e
raiva e expressar todas essas emoções através de discussões e
violências verbais infindáveis, acreditando que, utilizando-se
desse caos, obteria a recompensa que precisava, mas nunca conseguiu
alcançar o seu objetivo. A não ser uma postura cada vez mais
defensiva e ofensiva por parte da esposa — Júlia Mathias inclina a
cabeça um pouco para o lado num gesto quase imperceptível — Mas
algo, que ainda não sabemos, o ameaçou...
— Que
foi, então, o motivo para o delito?
— Não.
Foi o estressor. O meu paciente não atacou a esposa porque se sentiu
rejeitado. Não. Não. Ele se sentiu ameaçado. E não foi na sua
hombridade. Isso já ficou claro em nossas sessões. Algo, alguma
coisa, que até aquele momento esteve fora do arco de intolerância e
repulsão que ele e a esposa alimentavam, o ameaçou de tal forma que
sua outra identidade decidiu protegê-los.
— Então,
é claro, por isso ele afrima não se recordar com exatidão desse
momento? — Gregório indaga numa voz controlada,
testando o equilíbrio de Júlia.
— Mudança
de uma identidade para outra com amnésia concomitante.
— Não
se é realmente criminoso quando se sofre da cabeça — Gregório
volta a cruzar os braços enquanto denota um semblante contrariado,
fazendo questão de manter o seu frio desdém em relação à Júlia
— Todos sabem disso. A doutora sabe disso. Mas às vezes os
tribunais não concordam. E apresentar meras suposições não ajuda
em nada.
— Não
se trata de uma mera suposição... — Júlia engole em seco e
hesita um pouco antes de continuar — As intervenções que vêm
sendo realizadas no paciente são elaboradas, prolongadas e
manuseadas com prudência e senso clínico.
— Doutora
Júlia — Gregório descruza os braços e respira fundo antes de
prosseguir — Não estou suspeitando da sua capacidade profissional,
e nem poderia. Mas se nem mesmo seu paciente lhe confessou o
motivo... — ele faz um gesto aleatório com uma das mãos — Ou
deixou claro o estressor que o levou a cometer o delito...
— Ele
não se recorda. O senhor sabe disso. E eu acabei de esclarecer esse
ponto. E a outra identidade...
— Ok,
doutora. A promotoria irá questionar por que razão o suposto
transtorno dissociativo do meu cliente não foi diagnosticado
anteriormente, durante as duas terapias psiquiátricas as quais se
submeteu quando foi acometido por crises de depressão. A senhora
alega que esse distúrbio — Gregório, com suas sobrancelhas
arqueadas e os olhos lampejando, fita a psiquiatra como se a
estivesse desafiando — Posso chamar de distúrbio, não posso? —
ele questiona sem esperar nenhuma resposta — Acomete o meu cliente
possivelmente desde sua infância.
Júlia
Mathias encara o
advogado com a fisionomia tomada pela muda certeza daqueles que são
forçados a lidar com realidades complexas, mas que não passam de
naturezas débeis, ao passo que Gregório segue sustentando uma
convicção tamanha no olhar.
— Se
ainda hoje não há critérios muito bem definidos para diagnosticar
os transtornos dissociativos, imagine há vinte anos... — Júlia
replica, sem se alterar.
— O
meu cliente recusa veementemente essa linha de defesa — o advogado
se inclina para frente, cauteloso, e espalma as mãos enormes sobre a
mesa — Ele se sujeitou a esse tratamento, que, aliás, não o está
deixando nem um pouco satisfeito, por pressão da Justiça e
acreditando que iríamos comprovar tão somente um estado de ânimo
alterado, uma perda súbita de controle que o levou a praticar o
infeliz delito. Não deveria existir nenhuma patologia inserida nessa
questão.
— Ele
não tem ciência de que coexiste com outra identidade — Júlia
Mathias segue fitando Gregório, firme, resoluta, enquanto avalia os
prós e os contras do que pretende dizer — Ele cresceu com essa
dissociação, com sintomas que até hoje considera normais, pois
nenhum desses sintomas implicou em qualquer mudança em suas
experiências subjetivas.
— Doutora...
— o advogado permanece sustentando uma pose de indiferença
notoriamente exagerada, ao passo que recolhe as mãos de cima
da mesa e torna novamente ao encosto da cadeira —
É possível que profissionais predispostos a encontrar dissociação
de personalidades, façam um diagnóstico equivocado e desmedido?
— É
possível — Júlia responde de imediato e ainda mais decidida, se
sem deixar intimidar — Muitos associam os sintomas dissociativos à
histeria e a histeria à fantasia. Mas uma boa exploração
psicopatológica é a base do diagnóstico clínico. Ela vai muito
além de um diagnóstico feito, por exemplo, “por falha” ou pura
e simplesmente por descartar hipóteses.
— Doutora
Júlia, o meu cliente, o seu paciente, é uma figura respeitada e
mais do que influente nos altos escalões da nossa política. Não
preciso lembrá-la disso. Esse julgamento irá abalar, já está
abalando, e muito, a sua imagem e a sua reputação, antes mesmo de
um veredicto final. Mas ainda assim, após
as devidas apelações que podemos conseguir, considerando até mesmo
uma improvável absolvição, ele poderá retomar a própria vida sem
grandes percalços. Contudo, se incluirmos um distúrbio mental nessa
receita, uma internação psiquiátrica que poderá se estender a
médio ou longo prazo, essa possibilidade deixará de existir.
— Seu
cliente, o meu paciente, é apenas um profissional que atua no Poder
Judiciário. Não é uma celebridade. E ainda que o fosse, ele não
vive no Olimpo.
27
de Julho, 2017, quinta-feira
Gabriela
dá um soco na mesa, assustando os dois homens.
— Então
havia uma quarta pessoa na casa? Eve não criou isso.
— Como
assim, criou? — Claus estaca a poucos centímetros da psiquiatra —
Doutora, a informação de que o paciente foi encontrado
superficialmente
ferido e desacordado no local do crime, consta
no laudo emitido pelo médico parecerista.
Gabriela
se vê perdida em questão de instantes entre lógica e razão,
todavia, não consegue concatenar, pensar em algo concreto...
— O
que esse professor fazia na chácara? — é tudo o que Gabriela
consegue raciocinar — Se o celular dele estava lá, não restam
dúvidas de que ele também estava... ou esteve...
— E,
porque, esse professor iria embora e deixaria o telefone?
— Porque
sua linha de defesa, doutor Claus... — Gabriela ergue a voz numa
entonação furiosa — Não tomou o caminho de que talvez essa
quarta pessoa, possivelmente esse professor, possa ser responsável
pelos assassinatos daquela noite, na chácara? Porque o senhor quer
que eu estabeleça um diagnóstico inconsistente? — ela se vira de
imediato na direção do diretor Orlando e depois retorna o seu campo
de visão, inquisidor, para o advogado — Para facilitar o trabalho
de vocês dois? É isso? Quer que eu também estabeleça uma lista de
possibilidades para ajudar na sua ordeira e honesta linha de defesa,
doutor Claus? Se preferir, além do TDI também posso incluir no
laudo médico do desembargador a paranoia, uma deficiência afetiva,
uma necessidade de ser reconhecido... Um impulso homicida, o que
acha?
A
tensão aumenta. Os
olhos do advogado e do diretor sobre Gabriela a sufocam, a
exasperam...
— Agora
estou entendendo o jogo de vocês, assim como a doutora Júlia, antes
de mim, entendeu...
— Doutora
Gabriela, esse tal professor sumiu do mapa. A polícia, e nem
ninguém, conseguiu encontrá-lo... E ainda que o fizessem nada
poderia incriminá-lo. As impressões digitais nos corpos, nas
gravatas usadas para estrangular a Sra. Abigail e o garoto, as
impressões digitais na cama, nos lençóis, todas são do
desembargador. Nenhuma outra foi encontrada. Não nos corpos, não
nesses objetos e nem por todo o quarto...
— Se
esse professor esteve na chácara, como entrou? Como saiu? Que
vinculo possuía com a família do desembargador?
— Doutora
Gabriela, fique calma. A senhorita está caminhando por um terreno
que não lhe diz respeito. O papel de advogado forense nesta história
é meu...
Gabriela
meneia a cabeça, rápido, uma, duas, três vezes até caminhar a
passos largos na direção da porta, porém, antes de girar a
maçaneta, se volta e busca com veemência o rosto do diretor do
hospital, que a esta altura já se encontra de pé.
— Façam
o que quiser, mas eu não vou mudar uma linha sequer do meu relatório
a não ser que o paciente dê motivo para isso — ela comunica ao
mesmo tempo em que olha determinada para os dois homens — E se
preferir, doutor Orlando, não se faça de rogado em me substituir. O
que seria lamentável.
— Você
não será substituída.
Gabriela
o confronta num tom extremamente desafiador.
— Foi
o paciente, o próprio desembargador quem fez questão de tê-la como
sua médica, após a desistência da doutora Júlia.
Doutor
Orlando e Claus se entreolham no instante seguinte à saída de
Gabriela, enquanto ouvem o baque surdo e violento da porta sendo
fechada. Um silêncio de quase um minuto inteiro toma conta da sala.
Por fim, o diretor, com uma calma sem precedentes, volta a se sentar,
pousando as mãos, cumpridas e
perfeitamente manicuradas, sobre a mesa.
— Uma
boa moça, mas muito nervosa. Impulsiva. Ela saiu do controle. Não
contávamos com isso — Claus comenta, já sentado
à frente de Orlando, com as costas
totalmente apoiadas no encosto da cadeira, ombros bem alinhados,
pernas cruzadas e uma das mãos sobre o joelho — É incrível como
ainda não percebeu o que está à sua volta — ele suspira alto.
— Sofremos
mais na imaginação do que na realidade — Orlando responde de
pronto, com um ar contente, erguendo-se um pouco para frente conforme
enlaça as mãos e arqueia uma das sobrancelhas.
— E
você achou sensato de sua parte dizer a ela que o próprio paciente
a escolheu como sua médica?
— E
eu poderia ter dito toda a verdade? — Orlando questiona num tom
desafiador — Isso já foi longe demais. Gabriela está onde está
por causa de Eve. Ele fez questão de trazê-la para cá. A principal
e mais grave punição para quem cometeu uma culpa está em sentir-se
culpado. Talvez agora, confrontando-o... — Orlando dá de ombros de
modo negligente — Porque é o que ela irá fazer, e tenho certeza
disso, e é o que precisamos que ela faça, Eve, finalmente, desista
de tudo. Ele não quer decepcioná-la.
— Mas
ainda há bastante resistência por parte dele...
— Ah!
Claus — Orlando suspira, olhando, com surpresa, o advogado nos
olhos — Você joga esse jogo ha tanto tempo e ainda assim não
aprendeu como jogá-lo, não é mesmo?
Claus,
desconfortável, uma pontada no estômago, se mexe um pouco sobre a
cadeira, à medida que sente seus lábios franzirem num ricto
nervoso, que se estende por todo o rosto, contraindo uma das faces,
desaparecendo logo em seguida. Um movimento quase imperceptível, mas
que não escapa à atenção de Orlando.
— É
possível... — Claus pigarreia depois de um sorriso hesitante —
Mas a carta da Laura? Não acha, realmente, que isso só fez Eve se
tornar mais resistente? E justo agora, que está faltando pouco, bem
pouco para convencê-lo de que Gabriela precisa ir embora de uma vez
por todas? Você mesmo viu, Eve deixou claro, na carta que escreveu
para ela, que Laura, apenas Laura, poderá salvá-lo — o advogado
não consegue disfarçar a tensão, como se estivesse se preparando
para enfrentar uma luta injusta — Essa esperança, ele irá se
agarrar a ela, por mais que não compreenda quem realmente seja
Laura. E por causa disso vai se recusar a sair de onde está.
— O
eu-ego não é dono de sua própria casa. A consciência reina, mas
não governa — o diretor retorna ao encosto de sua cadeira — Eve
sempre teve reações lentas em relação a tudo. E com Gabriela não
poderia ter sido diferente. Só que ele perdeu o pouco do controle
que tinha da situação, ou achava ter. E se continuar assim, não se
sabe aonde vai parar — Orlando desenlaça as mãos antes de
prosseguir — Trazer Laura para este jogo foi arriscado? Talvez. Mas
sua presença, ou a sombra da sua presença, enfraquece Eve. E ele se
reduz, pois acredita que ela o protegerá. Uma certeza subjetiva que
o faz acreditar que possui apoio para sair das situações das quais
julga que a própria força não é suficiente. Esse caos interior,
essa angústia... — linhas proeminentes
se formam ao redor da boca de Orlando enquanto assume
uma expressão um tanto absorta; o mecanismo de seu cérebro
nitidamente em funcionamento — Essa dificuldade em se sentir
autônomo, essa personalidade dependente, lhe traz muito sofrimento,
tornando-o ainda mais triste, desolado e sem confiança. O que só
contribui para apagá-lo cada vez mais de si próprio... — o
diretor encara Claus com uma expressão quase sombria — Eve faz
parte de um quebra-cabeça que não conseguia entender, apesar de
passado todos esses anos. E descobriu isso tarde demais. Agora,
acredita piamente, movido pelo seu desespero, que pode manipular ou
influenciar esse jogo.
— Que
seja — Claus manifesta certo enfado — Você é quem manda aqui,
não é mesmo? — completa cinicamente.
— Não
seja ingrato... — Orlando hesita um pouco antes de continuar —
Advogado — arremata, sarcástico, inatingível.
— Estou
apenas tentando...
— Está
apenas tentando tomar as rédeas de uma situação da qual você
nunca terá o domínio. Não se esqueça de que antes de você
chegar, eu já estava por aqui.
Um
arrepio gelado sobe pela espinha de Claus até a nuca. Ele engole em
seco e daí baixa os olhos por um instante até reerguê-los
novamente.
— Apenas
acredito que a decisão de ter trazido Eve para cá talvez tenha sido
um tanto perigosa. Precipitada até...
Orlando
volta a mover o corpo para frente.
— E
o que você queria que eu fizesse? — ele questiona furioso, ao
mesmo tempo em que aponta o indicador na direção do advogado —
Eve atingiu o extremo e com a ajuda daquele professorzinho de
merda...
— É
uma questão de tempo, bem pouco tempo, até Eve sentir a falta de
Márcio Antônio e tentar encontrá-lo de todas as maneiras. Ainda
mais agora, com a possibilidade de Gabriela ser deixada de lado. O
professor desempenhou na vida dele um papel de modelo, de um objeto e
de um associado.
— E
de um adversário — Orlando complementa olhando bem nos olhos do
advogado enquanto recolhe o dedo em riste — Márcio Antônio provou
por diversas vezes não ser merecedor da amizade de Eve. Mesmo
sabendo da posição do outro sobre a sua pessoa. E agora demonstrou
não ser digno da confiança que depositamos sobre ele. Então,
situações extremas, exigem medidas extremas. O professorzinho está
tendo o que merece. Uma vida por outra vida — o diretor ergue as
sobrancelhas delicadamente — Uma vida por outras vidas.
Claus
contrai os lábios, altivamente intransigente, mas se contém.
— E
nos trazer para cá, para este lugar — ele lança um rápido olhar
em volta da sala — É o ideal para nos manter a salvo? —
interpela enquanto também se inclina um pouco para frente — Não
se esqueça, caso o seu plano venha a dar errado, Eve não
permanecerá sozinho no Manicômio Estadual para insanos criminosos.
E aí, será tarde demais para lamentar qualquer coisa.
Orlando
respira profundamente e então, um tanto afetado, aperta
o nó da gravata, ajeitando-a, rápido, conforme segue fitando Claus
de maneira ainda mais determinada.
— Você
acha, realmente, que durante todos esses anos eu não temo pelo dia
seguinte... Claus? Resta apenas um dia. Sempre restou e sempre
restará. Não somos eternos e menos ainda diante da finitude que
está diante de mim, de você, de todos nós — Orlando aponta para
a porta fechada com um gesto abrupto — Diante dela.
— Júlia
Mathias...
— Resta
apenas um dia — Orlando interrompe o advogado sem se importar — E
sempre recomeçando. Ele nos é dado de madrugada e tirado de nós ao
anoitecer — o diretor recua repentinamente, os olhos começando a
lacrimejar — Chegou a hora, Claus. Devemos ter caos dentro de nós
para dar à luz uma estrela dançante — completa com uma voz baixa,
mas firme.
O
toque do celular de Orlando de repente ecoa pela sala. Sem
pressa, ele retira o aparelho do bolso da calça e o coloca sobre a
mesa.
— Então,
meu caro — Orlando se dirige a Claus, porém, sem deixar de mirar o
telefone, que segue chamando — Eve não está tão frágil como
pensávamos.
22
de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Num
súbito, Ronaldo despertou. Estava parado sob o batente da porta do
quarto dos pais, apesar de não se lembrar de como chegara até ali.
Sua última recordação, depois do banho, depois de ter deixado o
banheiro para trás, findava com ele subindo as escadas, pé ante pé,
rumo ao primeiro andar da casa, o rosto afogueado...
O
destino seria exatamente aquele onde estava, porém, o trajeto do
último degrau até aquela porta não lhe passavam pela mente. Nenhum
traço. Nada. E há quanto tempo já estava ali, estacionado? As
perdas de memória haviam voltado? Como das outras vezes? Não. Não.
Não.
Inspirando
e expirando com uma força descomunal, examinou o seu entorno, uma,
duas, três vezes, até se deparar —
como não havia enxergado antes? — com
a cama, onde Antoniel e Norma estavam deitados...
Deitados?
Isso era impossível. Seus pais nunca o recebiam naquela alcova,
naquela maldita alcova, de outra forma se não sentados ou em pé.
Ronaldo
semicerrou os olhos para ter certeza do que estava divisando, mas
repentinamente sentiu a visão turvar, acompanhada
por uma dificuldade enorme de concentração, ao mesmo tempo em que
passou também a sentir, embora apenas por alguns instantes, que
naquele quarto havia alguém os observando, lhe
observando.
Alguém que de alguma forma não conseguia distinguir, por mais
certeza que pudesse ter de que não havia outra pessoa por lá.
Inspirou
e expirou de novo, com a mesma determinação, e em questão de
segundos aquela
sensação de estar sendo vigiado o assolou mais uma vez, entretanto,
desta feita, recaindo diretamente sobre si próprio: outra
pessoa, um terceiro, alguém, por mais absurdo que pudesse parecer,
começou a impulsioná-lo, a fazê-lo seguir adiante, em direção à
cama dos pais. Mas Ronaldo não queria realizar aquela marcha. Estava
disposto a deixar o quarto o mais depressa possível. Algo dentro de
si lhe dizia que deveria correr, fugir para bem, bem longe...
Eu
devo suportar, eu devo resistir, eu serei mais forte que a escuridão.
Ronaldo
prosseguiu, ainda que as pernas, os pés, conforme avançava,
hesitante, se tornavam blocos de concreto, pesados demais para que
pudesse movê-los.
Talvez
eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha
própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração
pelas costas de minha própria mente, ele
ia repetindo, repetindo num murmúrio indistinto em meio às dores
proporcionadas pelas luxações e pelos hematomas espalhados por
quase todo o corpo e pela face, resultados da surra que levara do
pai. Assim como também ia lidando com a sensibilidade, o dolorido em
seu couro cabeludo...
Estacionou,
por fim, cinco,
seis passos de distância da cama, enquanto recuperava o foco de sua
visão, até conseguir vislumbrar, com notável nitidez, os pais
deitados, completamente nus,
amordaçados, com os pulsos e tornozelos amarrados por lençóis,
atados à cabeceira e aos pés da cama, e com os olhos esbugalhados,
parecendo que estavam testemunhando algo terrível.
O
que tinha acontecido, por Deus?
Ronaldo
pensou que estava tendo um pesadelo.
O
que estava acontecendo? Era real?
Seu
corpo, então, foi invadido por um calafrio quase incontrolável à
medida que sentia uma crescente aceleração no ritmo da respiração,
uma opressão gigantesca no peito, a cabeça sendo tomada por uma dor
excruciante, parecendo que iria se partir em mil pedaços. Ainda
assim, ante aquela visão aterradora, Ronaldo buscou forças para
chamar pelos pais, por seus nomes, acreditando que tudo não passava
de um mal-entendido, que seus sentidos estavam reagindo contra si
próprio, uma espécie de castigo, uma revanche determinada pelo seu
subconsciente em resposta ao ódio que carregava pelos dois.
Bruna.
Onde estava Bruna? Ele tinha voltado para buscá-la...
Ronaldo
fechou os olhos e depois de menear a cabeça uma, duas, três vezes,
voltou a abri-los
enquanto buscava colocar
tudo e todas as coisas em seus devidos lugares, apesar de tal proeza
lhe parecer impraticável quando o mundo ao seu redor se assemelhava
a um carrossel, movimentando-se com sua força centrípeta, sua
velocidade angular e linear e também sua inércia.
O
que negas te subordina... O que negas te subordina...
Ronaldo
reiniciou a caminhada, claudicante, até alcançar a beirada da cama,
onde pôde perceber que seus pais, cada um deles, Norma e Antoniel,
estavam com uma gravata enrolada no pescoço... e mortos. Sim!
Mortos! Mortos! Mortos!
De
pronto se lembrou do ultimato que fizera a caminho de casa,
carregando o propósito de resgatar a pequena Bruna: caso os
dois algozes, que o destino lhes dera como pais, tentassem impedi-lo,
chegaria até as últimas consequências, independente do que fosse
preciso fazer.
Ronaldo
foi tomado, devastado por uma enxurrada de sensações. Primeiro por
uma tristeza
arrasadora, depois uma tensão infindável, um desespero sombrio, um
horror que parecia beirar a irracionalidade conforme um nó no
estômago, um nó crescente, comprimindo, até transformar-se numa
queimação, ficar insuportável, lhe obrigando a se colocar de
joelhos e vomitar.
08
de abril, 2016, sexta-feira...
Márcio
Antônio chega à sauna e após ter sua entrada liberada, ganha um
cartão, um chaveiro com cadeado e se dirige, sem pressa, a uma sala
com armários numerados onde, após encontrar o que lhe servirá, se
despe, sem qualquer cerimônia, enquanto alguns homens transitam por
ali.
Já
completamente nu, busca guardar suas roupas e demais pertences,
contudo, ao fazer menção em desligar o celular, para também
guardá-lo, recebe uma ligação, que trata de interromper, sem
qualquer hesitação, ao tempo em que digita uma mensagem de retorno
para o mesmo número:
Colhemos
o que plantamos. Aprenda a ter mais coragem.
Márcio
Antônio relê o que escreveu e confere com extremo cuidado se
realmente o destinatário está correto para, só então, finalizar o
envio, desligar, por fim, o telefone, guardá-lo com todas as suas
coisas e daí, após deixar um ar sopesado escapar dos pulmões,
envolver a cintura com uma das duas toalhas disponibilizadas dentro
do armário, passando a vislumbrar, ato contínuo, seu reflexo num
espelho que vai da parede ao chão, disposto alguns metros diante de
si, aproveitando a ocasião para regozijar, em silêncio, claro,
sobre a sua excelente forma física num corpo de cinquenta e quatro
anos.
— Havemos
de sofrer por aquilo que os deuses nos concederam...
Márcio
Antônio balbucia, perscrutando o corpo bem torneado, a silhueta
musculosa, sem exageros ou excessos, como se fosse a primeira vez que
encarasse sua própria imagem.
— Sofrer
terrivelmente.
Completa,
um sorriso meio desdenhoso, meio insinuante que não se sustenta tão
logo ele começa a sentir a mão direita tremer, ainda que levemente.
— Você
não vai estragar minha noite! — balbucia, dessa vez fitando a
imagem à sua frente com extrema determinação, encarando-a, como se
estivesse preparado para enfrentar qualquer possibilidade que viesse
a acontecer, interferindo direta ou indiretamente em seus planos.
Num
átimo, Márcio Antônio se dá conta que alguns dos clientes da
sauna, que estão circulando por ali, parecem mirá-lo pelo espelho,
porém, não por admiração, o que já estaria esperando, claro, mas
com certa apreensão e curiosidade nitidamente estampadas em seus
semblantes. Ele dá de ombros e os ignora, por completo, pouco se
importando com a impressão que possa ter causado. No primeiro
momento em que abrir a toalha e mostrar o que tem entre as pernas,
convidando o primeiro, ou o segundo, ou o terceiro, ou todos que
estiverem ávidos em saciar a gana eternamente insaciável, irão
esquecer no mesmo instante, como num passe de mágica, toda e
qualquer opinião precipitada e superficial que possam ter tido sobre
ele.
Aliás,
como adorava se sentir disputado e idolatrado ao mesmo tempo por
dois, três, quatro...
Mantendo
uma postura invejavelmente aprumada, exalando confiança, Márcio
Antônio parte para o interior da sauna, buscando conhecê-la, embora
acreditando que não deva ser tão diferente de todas as outras onde
já esteve. Com exceção de algumas duchas em forma de cascata e
banhos turcos, obviamente fazendo jus ao preço diferenciado do
ingresso, as demais dependências são similares: chuveiros, uma
jacuzzi, corredores misteriosos desembocando em vários
quartos, alguns com camas, outros com pequenos assentos, e alguns
poucos até mesmo com buracos na parede, decerto para a prática do
gloryhole. Por fim, chega à “sala de cinema”, e como era
de se esperar, lotada de clientes assistindo ao pornô da vez...
Márcio
Antônio segue seu caminho, retornando ao chuveiro, tomando um bom
banho para logo depois se dirigir ao dark room, onde gemidos
penetrantes e silhuetas sombrias de vários corpos o convidam a
entrar, fazendo-o sentir, de pronto, mãos, várias mãos tateando,
passeando por todo o seu corpo, seu ventre, até disputarem,
sôfregas, um espaço sobre sua virilha já totalmente despertada,
enquanto sente o contorno de membros enrijecidos transitando,
bolinando suas pernas, à medida que vai vislumbrando, mesmo sem
conseguir enxergar muita coisa no ambiente escuro, a silhueta dos
corpos dos homens em torno de si, se abandonando ao sexo, afinal, era
para isso que todos estavam ali. Afinal, era para isso que ele,
Márcio Antônio, estava ali: trepar e trepar, pouco se importando
com quem.
1981...
Ronaldo
chegou à cozinha do albergue e sem titubear enfrentou uma fila, não
muito curta, de modo a garantir o café da manhã. Dentre tantos
lugares já ocupados, conseguiu, enquanto sustentava a bandeja nas
mãos, sentar-se em uma das raras mesas localizadas no canto oposto e
relativamente distante de toda aquela balbúrdia de vozes. Acomodado,
começou o desjejum — café com leite, ralo, num copo de alumínio,
um pão com manteiga, um pacote, pequeno, de club social sabor
pizza e três roscas Mabel. Por incrível que pudesse parecer, não
estava com muita fome, mas precisava se alimentar, afinal, depois do
café, teria que deixar o albergue, só podendo retornar à noite,
para jantar e dormir; e só Deus para saber se até lá conseguiria
algo para comer.
— Tudo
bem?
Um
rapaz cumprimentou Ronaldo, já se sentando à sua frente, trazendo
com ele, também, uma bandeja e nela, até então intocados, uma
caneca de alumínio, um pão, um club social e roscas Mabel.
— Márcio
Antônio. Prazer.
O
tal rapaz se apresentou e no minuto seguinte mergulhou na sua
refeição, sem sequer estender a mão para uma saudação, ao tempo
que Ronaldo apenas o observava enquanto se alimentava, ou melhor,
aspirava a comida diante de si. Aquele tipo de invasão não seria a
primeira e nem a última, com certeza, Ronaldo concluiu. Porém, ao
menos, ou outros haviam sido bem mais educados.
— Desculpa
chegar assim, do nada, na cara de pau, me jogando na mesa — Márcio
Antônio ergueu o rosto e Ronaldo, enfim, pode esquadrinhá-lo —
Mas acho que mesmo nessa selva de pedra devemos ter o mínimo de
educação, não acha?
Ronaldo
permaneceu calado, examinando o tal jovem: boca bem traçada, olhos
pequenos, ombros largos, nariz reto e cabelos
castanhos levemente desgrenhados, além da pele bem clara. E deviam
ter a mesma idade... Com certeza ele não havia chegado aos vinte.
— Ouvi
dizer que você tá tentando sair daqui, encontrar um quarto, um
cantinho qualquer pra ficar. É isso mesmo? — Márcio Antônio
enfiou na boca as três roscas de uma só vez, mastigando-as
apressadamente.
Ronaldo,
por fim, respirou fundo e respondeu um sim, seco, monossilábico.
— Legal!
Eu também estou querendo um cantinho. Isso aqui mais parece um
cortiço, cara — Márcio Antônio colocou a bandeja de lado e se
inclinou um pouco para frente — Mas estou com um problema. Preciso
de alguém pra juntar uma grana aí e dividir um quarto. Sozinho está
impossível. E por aqui, as pessoas estão acomodadas com a situação,
e as que tentam guardar alguma coisa, acabam gastando em bebida e
drogas... Isso quando não são roubadas.
— E
por que você acha que sou a pessoa certa pra isso? — Ronaldo
questionou de imediato, o cenho cerrado. Não tinha simpatizado nem
um pouco com aquele moleque.
— Você
tem um sotaque bem legal, cara __ observou Márcio Antônio com um
sorriso amistoso no canto dos lábios — Mineiro? Acertei?
— Não
respondeu à minha pergunta.
— Como
todo bom mineiro é desconfiado, né? — Márcio Antônio devolveu
um tanto gaiato — Relaxa cara. Estamos no mesmo barco. A diferença
é que eu e você estamos tentando deixar essa canoa furada. Simples
assim — disse, já se levantando, recolhendo sua bandeja vazia —
À noite a gente se fala, pode ser? — perguntou, mas sem esperar
nenhuma resposta, dando às costas e se afastando a passos largos.
22
de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo
cruzou o batente da porta da sala, saindo de pronto na varanda, e,
mantendo a marcha alucinante, seguiu rumo ao curto caminho de pedras
ladeado por azaleias, margaridas, lavandas, petúnias, begônias,
amor-perfeito e alguns anões de jardim, até
cruzar, ofegante, o portão de madeira, alcançando,
por fim, a rua, deixando para trás a casa dos pais sendo tomada
pelas chamas.
Súbito,
após certa distância percorrida, Ronaldo sentiu a falta da irmã, a
pequena Bruna e então foi tomado por uma
estranha sensação de medo extremo, um aperto na garganta, no peito,
ao mesmo tempo em que uma fraqueza se instalava nas duas pernas,
obrigando-o a diminuir seus passos até definitivamente parar,
forçando-o, de pronto, a inclinar o corpo parcialmente até apoiar
as mãos sobre os joelhos semidobrados, enquanto, impotente,
balançava, em negativa, a cabeça de um lado para o outro.
Bruna.
Não. Bruna. Não. Lamentava,
exasperado, mas sem forças, imaginando o corpo da irmã sendo
tragado pelas labaredas e daí começou chorar, e de tal forma, que
aquele pranto parecia nunca ter começado.
Brunaaaaa!
Gritou,
com os olhos vidrados no chão, em meio às serpentinas, Batalhas de
Confetes, em meio àqueles foliões e suas marchinhas carnavalescas
espalhando-se pelas ruas...
9
de março, 2017, quinta-feira
Numa
das enfermarias do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, Júlia
Mathias, de pé, à beira de uma cama, está terminando de
supervisionar o prontuário de um paciente que chegara até ali há
apenas seis dias.
Sedação
e indução ao sono
Redução
de ansiedade e agressividade
Redução
do tônus muscular e da coordenação
Efeito
anticonvulsivante.
Com
gestos lentos e ponderados, Júlia acomoda sobre o criado mudo, no
lado direito da cabeceira da cama, a prancheta onde o prontuário
está fixado e, em seguida, passa a observar o paciente —
que está deitado, os
olhos, no vazio —,
examinando suas pupilas até constatar que de fato ele se encontra
numa profunda apatia. Logo, confere a prancheta mais uma vez e, ato
contínuo, observa o paciente, de novo, para, só então, se retirar,
caminhando a passos largos pela enfermaria, até alcançar a porta de
saída e se dirigir, no mesmo ritmo, em direção à sala que ocupa
enquanto está de plantão no Hospital. Lá chegando, assim
que termina de falar pelo celular com sua namorada, com quem convive
há cinco anos, Júlia senta-se à mesa e abre uma pasta
envelope, com fechamento horizontal, onde está o pequeno dossiê do
paciente recém-chegado, buscando imediatamente pelo laudo redigido
pelo médico parecerista.
Rio
de Janeiro, 03 de março de 2017.
O
paciente foi encontrado desacordado, com os pulsos enrolados em panos
um tanto ensopados de sangue e sobrepostos por gazes aparentemente
esterilizadas, acusando sinais indubitáveis de tentativa de
suicídio; ação confirmada após a chegada do socorro
especializado. No local, uma chácara em Guapimirim, havia, no
segundo andar, dois corpos sem vidas, atados a uma cama de casal,
cuja causa da morte de ambos
fora
causada por estrangulamento __ uma mulher adulta e um adolescente,
posteriormente tendo suas identidades confirmadas, sendo o jovem, seu
perfilhado.
O
paciente, ao despertar, se lançou de imediato a um estado de torpor,
condicionando-o a um quadro semivegetativo violento e logo depois a
um quadro emocionalmente instável, oscilando entre o pior e o melhor
do mundo, sendo trazido para este hospital judiciário de modo a ser
submetido a uma intervenção psiquiátrica emergencial ao passo que
segue à disposição da justiça.
Sinceramente.
Dr.
Carlos, médico parecerista
Júlia
Mathias devolve o laudo à pasta envelope e logo em seguida busca uma
agenda que está no canto direito da mesa, trazendo-a para si, sem
pressa, onde, no instante seguinte, começa a registrar algumas
anotações:
O
paciente não consegue se identificar;
Rebaixamento
do nível de consciência;
Demonstra
medo e insegurança, expressando reações excessivamente passivas;
Reclama
de vertigens, algumas raras alucinações auditivas e fortes
dores de cabeça: possíveis
resultados da forte e emergencial medicação?
Tentar
o mais breve possível uma segunda entrevista psiquiátrica.
Elaborar hipótese diagnóstica.
Júlia
lê e relê suas notas e logo depois faz menção em guardar a agenda
na pasta bagageiro com três divisões,
depositada no chão, próxima aos seus pés. Porém, desiste,
colocando a agenda novamente sobre a mesa, inserindo mais um
registro:
Sua
cabeça oscila da direita para a esquerda, lentamente, enquanto sua
expressão não denuncia nenhum tipo de emoção, até que decide
circundar a frase possíveis resultados
da forte e emergencial medicação?, guardando,
por fim, a agenda, desta vez, sem titubear.
08
de abril, 2016, sexta-feira...
Na
sauna, depois de um longo banho, Márcio Antônio senta-se na pequena
zona do bar, um amplo espaço reservado à direita da saída dos
chuveiros. Os homens ali, muitos deles jovens atraentes e outros
tantos com uma aparência bem madura com seus corpos medianos e
outros poucos singularmente longe de se parecerem aprazíveis,
conversam e assistem ao mesmo tempo a TV enquanto consomem as mais
diversas bebidas.
Aos
poucos, Márcio Antônio vai se deixando envolver pelas piadas, os
risos soltos, relaxando da aventura psicodélica na qual se deixara
mergulhar de cabeça no dark room, até se pegar enredado em
meio a uma conversa agradável com um homem de aparência madura, com
uma barba vasta parecendo querer ocultar o que há por trás dela, e
dono de um corpo relativamente flácido, de uma barriga um tanto
proeminente, apesar de não ser gordo, mas que para ele, Márcio
Antônio, sem sombra de dúvidas, aquele bate-papo, um nítido ensaio
codificado de compra e oferta para fins de sexo, certamente
não terminaria num dos quartos do andar superior, ainda que se
sentido envaidecido pela vibração, pelo brilho da volúpia,
estampado, escancarado nos olhos daquele homem sobre si, medindo com
ardor desesperado cada parte da sua silhueta, das suas coxas bem
torneadas, seu corpo talhado, liso e esbelto, malhado por exercícios
constantes na academia.
Não.
Com certeza o homem sentado à sua frente está há muito distante do
que lhe apetecia: a sublime beleza da juventude, da delicadeza de um
corpo imberbe e delgado...
— JP.
Márcio
Antônio se depara com uma mão estendida a poucos centímetros
adiante e a observa por alguns segundos antes de apertá-la.
— Pode
me chamar de JP — o homem informa, sem pressa; um riso rasgando o
rosto de orelha a orelha à medida que não deixa de fitar Márcio
Antônio com firmeza um segundo sequer — E você? Como posso
chamá-lo?
Márcio
Antônio sente o dedo indicador do tal JP esfregando o meio da palma
da sua mão e daí baixa o rosto por alguns instantes, fitando o
chão... O alvoroço, as risadas no seu entorno, a TV... É claro que
não está surpreso com este gesto, mas se mantém em silêncio,
continuando a sentir as cócegas, o toque em sua pele...
Não...
Ele não vai para o quarto com este homem. Não irá. Vai sair dali e
buscar um rapaz, um efebo, um jovem carregado de virilidade, de
hormônios...
— Oito!
— Como?
— Márcio Antônio questiona tão logo ergue o rosto em direção
ao homem sentado à sua frente, conforme recolhe a mão de imediato.
— O
número da sua chave.
JP
responde, enquanto aponta com o queixo na direção do pequeno
chaveiro, um cordão com cadeado envolvendo o pulso de Márcio
Antônio.
— Oito:
um número que representa a vitória, o poder, o lado material da
vida. Regeneração, renascimento, renovação. Um número que
caracteriza pessoas habilidosas...
JP
enuncia, não se permitindo desviar a atenção um segundo sequer do
olhar, agora inquieto, mas também vago, do indivíduo que certamente
levará para a cama. E sem precisar pagar, não diretamente, como
quando contrata garotos de programas sempre que necessita compensar
toda a pressão determinada por seu trabalho... Sempre que necessita
compensar o já excruciante espetáculo teatral que vive ao lado de
Abigail e de Lucas.
O
indivíduo perante ele, decerto, não se compara à perfeição
adônica que encontra nos toys boys que contrata, mas o
que há de se fazer? E além do mais, não existe fruto mais doce que
a bunda de outro homem, ainda que de um homem maduro, ainda que
encontrada numa sauna, o último lugar que um magistrado deveria
estar.
— Pessoas
que fazem qualquer sacrifício pelo que acreditam; impacientes e não
admitem ser contrariadas...
JP
prossegue, se levantando, sem pressa, fixando mais e mais o
semblante, a alma de Márcio Antônio, olhando-o diretamente com um
sorriso largo, ao passo que vai se aproximando até uma distância
ínfima os separarem, enquanto ele, Márcio, sente uma mão, a mão
daquele homem com uma barba vasta parecendo querer ocultar o que há
por trás dela, dono de um corpo relativamente flácido, de uma
barriga um tanto proeminente, acariciando o seu peito, seguindo
lentamente por sua barriga...
O
que está acontecendo? Márcio Antônio se questiona, em
silêncio, em completo silêncio. Você não vai estragar minha
noite! Ele inspira e expira, a mão de JP indo e vindo,
explorando seu peito, barriga, peito, barriga até alcançar, por
fim, a beirada de sua toalha, os dedos puxando a pontinha dobrada
para fora...
Márcio
Antônio abre a boca para dizer algo, verbalizar tudo aquilo que não
pode fazer, que não pode pensar, que não pode... que não deve
ceder... Porém, não consegue. Precisa lidar com a enxurrada de
sentimentos ambíguos desaguando dentro de si, ao mesmo tempo em que
agarra a toalha envolta de sua cintura, impedindo-a de ser aberta.
— Pessoas
sexualmente agressivas e seguras de si — JP arremata, mirando
Márcio de cima a baixo — Pessoas que adoram desafios e por isso
são fascinadas por relações complicadas.
1981...
Oito
dias já haviam se passado, desde aquele café da manhã, quando
Ronaldo conheceu Márcio Antônio. Ou Márcio Antônio se fez
conhecer. A partir de então, ele, o “invasor”, nunca mais
aparecera no albergue. Ao menos não que Ronaldo o tivesse visto em
meio àquela torre de Babel. Talvez tenha sido melhor. Com certeza se
livrara das garras de mais um querendo se aproveitar do matuto
ingênuo.
Sexta-feira
à noite, e o refeitório do albergue, claro, muito ocupado. A comida
servida: arroz soltinho, feijão, alface e moela. Tudo sem tempero
por causa dos hipertensos. Ronaldo estava sentando no meio de todo o
pessoal, onde a conversação corria solta; todos falando e como
sempre lhe dando a impressão de que ninguém se entendia, de fato. E
entre uma garfada e outra, buscava, num esforço extremo, se
concentrar tão somente na refeição que pretendia terminar o mais
breve possível.
De
repente, Ronaldo sentiu uma mão pesar sobre um dos ombros, e antes
mesmo de se virar, foi tomado pela sensação de que quem estava lhe
tocando não seria outra pessoa senão aquele moleque “invasor”.
E era. O susto, ou a surpresa, ou os dois, fez com que o garfo caísse
de sua mão. Márcio Antônio, em pé, o encarava com os olhos bem,
bem vermelhos e o cenho cerrado. Uma transformação sombria havia
ocorrido no semblante do rapaz desde a primeira e última vez que
tinham se visto, Ronaldo não pôde deixar de constatar — ainda que
quisesse —, ao mesmo tempo em que se voltava para frente, a fim de
conferir se os companheiros da mesa também haviam se incomodado.
Todos continuavam focados em suas bandejas e no seu falatório.
Talvez fosse possível que aquilo já não mais os atingisse...
— Se
importa de conversarmos lá fora? — Márcio Antônio perguntou, sem
muita convicção, oferecendo a mão para Ronaldo, que ao tocá-la
sentiu de pronto o quanto estava banhada de suor — Me segue, por
favor — ele pediu, desatando a mão e se dirigindo para a porta da
cozinha com Ronaldo o seguindo, ainda que bem hesitante.
Já
no pátio do albergue, enquanto esperava Márcio Antônio, que estava
urinando um pouco distante, no tronco de uma árvore, Ronaldo sentiu
a noite um tanto gelada, apesar de estar em pleno mês de janeiro.
Olhou para o alto, rapidamente, observando o céu, límpido, com uma
lua cheia brilhante e algumas poucas nuvens que tentavam escondê-la.
— Às
vezes, prefiro mijar aqui fora... — Márcio Antônio surgiu ao lado
de Ronaldo, terminando de ajeitar a braguilha da calça jeans surrada
enquanto apontava o albergue com a cabeça — Do que usar esse
banheiro imundo aí de dentro.
Ronaldo
não sabia o que dizer.
— Como
você está, cara?
Márcio
Antônio questionou genuinamente preocupado, conforme apoiou uma das
mãos sobre os ombros de Ronaldo, que apenas conseguiu responder com
um aceno positivo da cabeça à medida que olhava o outro, de
soslaio, extremamente desconfiado.
— Acho
que te devo desculpas pela forma como agi no nosso primeiro contato,
né? — Márcio Antônio abandonou os ombros do novo amigo e recuou
alguns passos, começando a esfregar as mãos, uma na outra, com
muita força, olhando para os lados, como se estivesse buscando algo
— Sei que fui um entrão, um ansioso e um mal-educado. Peço
desculpas mesmo, cara.
— Não...
Não precisa...
— Mas
é claro que sim — Márcio Antônio voltou a se aproximar de
Ronaldo — Quantos anos você tem?
__
Dezenove.
— É
sério? Cara, eu também. Fiz há dois dias.
Ronaldo
não podia acreditar naquela coincidência, por mais idiota que
pudesse parecer. Também havia completado seus dezenove anos a dois
dias, acabou por informar involuntariamente.
— Então
vamos sair pra comemorar — Márcio Antônio, esfregando os olhos,
sugeriu depois de ouvir a confirmação de Ronaldo — Somos
praticamente gêmeos. Legal.
Ronaldo
ensaiou um sorriso, mas se deteve. Não sabia o que estava
acontecendo. Parecia que tudo aquilo era um tanto forçado; uma peça
de teatro mal ensaiada. E além do mais, sim, sim e sim, aquele
garoto não lhe passava o mínimo de confiança, principalmente no
estado em que se encontrava.
—
Engraçado
— ele decidiu mudar o rumo da conversa — Você ainda não
perguntou o meu nome.
—
Pra
quê? Eu já sei! — Márcio Antônio respondeu disparando uma
gargalhada logo em seguida — Ro-nal-do,
não é isso? — completou fazendo questão de acentuar cada sílaba
— Já tinha perguntado aí dentro.
—
Espera
— Ronaldo se sentiu extremamente incomodado — Como assim fez
perguntas sobre mim aí dentro? Essas pessoas não me conhecem e além
do mais...
—
Cara,
relaxa. Só perguntei o seu nome. Nada mais. Não sou idiota ao ponto
de acreditar que alguém aí dentro possa dar informações sobre
qualquer um. Nem as assistentes sociais, que se acham as donas do
mundo e da verdade, conseguem fazer isso — Márcio Antônio fechou
o semblante de imediato — E
eu não sou nenhum moleque. Quando quero conhecer alguém chego e me
apresento, não preciso ficar rodeando.
—
É
melhor entrarmos — Ronaldo sugeriu.
—
Pensei
que íamos comemorar o nosso aniversário.
—
Amanhã,
durante o dia, fazemos isso — Ronaldo replicou sem titubear
enquanto se virava para começar a caminhar para dentro do albergue —
Esqueceu que podemos ser penalizados se dormirmos fora?
Num
gesto abrupto, Márcio Antônio abraçou Ronaldo por trás, com
força, pedindo para que ficasse com ele, desabando em lágrimas logo
em seguida.
Um
silêncio tomou conta dos dois. Ronaldo não sabia como reagir diante
daquela investida, até mesmo porque não tinha ideia do que estava
acontecendo...
—
Escuta
— Ronaldo iniciou, reticente, se desvencilhando dos braços do
outro — Não vai fazer diferença se comemorarmos o nosso
aniversário daqui a algumas horas, certo? Vamos dormir, descansar um
pouco...
—
Tentei
ver minhas irmãs no dia do meu aniversário — Márcio Antônio
retomou, entre soluços — Mas o canalha do meu pai, e a ordinária
da minha mãe, mais uma vez, nem me deixou me aproximar. Nem mesmo do
portão... — com as costas das mãos buscou enxugar as lágrimas,
fungando — Mas não deixei barato. Não. Estava furioso e disse
poucas e boas praqueles dois.
—
Vamos
lá pra dentro, Márcio — Ronaldo insistiu — Amanhã a gente
conversa sobre isso, se você quiser. Mas vamos realmente lá pra
dentro. Daqui a pouco não vamos mais poder entrar...
—
Você
deve estar me achando um maluco, não é mesmo?
—
Eu
não estou achando nada...
—
Aquele
papo que tivemos, sobre alugarmos um quarto, é verdade — Márcio
Antônio, os olhos ainda mais vermelhos por causa das lágrimas,
sorriu, ou, ao menos, buscou se esforçar — Mas se não quiser, não
tem problema, cara. Podemos seguir como amigos, numa boa. Nem todos
que vivem nas ruas são maus elementos. Muitos são apenas vítimas
que não são culpadas diretamente da própria situação.
Ronaldo
deixou os ombros caírem. Estava cansado. Desanimado. Esgotado. E com
certeza não estava em condições de amparar quem fosse. E Márcio
Antônio lhe pareceu ser uma daquelas pessoas capazes de sugar toda a
energia do próximo sem muito esforço.
—
Vamos?
— ele perguntou já fazendo menção em ir adiante, principalmente
depois que enxergou um dos vigias do albergue parado à porta,
olhando na direção onde os dois estavam, decerto pronto para
repreendê-los.
Esperou
Márcio Antônio passar e o seguiu, deixando um ar sopesado lhe
escapar dos pulmões, à medida que foi sendo tomado por uma
repentina dor de cabeça e um som irritante no ouvido enquanto
caminhava.
30
de Julho, 2017, domingo
Gabriela
abre os olhos num sobressalto. Diante de si, escuridão. Total.
Nenhum filete de luz. Nada. A cabeça dói um pouco, apercebe,
enquanto sensações de desorientação e debilidade valsam dentro
dela, de um canto ao outro; quimeras que não vão demorar a se
tornar míseras sombras até desaparecerem
por completo. Ou pelo menos quase isso, delibera, conforme sente a
textura do lençol ao tatear a superfície sobre a qual está
deitada.
Súbito,
é tomada por uma sensação de que está sendo observada, e então,
prontamente, senta-se sobre a cama, mesmo sem ter a certeza de o
porquê estar fazendo isso, e daí, por alguns segundos, encara o
breu à sua frente, à sua volta, lidando com a obstinada impressão
de que alguém está lhe vigiando, e que esse
alguém não está muito distante.
Dorlan?
Provavelmente não. Além do fato de não estar em casa, o
companheiro não é nem um pouco discreto ao chegar no quarto ou em
qualquer outro lugar do apartamento. Faz questão de anunciar sua
presença “esbarrando” em algo e acedendo todas as luzes, ou as
que forem possíveis, caso algum cômodo esteja apagado ou na
penumbra durante a sua passagem, ou estadia.
Meneando
a cabeça, sem pressa, e com os olhos semicerrados, Gabriela, sem
titubear, trata de descartar a ridícula sensação de que sua rede
neural detectou sinais onde nada existe para ser detectado, não
hesitando em afirmar para si mesma que provavelmente ainda está
dormindo, mergulhada num sonho qualquer que, por certo, pretende se
tornar angustiante, ou que talvez já até tenha se tornado, e agora
cogita “terminar o serviço” com o que restou dessa jornada fora
do comum, patrocinada por barbitúricos.
Dando
de ombros, Gabriela faz menção em voltar a se deitar, mas muda de
ideia e, convicta — outra vez sem ter a certeza do por que estar
fazendo isso —, olha novamente para frente e para os lados,
forçando a vista em todas as direções, até fixar o olhar num
ponto exato, mesmo sem ter a noção da exatidão deste ponto, onde
acredita, ou decide acreditar, que o “seu observador” esteja. Não
encontra nada, exatamente nada que não seja a familiar obscuridade.
Mas o que ela esperaria encontrar, não é mesmo?
Que
seja! Considera, irritada com a situação, voltando, por fim, a se
deitar, praticamente se jogando sobre a cama e fechando os olhos logo
em seguida, certa de que não vai demorar a abri-los, já desperta
para a realidade. Mas a sensação de não estar sozinha não a
abandona. Assim como a débil dor na cabeça volta a se fazer
presente. E agora, também, um gosto vagamente metálico na boca.
Os
sonhos são uma loucura passageira e a loucura um sonho que dura, não
é mesmo?
Uma
voz, de repente, rasga a escuridão e Gabriela, no mesmo instante,
volta a abrir os olhos.
Aqui
estamos, mais uma vez, e você sempre que termina de relatar essa
sequência de acontecimentos que ocorreram na chácara, naquela tarde
de carnaval, acaba estacionando no mesmo ponto...
Gabriela
permanece deitada, decidida veementemente a ignorar por completo esta
alucinação, o truque na sua cabeça...
Há
quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de caminho sem
antes e nem depois. Não podemos e nem devemos trabalhar com
conjecturas. Não temos mais o tempo ao nosso favor.
A
tal
voz prossegue, sem se alterar, começando a deixar Gabriela ainda
mais irritada.
Você
precisa ir embora. Deixar que outra pessoa cuide do seu
paciente...
— Quem
está aí? — Gabriela questiona, mesmo se sentindo uma completa
idiota, conforme termina de se sentar sobre a cama.
Você
devia ouvir o seu paciente. Você devia se ouvir.
Uma
voz masculina, Gabriela apura. Um homem — ou a projeção do som da
voz de um homem — que está se esforçando para distorcer a própria
voz, tornando-a mais aguda, mais delicada;
tentando parecer feminina, desagradavelmente feminina.
Em
qualquer experiência de sofrimento, existe uma parte de realidade...
Mas
onde ele
está? Gabriela esquadrinha as trevas no seu entorno, aguçando ainda
mais a audição à medida que a dor na cabeça começa a se
intensificar.
— Vamos
lá — ela desafia enquanto volta a forçar a vista, singularmente
focada.
Precisa
ajustar os olhos. Precisa saber, afinal, onde realmente ele,
essa projeção está. Precisa saber quem está falando todas essas
coisas.
Silêncio.
— Vamos
lá.
Gabriela
repete extremamente determinada. As pupilas se dilatando, o gosto
metálico na boca aumentando.
Silêncio.
Chega!
Ela dá um soco no colchão, indignada, furiosa consigo mesma por
estar se permitindo sucumbir às projeções do seu subconsciente.
Amanhã pela manhã —
sim, ela está sonhando, sim está de noite e ponto — irá
conversar com o diretor Orlando —
ainda
que não seja o seu dia de plantão no hospital —,
de uma maneira equilibrada, claro, e sem a presença daquele
advogadozinho de merda. Precisa entender o motivo de o diretor ter
permitido que Eve,
que o desembargador interferisse, não, na verdade, decidisse em
tê-la como sua médica, mesmo com a certeza de que ele, Orlando,
esteja mentindo. As palavras dele, as palavras dele quando chegou ao
hospital, Gabriela se esforça para lembrar, precisa lembrar, pois
Orlando está mentindo, mentindo, mentindo...
“As
informações que tenho sobre a senhorita foram mais que suficientes
para abalizá-la a este posto”,
Isso.
Isso. Irá confrontar Orlando. Foda-se.
A
dor na cabeça... o gosto metálico na boca... uma dor repentina
irradiando pelo baixo-ventre...
— Onde
está Dorlan?
Gabriela
se questiona, abrupta, levando a mão para o lado, enquanto se dá
conta de que o companheiro, sem sombra de dúvida, esteja
presenciando seus arroubos, tentando encontrar uma forma de
acalmá-la, mas não, ele não está ali.
Você
sabe qual o castigo que os deuses deram a Sísifo?
Reações
e reflexos absurdos, Gabriela repete e repete e repete. É óbvio que
ainda não acordou, ou, então, se encontra num
estado não usual da consciência, no limiar entre a vigília e o
sonho... É isso: no ponto limítrofe entre vígil e o mundo
onírico... Mas... mas... mas já não tinha chegado a essa
conclusão?
Vá
embora! Pelo amor daquilo que você mais acredita. Você não é
bem-vinda aqui. Aliás, nunca foi. Se não fosse pela insistência
dele... Enfim, não sei por que eu, nós, que seja, concordamos com
isso.
Gabriela
fecha os olhos e se prepara para gritar, mas não o faz. Não pode...
Ela abre os olhos... Sons, sons,
nada mais do que sons inexistentes é o que está povoando o seu
subconsciente, projetando de forma direta suas frustrações...
Está
pedindo ao seu paciente que confie em você, enquanto você não
confia em si mesma. Qualquer psiquiatra de quinta categoria saberia o
quão isso se parece: uma aberração médica.
Lucas!...
Gabriela constata, um véu sendo desnudado inesperadamente, à medida
que se recorda das gargalhadas, do rosto distorcido, da expressão de
satisfação e deboche estampados na face de Arnoldo.
O
eu-ego não é dono da sua própria casa. A consciência reina, mas
não governa.
Não.
Não. Gabriela cobre os olhos, sentindo novamente uma vontade feroz
de gritar. Eve — Arnoldo — apresenta sintomas de esquizofrenia,
um transtorno mental está afetando o seu modo de pensar, sentir e se
comportar. Ele perdeu o contato com a realidade...
Você
está subestimando a capacidade de
pensamento do seu paciente. Você está subestimando a sua própria
capacidade de discernimento.
— Não.
Não... — Gabriela
descobre os olhos enquanto insiste, brusca, dando ordens a si mesma;
as sobrancelhas se erguendo, intrigadas —
Eve é portador de esquizofrenia com
característica paranoide. Não encontrei
nenhum indício de que ele seja portador do TDI. Então é óbvio que
eu não estive diante de uma manifestação de um transtorno de
dissociativo de identidade...
A
esta altura do campeonato você deveria estar mais bem informada.
Gabriela
deixa o corpo cair violentamente sobre a cama e se encolhe. Sua
visão, agora, parece turva, mesmo dentre a escuridão. Formas... ela
parece, também, começar a entrever algumas formas...
— Preciso
conversar com Eve... com Arnoldo. Preciso.
Suas
dúvidas não dizem respeito somente a você, não é mesmo? Elas
envolvem os dois. Você e o seu paciente. Afetando-os. E você não
se sente confortável com isso. E sabe por quê? Porque é você,
somente você quem pode decidir dissipá-las.
Uma
voz feminina, calma, macia, mas igualmente
autoritária, toma o ambiente, também rasgando violentamente a
escuridão, substituindo a voz masculina
que se esforçava em parecer mais aguda e mais delicada.
Gabriela, de pronto, volta a se sentar e a
aguçar ao máximo a audição e a visão,
lidando com a dor na cabeça, o gosto met álico...
— Você,
ou o que seja — ela dispara aleatoriamente, por todo o seu entorno,
enquanto as formas continuam a bailar diante de si — Saiba que
tenho plena consciência de que tudo isso
está na minha cabeça. Essa abstração pode ser bem real se eu
permitir que ela continue...
Sim.
Então é por isso que ainda estou aqui?
— Onde
você está? — Gabriela exige, bradando ao léu, furiosa por se
permitir ficar
irritada mais do que deveria. Isso já foi longe demais.
Silêncio.
Estou
te vendo e isso basta.
Chega!
Gabriela esmurra outra vez o colchão, mudando seu estado de
extremamente irritada para obstinadamente beligerante. Isso não
faz sentido, esta escuridão, este breu... Se eu não posso ver quem
é essa pessoa, a dona
dessa voz, essa alucinação dos infernos, como ela
pode me ver? É um sonho, claro. É um sonho... Ou talvez não
seja... Mas isso aqui, agora, não é nada diferente de um sonho, de
um sonho assustador.
Gabriela
começa a pensar em um milhão de coisas. Não consegue evitar, por
mais que se esforce. Sua mente... Pensamentos vertiginosos...
Lembranças... Lembranças... Lembranças... Lembranças de sua
infância, de sua adolescência, mesmo não recordando os rostos de
seus pais ou como se chamavam... Lembranças de quando conheceu
Dorlan. Mas quando e onde o conheceu? E por quanto tempo ficaram
juntos? Como assim ficaram?
Eles permanecem juntos. Sim... Sim... Gabriela sente-se ainda mais
desorientada, perdida... Lembranças de seus pacientes. Cada um
deles. Ou nenhum deles?... Lembranças do professor... Ex-professor!
Como era mesmo o seu nome? Ela o conheceu na adolescência? Não.
Estava na faculdade. Não. Não. Foi na adolescência... Gabriela
sente-se mais e mais preocupada, assustada, idiota... Dorlan, Dorlan.
Ela é tomada pela absurda sensação de que o companheiro não é
real. De que nunca foi real. De que só ouvira relatos, histórias a
seu respeito e criou uma vida, falsas recordações em cima disso...
Mas
se você, Dorlan, não existe... Eu... Eu também não existo?
Gabriela
tenta pensar em coisas boas, mas não consegue. Está chorando...
Como assim?... Uma angústia... Uma angústia que não lhe pertence,
um sentimento de vergonha e culpa.
Lembranças...
Lembranças... A porra de um quebra-cabeça que não consegue
montar...
Mas
porque isso agora?
Palavras...
Jogos de palavras... Ela os jogava com suas irmãs... Não... Com
seus irmãos... Mas ela tinha algum irmão ou irmã?... Uma irmã
gêmea... Isso... Ela tinha uma irmã gêmea... Mas como se chamava?
Por
que essa extensa amnésia? Gabriela se questiona, novamente,
completamente enfurecida.
Um
entorpecimento... Não... Um formigamento... Não... Uma dor...
Isso... Uma dor... Nos braços? Não... Nos pulsos!... Mas não há
nada em seus pulsos, Gabriela passeia os dedos sobre eles para se
certificar, apesar de a certeza de não os ter lesionado.
Você
gosta de si própria?
30
de Julho, 2017, domingo
Com
passadas largas e pisando forte, Orlando atravessa o pavilhão da ala
vermelha do Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar,
até se deparar com o corredor onde está, entre outros, o quarto de
Eve. Após estacionar por alguns instantes, mantendo o olhar fixo
sobre a porta da câmera do paciente, se volta, brusco, encontrando,
alguns passos atrás de si, o enfermeiro alto, truculento,
encarando-o; mas não por muito tempo. O homem desvia o olhar dos
olhos do diretor, conforme torce as mãos, nervosas, se entrelaçando
num movimento que beira a aflição, ao mesmo tempo em que busca a
chave que dará acesso ao quarto de Eve.
30
de Julho, 2017, domingo
Você
gosta de si própria?
A
tal voz repete. É uma voz feminina... Decerto... Gabriela constata,
um resquício de hesitação.
Algumas
vezes a vida pode ser agradável, mas em outras, se torna
insuportável. E ai, quando você não consegue mais encarar sua
própria imagem no espelho, o que resta fazer?
É
uma voz feminina. Sim. Sim. Sim. Definitivamente a voz não é
masculina e não está tentando parecer o que não é...
Você
sabe, Gabriela...
A
voz... a voz diz o seu nome, Gabriela, Gabriela, pela primeira vez...
Um timbre... um timbre tenso... uma pronúncia gradual...
O
Transtorno Dissociativo de Identidade geralmente é causado por um
grande trauma sofrido pela pessoa ainda na infância. Em muitos
casos, esses eventos traumáticos são fruto de abusos sexuais
físicos ou psíquicos...
Gabriela
respira fundo, engole em seco, meneando a cabeça, entre perplexa e
alarmada. O timbre dessa voz... um timbre tenso... uma pronúncia
gradual... Mas, porque está se importando com a porra dessa voz?
Estamos
tentando sobreviver num mundo de loucos. Estamos cansadas,
desgastadas, vazias...
Gabriela
se sente corar. Uma súbita e inexplicável vontade de se ver a
assola, ao mesmo tempo em que não se sente como ela mesma, e isso a
deixa ainda mais irritada e agora, também, sem sombra de dúvida,
intimidada, completamente intimidada.
30
de Julho, 2017, domingo
Doutor
Orlando estaciona alguns centímetros adiante da porta que acaba de
ser fechada atrás de si. Circunspecto, observa Eve deitado, os olhos
no vazio. Balançando a cabeça, bem, bem devagar, caminha, então,
com gestos lentos e ponderados, até a cabeceira da cama, onde, ao
chegar, examina, de pronto, as pupilas do paciente, constatando que
ele se
encontra numa profunda e esperada apatia.
—
Arnoldo.
Desembargador. Lucas... Eve... — Orlando diz, com visível
desprezo, mas também carregando na voz um resquício de comiseração
— Seja qual for o nome que queira usar, seja por qual motivo for,
culpa, homenagem ou medo, nunca deixará de ser você mesmo... —
ele suspira, ao tempo que se inclina para baixo, mantendo tão
somente uma mínima distância entre o seu rosto e o do paciente —
Ao menos por enquanto.
Orlando
se ergue e após mirar Eve por um longo instante, fala, num tom de
voz autoritário, emoldurado por um semblante impassível:
—
Depois
que o primeiro véu vai ao chão, é uma questão de tempo para que
os demais o acompanhem. E a partir daí, quando passamos a treinar os
nossos olhos, notamos que eles se recusam a aceitar qualquer tipo de
venda — erguendo as sobrancelhas, dá um
tapinha no braço do paciente, relaxando, em seguida, os músculos da
face —
É claro. Mas isso não se aplica a você.
30
de Julho, 2017, domingo
Gabriela
está pingando de suor. Sim. Mas também está sentindo ondas de frio
emanando de um ponto específico, um ponto que não está muito
distante de si... na verdade... na verdade...
O
outro desempenha sempre na vida de um indivíduo o papel de um
modelo, de um objeto, de um associado ou de um adversário...
Essa
voz... essa voz...
Quem
tem olhos para ver e ouvidos para ouvir...
Essa
voz... essa voz...
Se
convence que os mortais não podem ocultar nenhum segredo. Aquele que
não fala com os lábios, fala com as pontas dos dedos: nós nos
traímos por todos os poros.
Essa
voz, por incrível que pareça, é a sua!
Gabriela conclui, sentindo-se como se estivesse embaixo d’água,
incapaz de se mover rumo à superfície. No
mesmo instante, como num estalar de dedos, a escuridão se dissipa e
ela sente a visão enturvar, efeito que não se prolonga por tanto
tempo, até que, à sua frente, a imagem nítida de um quarto
individual, de 3,20 x 3,20, se forma,
trazendo consigo, também, imagens de um pequeno sofá, um criado
mudo e uma cama de solteiro, onde está deitada.
Gabriela
fecha os olhos. Não, não. Não pode ser. Ela mantém os olhos
fechados, a respiração pesada, a cabeça balançando em negativa.
Precisamos
evoluir. Eu quero te ajudar e para que isso aconteça você precisa
me ajudar. Há quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de
caminho sem antes e nem depois.
Gabriela
abre os olhos. É o quarto de Eve. Sim. É o quarto do paciente Eve.
Então
se apresente. Se mostre
Uma
súbita sede a assola ao mesmo tempo em que dores musculares trituram
suas costas, suas coxas...
Uma
cadeira surge não muito distante... Ela está ocupada... Gabriela
sabe que está ocupada, apesar de se recusar a olhar na sua direção.
Vamos,
Gabriela. Conhecer a sua própria escuridão é o melhor método para
lidar com a escuridão dos outros.
Há
uma mulher sentada nesta cadeira... Uma estranha? Não... Não...
Gabriela semicerra os olhos, a despeito de hesitar em mirá-la...
Essa mulher... Essa mulher... Está sentada, pernas cruzadas... É
uma estranha, com certeza, mas também tem a impressão de
conhecê-la...
A
tal mulher, a tal imagem a encara, um olhar fulminante.
Quem
é você? Gabriela pergunta, ou julga
ter perguntado, pois nenhum som escapa de sua boca. Há um silêncio
absurdo em tudo e em todos os cantos.
A
mulher, a tal mulher, tem os cabelos louros, curtos, bem cortados, e
seu semblante, antes furioso, agora, segue relativamente
inexpressivo; seu olhar, absorto, amargurado, é acompanhado
de um vinco vertical entre as sobrancelhas; ao redor da boca, linhas
proeminentes, um tanto recuadas; as maças do rosto, menos
definidas...
Gabriela
se sente incomodada. Extremamente incomodada. Não sabe o motivo, mas
não quer continuar olhando para essa mulher, não quer... E por
quê?... Mas ela a fita mais uma vez... A mulher... Um rosto
simples... Não. Não podemos compreender o mundo pela racionalidade,
não podemos... A mulher... Um espelho... Isso... Mas não pode ser.
Não pode ser...
Gabriela
sente dificuldade em respirar...
Um
espelho... A mulher diante de si...
Não
podemos compreender o mundo pela racionalidade, não é mesmo?.
É
ela! Sim. Gabriela constata, assustada, nervosa. A tal mulher, a tal
imagem... É ela, Gabriela... Mas... Mas... Uma versão... Uma versão
madura de si própria. Sim... Mas... Mas...
O
paradoxo curioso é que quando me aceito como sou, então eu mudo.
Gabriela
abre os olhos. Não. Tem a impressão, a quase certeza de que já
estavam abertos, bem abertos, e em questão de segundos, um
nanossegundo talvez, percebe, apesar de não ter a mínima noção de
como foi parar ali, que está de pé, próxima à cama em que Júlia
Mathias se encontra deitada...
Um
tubo? Sim. Há um tubo acoplado a um respirador artificial que também
está acoplado a um monitor conectado ao peito de Júlia, que se
eleva espantosamente lento. O pescoço e as pálpebras estão
inchados...
Gabriela
fecha os olhos, um gesto quase involuntário, e daí entreve Júlia,
não, na verdade não pode afirmar ser Júlia. É uma silhueta
feminina à sua frente. Sim. Porém, nada, além disso, dessa imagem
embaciada, que sua visão oferece. A mulher, a figura, está
terminando de enrolar uma corda na grade de metal que fica na parte
superior do portão da garagem, possivelmente de onde mora, até se
que se deixa deslizar após passar a outra extremidade em volta do
pescoço.
Ela
implora por socorro...
Precisa
ser resgatada...
Nada
neste mundo é perfeito. Nenhum sofrimento ou angústia pode durar
para sempre.
Gabriela
abre os olhos. Júlia permanece deitada, adormecida. Há um tubo
acoplado a um respirador artificial que também está acoplado a um
monitor conectado ao peito dela.
Qual
foi a percepção de Júlia Mathias antes de tomar essa decisão? Por
que não lutou? Antidepressivos e antipsicóticos? Transtorno
psiquiátrico? Família disfuncional? Relacionamento abusivo? Ou será
que foi somente a pressão do caso do paciente Eve que a empurrou
para esse abismo? Gabriela pondera, se questiona, ainda que se sinta
incrível e improvavelmente calma.
“Sou
o marido da Júlia, Infelizmente a senhora não poderá falar com
minha esposa... Ela está na UTI”.
“Como?”
“Júlia
tentou o suicídio”.
Gabriela
engole saliva enquanto recorda as palavras exatas e cortantes do
marido de Júlia, ao mesmo tempo em que tem a estranha sensação de
que aquelas mesmas palavras haviam penetrados os ouvidos de outra
pessoa, de uma pessoa adormecida...
— Doutora?
A
voz de Júlia, terrivelmente lenta, se faz ouvir conforme levanta a
mão com extrema dificuldade, ao tempo que Gabriela se apressa para
sustentá-la.
— Doutora...
A
pressão dos dedos de Júlia sobre os de Gabriela se acentuam.
— Poderia
ter sido eu...
O
sinal sonoro do monitor se amplifica e Gabriela, hesitante, aproxima
o rosto ao de Júlia para tentar entender o que ela está dizendo.
Contudo, inexplicavelmente, é a sua própria face que encontra
diante de si, com os olhos abertos, as pálpebras inchadas e o globo
ocular parcialmente injetado de sangue.
Gabriela
recosta a cabeça no sofá. Sente alguma coisa, alguma coisa roubando
seus sentidos, deixando tudo suave, lento, num tênue silêncio... De
repente, uma calma, uma súbita calma toma conta de todo o seu ser...
Sim. Sim. Seja lá o que isso possa significar, está se sentindo
mortalmente calma...
O
Pondera e seus efeitos... Os barbitúricos que ingeriu...
Inesperadamente,
um som... A merda de um som... Um som que lhe parece familiar, mas
distante...
Não.
Ela não vai sair dali. Não vai abandonar esse instante de quietude
que a muito custo conseguiu impor à sua consciência, mas a porra do
barulho segue e vai se tornando intenso, intenso...
Mas
que merda!
O
celular... Sim. A porra do celular segue
tocando, ininterrupto, e Gabriela,
instintivamente, tateia o sofá;
primeiro próximo de onde está sentada e em seguida estica o braço,
o corpo, a fim de encontrá-lo. Nada. Ato contínuo dá início a uma
busca auditiva: o som, percebe, está vindo do quarto. Ela dá um
salto do sofá e a passos rápidos alcança o cômodo, mergulhando
sobre a cama, tateando, tendo a certeza de que o celular foi deixado
ali...
O
som cessa, por alguns instantes, porém, logo volta a se fazer
presente e Gabriela, então, se entrega a uma nova busca até que,
por fim, encontra o famigerado aparelho sob o travesseiro, local que
acredita ter verificado há pouco. No visor, o
número do telefone da doutora Júlia Mathias. Antes de atender, se
sente completamente invadida por uma sensação, um pressentimento
angustiante.
— Alô?
— Doutora
Gabriela?
A
voz do marido de Júlia, como era de se esperar, entretanto, Gabriela
é tomada pela repentina e absurda impressão de que a voz do outro
lado lhe é bastante familiar.
— Doutora
Gabriela?
Sim.
Sim. Esta voz não é a do homem que lhe dera a notícia da
internação de Júlia... Não é. Não é... É uma voz
familiar, e ela pode ouvir, sim, sim, ela pode ouvi-la dentro da sua
cabeça, é uma voz familiar... Só não está conseguindo
distingui-la...
— Doutora
Gabriela a senhora está aí? Doutora Gabriela?
— Sim...
— Gabriela responde, hesitante, mesmo sem saber o porquê ao tempo
que sente um gosto metálico na boca e a cabeça sendo tomada
por uma dor excruciante — Como a Júlia está? —
questiona imediatamente, uma reação quase involuntária. Não
consegue se conter. A própria respiração flutuando ao seu redor.
— Infelizmente,
doutora, ela não resistiu.
26
de Julho, 2017, quarta-feira
Após
inserir algumas anotações no bloco que traz preso a uma prancheta,
Júlia Mathias inala com força todo o ar para dentro dos pulmões,
ao mesmo tempo em que empurra a cadeira para trás, se levantando e
se dirigindo de pronto para a saída daquele quarto localizado no
Manicômio Estadual para insanos
criminosos. Ato contínuo, pressiona um
interruptor fixado à parede e daí, sem demora, vê a porta sendo
aberta, e do lado de fora, lhe aguardando, como sempre, um homem
alto, um tanto truculento dentro do seu uniforme branco, parecendo
fazer questão de sustentar um semblante de poucos amigos.
Médica
e enfermeiro trocam olhares dentro de uma mudez absoluta, até que a
porta é fechada tão logo a passagem de Júlia. No seu encalço, um
silêncio palpável e lúgubre toma conta não só de todo o aposento
que deixou para trás, um espaço de 3,20 x 3,20, tornando-o imenso,
mas também da pessoa, quase uma estátua humana, que está sentada
sobre uma cama de solteiro, olhando fixamente para uma janela com
grades, cerrada diante si.
— Somos
o que pensamos. Tudo o que somos surge com os nossos pensamentos. Com
nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo.
Manifesta,
súbito, uma voz calma, macia, mas também
um tanto vacilante, enquanto a imagem de um rosto feminino, os olhos
absortos, um vinco vertical entre as sobrancelhas, e com linhas
proeminentes mais recuadas ao redor da boca, vai tomando forma no
reflexo da janela fechada.
— Meu
pensamento sou eu e é por isso que não posso parar de pensar. Sou
aquela que me puxo do nada a que aspiro. Sou o tempo que se esgota e
só tenho essa existência para ser quem sou — o tom, suave e
tranquilo, bruscamente se transforma em um matiz grave, carregado de
indignação — Não posso e não vou
perder essa guerra. Não cheguei até aqui para nada.
Laura
remata, olhando, decidida, para o seu reflexo, conforme acarinha uma
folha de papel depositada ao seu lado, sobre a cama.
— Espero
poder ser útil a você, Ronaldo. De alguma forma. Ao menos enquanto
este curioso fragmento de vida me for permitido.
28
de fevereiro, 2017,
terça-feira
de carnaval: 13h30min.
Com
o impacto, Ronaldo e o outro homem são jogados para trás e daí, um
nanossegundo, não mais que isso, é o suficiente para que Ronaldo
perca totalmente a cabeça, partindo para cima do tal homem,
atirando-se sobre ele, jogando-o no chão, imobilizando um de seus
braços enquanto tenta, com grande dificuldade, dominar o outro, à
medida que é fuzilado veementemente por sua vítima com os olhos de
um animal atordoado. Ele, o adversário, desfere mil impropérios, ao
mesmo tempo em que segue lutando para se desvencilhar, até conseguir
apoiar um dos joelhos contra o peito de seu agressor.
Ronaldo
é catapultado para trás, quase numa cambalhota, por uma força
descomunal. Por um instante, sente uma estranha calmaria, mas que é
logo substituída por um misto de sensações absurdas, conflitantes
e tenebrosas que acabam por tomar proporções exponenciais. Ele
ergue o olhar para frente; suas pálpebras parecem extremamente
pesadas. Ao divisar o tal homem se colocando de pé, Ronaldo também
o faz, porém, o adversário consegue ser mais rápido e, num salto,
naturalmente começa a correr na direção contrária ao seu algoz,
acabando por seguir para a beirada da pedreira onde ele, Ronaldo, os
levara.
O
homem, atordoado, ao perceber, por fim, que havia tomado o caminho
errado, freia a poucos metros da beirada do precipício, uma
escavação deslumbrante de quinhentos metros de extensão por
duzentos de profundidade. Decerto, ele precisa sair dali, o mais
rápido possível, voltar para o seu carro e chamar a polícia,
conclui, arfando, determinado.
Em
poucos segundos, se volta, pronto para enfrentar Ronaldo, convicto de
que apelará para o extremo, se for preciso, a fim de conservar a
própria vida. Contudo, se depara com o louco correndo em sua
direção, uma pedra enorme nas mãos e arremessando-a, sem lhe dar
tempo sequer de se desvencilhar... A pedra o atinge, em cheio, no
peito, enquanto Ronaldo, parado, ofegante, o observa agitando os
braços rapidamente, berrando, um brado que vai mudando de volume
conforme seu corpo despenca.
Sem
pressa, Ronaldo caminha até a beirada a tempo de ver o corpo se
chocar na parte inferior do penhasco.
— Nos
vemos no inferno, desembargador.
No
mesmo instante, um toque, longe, abafado, de um telefone, o resgata
de seu torpor. Ronaldo instintivamente leva as mãos ao bolso da
bermuda vermelha que está usando e não encontra o celular,
começando, de pronto, uma busca auditiva, conforme segue caminhando
sobre os pedregulhos, o chão áspero, captando o som do aparelho
cada vez mais próximo.
Ele
sabe muito bem quem está do outro lado da linha e chega mesmo a se
deleitar imaginando a aflição crescente por detrás do aparelho.
Finalmente,
se depara com o telefone que segue chamando, chamando... Ronaldo o
observa do alto, sem mover um músculo sequer.
— Sinto
muito, meu amigo. Agora é tarde demais.