Era uma Vez... | conto III

Era uma Vez... | conto III

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ERA UMA VEZ...



Antologia de
Hugo Martins

CONTO III
Na Cabeça do Gigante




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NA CABEÇA DO GIGANTE


 Era uma vez uma casa barulhenta cheia de crianças. A família dos Inteiro era grande e borbulhante. João e Maria Inteiro tiveram cinco filhos. O mais novo tinha seis anos, e o mais velho quatorze. Zule Inteiro era o filho mais velho. Sonhador e cheio de criatividade, não trilhou o caminho dos irmãos.

Os Inteiro eram conhecidos como uma família fracassada. Na vizinhança, todos sentiam pena daqueles pobres coitados. Zule e os irmãos eram ignorados pelas crianças do bairro. Eles não queriam se contaminar com a pobreza dos Inteiro.
Nas rodas de conversa, Zule escutava as más línguas cochicharem que ele e os irmãos seriam eternamente pobres. Nunca seriam bem-sucedidos, mas eternos perdedores. Ser idiota e fraco, estava no sangue dos Inteiro.
Na escola, Zule andava solitário, enquanto observava ao longe seus colegas de classe ostentarem medalhas, aparelhos tecnológicos de ponta e roupas de marca. Nas provas bimestrais, os riquinhos sempre tiravam a nota máxima, enquanto que Zule ficava reprovado. Nos esportes, eles sempre ganhavam os primeiros lugares, e Zule nunca era convocado a competir.
Mas algo interessante aconteceu no meio dos Inteiro. Os quatro irmãos mais novos de Zule, começaram a destacar-se nas avaliações escolares. Os quatro, sem exceções, tornaram-se extremamente inteligentes e talentosos. Ganhavam todas as olímpiadas que participavam, desde o mais jovem até o mais velho. Menos Zule, que permanecia um “tonto”, assim ele pensava.
Os pais do garoto tentaram enxergar no filho algum talento, mas era em vão. Ele era distante da realidade, e nunca seria alguém de destaque. Em contrapartida, os outros garotos ganharam bolsas escolares, para estudar em universidades importantes ao redor do mundo. Um foi para Harvard, o outro para Oxford, outro para Yale. E assim, todos os filhos dos Inteiro partiram para o mundo, brilhando em talento e genialidade. Menos Zule, que continuava sem entender o porquê de ser tão atrasado.
O que Zule gostava de fazer? Ele gostava de ouvir histórias e contá-las também, mas esse tipo de gosto não dava reconhecimento. O que dava fama e dinheiro era o mundo dos negócios, das vendas, das exatas. Ou se você fosse um grande artista com grande talento. Ele não era inteligente e nem talentoso. Distraído e sonhador, não sabia onde se encaixar no mundo.
Com tudo isso acontecendo em sua vida, ele simplesmente entrou numa espiral de desânimo. Dia após dia, seu único desejo era permanecer dormindo, até que um fim, enfim, chegasse. Não existia futuro e muito menos esperança. Aceitar o fracasso era a única opção. Mas, seus pais não deixavam que ele esmorecesse, “Com certeza existe algo preparado pra você. Seja paciente e persistente, um dia as coisas irão melhorar”, eles aconselhavam.
Tenho que encontrar meu lugar no mundo. Preciso saber como ganhar destaque e ser reconhecido”, pensava Zule. Mesmo com esses pensamentos, o menino de quatorze anos não se encontrava e não sentia que tinha algo a acrescentar ao mundo. Mas ele não podia permanecer do mesmo jeito. Haveria algo que pudesse fazer, com certeza, mas o quê?
Alguns meses se passaram desde que seus irmãos partiram para a universidade, e no fim daquele ano, um grande gênio da tecnologia decidiu palestrar na escola em que Zule estudava. O garoto ficou empolgado com a possibilidade de se aproximar de alguém tão bem-sucedido, e resolveu que perguntaria o segredo da fama.
Ao fim da palestra, Zule se aproximou de Erni Gobs, o grande gênio da tecnologia, e perguntou “Como ter sucesso e fama?”. Erni se aproximou do jovem e respondeu: “Sonhe alto. Pense grande”. Mas, o garoto franziu o cenho sem entender. E assustou-se quando o homem lhe entregou um livreto envelhecido.
No meio do caminho, de volta para casa, Zule meditava nas palavras “Sonhe alto. Pense grande”, enquanto observava o folheto com o seguinte título: “Lendas da Amazônia”. Apesar do título falar de lendas no plural, o livreto só trazia uma história. A de um gigante adormecido no meio da selva amazônica. A lenda dizia que na cabeça do gigante havia um fruto dos deuses, e aquele que o comesse seria grande, rico e honrado, como um gigante. O valente que conseguisse entrar na cabeça, e comer do fruto; seria coroado com inteligência infinita, talento incomensurável, e riquezas incontáveis. Era uma oferta tentadora. Zule precisava tentar. Ele entendeu a mensagem e sabia que para ter fama e riquezas, precisava entrar na cabeça do gigante, e assim faria.
O livreto trazia um mapa de como chegar até o gigante. Zule preparou-se para fazer a maior e mais fantástica viagem da sua vida. Nunca havia ido tão longe sozinho. Sempre estava acompanhado dos pais e dos irmãos. Mas, agora, teria que encarar o desafio sem ajuda de ninguém. Seus pais não permitiriam uma loucura dessas, ele tinha certeza disso.
Durante uma semana inteira, ele se preparou. Foi até à oficina do seu pai e pegou algumas ferramentas emprestadas. Na mochila, havia lanterna, cordas, repelente, isqueiro, cantil, entre outras coisas. Juntou uma muda de roupa, barras de chocolate e algumas frutas. Estava pronto para a grande jornada. Só faltava uma coisa: dinheiro.
Precisava pegar um ônibus até Manaus, capital da Amazônia. De lá, seguir de barco até PPPPP um povoado na beira do rio MMMMM e encontrar a tribo dos BBBBB onde encontraria um guia para lhe levar no coração da floresta, onde o gigante dormia. Para isso, precisava de recursos que pudessem custear a empreitada, coisa que ele não tinha. E agora, como conseguir esse dinheiro? Só havia uma forma de alcançar isso em pouco tempo. Um empréstimo, com seu pai. Ele pegaria a grana da carteira do velho - Emprestado é claro! - E, quando retornasse, sábio e cheio de riquezas, devolveria o investimento com juros. Era isso, e não se comentava mais. Não era um furto. Era um simples empréstimo.
E assim Zule fez. Na calada da noite, enquanto todos dormiam, furtou toda a grana da carteira do seu pai. Deixou uma carta no criado mudo e partiu em direção à rodoviária. Esperou o primeiro ônibus da manhã, e embarcou em direção à Amazônia.
A viagem era longa, mas ele estava aproveitando. Tirou foto dos lugares em que passava. Viu prados e cercanias verdejantes. Grandes fazendas e cabeças de gado. Nas paradas que fizeram, gastou alguns trocados com refeição e água. Conversou com algumas senhoras simpáticas que sorriam constantemente. E dormiu muito. Dormiu tanto, que não percebeu quando um homem atarracado, com cara de mafioso, se aproximou de sua mochila e furtou todo o seu dinheiro.
Quando desembarcou em Manaus, percebeu que estava sem grana. Fora furtado em sua grande aventura. E, agora? O que fazer? Precisava do dinheiro para pegar a balsa e ir até a aldeia indígena. Perguntou a alguns pescadores por ali, se conseguiria pegar carona, mas eles disseram que era impossível. “Como isso foi acontecer? Como chego à floresta?”, ele pensava sem saber para onde ir.
O folheto “Lendas da Amazônia” indicava toda a rota a seguir. O próximo passo era embarcar na balsa e chegar à tribo dos BBBBB. Mas, ele não conseguiria fazer isso, se não encontrasse uma forma de entrar na embarcação.
No cais do porto, Zule observou os homens levando caixotes para a balsa. Logo pensou que se entrasse em um dos caixotes, conseguiria entrar na balsa sem ser notado. E assim ele fez.
Furtivamente, escondeu-se em um dos caixotes carregados de peixe, e foi transportado até a balsa. Quando percebeu que estava navegando, tratou de sair do meio dos peixes e infiltrar-se entre os tripulantes. Porém, estava trancado no porão, rodeado de malas e ratazanas.
Caminhando no meio dos caixotes, encontrou um baú antigo, e curioso, abriu. Dentro, ele achou um pequeno saco cheio de pepitas de ouro, e ficou deslumbrado com o brilho do metal. Aquilo não lhe pertencia, tinha que devolver. Mas quem esconderia pepitas de ouro no meio de velharias? Deixar algo tão precioso, exposto desse jeito! Talvez a pessoa não precisasse tanto. Talvez não fosse tão precioso assim para o dono. Mas para Zule, aquilo era a salvação. Era seu passaporte para o gigante, e consequentemente para a riqueza e a felicidade. Precisava daquele metal. Faria esse pequeno furto, e caso achasse o dono, devolveria assim que estivesse rico.
Pensando assim, ele pegou para si a pepita de ouro, e aguardou que alguém lhe libertasse do porão. Esperou um dia e meio para ver a luz do sol, quando o carregador entrou no ambiente, Zule escondeu-se entre os caixotes, e aproveitando a deixa, escapou sem ser notado.
Ao desembarcar no povoado dos TAPEBA, Zule consultou mais uma vez o livreto, que indicava a casa de um índio. Sem delongas, foi até à casa amarela com um peixe de madeira no telhado. Procurou pelo índio Macabeus e aguardou para ser atendido.
Macabeus recebeu Zule com espanto e curiosidade. Sua assistente havia lhe informado que um menino queria chegar até TAPUÃ, o gigante adormecido. Ele ficou admirado, pois há muito tempo ninguém procurava fazer esse tipo de excursão.
Zule mostrou-lhe o livreto, e disse que gostaria de entrar na cabeça do gigante para comer o fruto dos deuses. “Queria ser rico e famoso”. “Pagaria o preço que fosse para ter o índio como guia”.
Macabeus ficou surpreso com a investida do garoto. Seu rosto de pão amassado parecia ficar ainda mais achatado com o que estava presenciando. “Aventura perigosa. Menino vai quebrá”. Ele tinha que jogar essa cuia de água fria sobre tamanha loucura.
Dou-lhe tudo o que tenho”, disse Zule, mostrando-lhe as pepitas de ouro. Os olhinhos puxados do índio quase saltaram das órbitas. Ele não acreditava que veria tanta riqueza nas mãos de um moleque.
Gigante Tapuã dorme sossegado. Não pode perturbar sono. Pais antigos contam que gigante acorda de cem em cem anos. Tempo está perto. Tapuã vai acordar sem que tribo espere. Devemo ficar longe. Gigante mortal”, dizia Macabeus. Mas, tudo era em vão. Zule queria enfrentar o perigo e encontrar-se com Tapuã. A fama e a riqueza era tudo o que ele mais queria, e pra conseguir isso, enfrentaria esse desafio. Era o gigante, ou viver toda sua vida na miséria e no anonimato. Ele não podia ficar para trás. Até seus irmãos tinham destaque. Ele tinha que conseguir esse fruto. Era sua única e última esperança.
No dia seguinte, os dois partiram. Macabeus carregava um facão e alguns suprimentos. Andaram por campos abertos durante toda a manhã. À tarde, seguiram uma trilha, cercada por juncos verdes. Passaram por manguezais cobertos pela cheia do rio. Até que à noite, entraram em uma clareira, aonde tinha duas barracas montadas. Era um ponto de parada, preparado pelo índio. Iriam passar à noite ali, e pela manhã entrariam mata à dentro, desmatando um caminho pouco explorado, indo até o coração da floresta, ao encontro do grande Tapuã.
Acenderam uma fogueira e comeram peixe assado. Macabeus ainda tentou persuadir o menino a desistir da aventura, mas, ao perceber que ele era irredutível e teimoso, achou por precaução adverti-lo dos perigos que enfrentaria. “Dizem os antigos, que muitos saíram ricos e sábios, depois de comerem o fruto. Mas, muitos não retornaram. Dentro de Tapuã, tem piranhas assassinas, armadilhas mortais, e abelhas venenosas que entram no ouvido dos homens. Não tem luz dentro de Tapuã. Lugar de morte. Menino deve voltar”, implorava o guia.
Me dê sua lança e eu matarei esses montros”, Zule respondia, sem acreditar muito nas histórias antigas. “Um gigante adormecido, é um gigante sem vida. Não há nada a temer na cabeça de Tapuã. Meu grande desafio foi ter chegado até aqui. Entrar na cabeça desse monstro será apenas um detalhe”, pensava o garoto.
Antes do amanhecer, Zule acordou com o rosnado de uma onça pintada. Macabeus já estava de pé pronto para seguir viagem. Após a refeição, seguiram até a encosta de um morro e percorreram esse caminho durante muito tempo. Ao meio-dia, Zule ouviu o som de um riacho, e Macabeus apressou o passo dizendo que o rio estava próximo.
Ao ver as águas correntes, Zule correu na intenção de se refrescar, mas, foi interceptado pelo índio que lhe mostrou os crocodilos, prontos para o ataque. “Águas perigosas. Crocodilos, piranhas e cobras. Menino ter cuidado”, alertou.
Após percorrerem alguns metros ao lado do rio, chegaram a uma pequena canoa, escondida entre os arbustos. Remaram durante todo o dia, passando por corredeiras e quedas d’águas. No percurso, avistaram antas, araras de várias espécies, alguns micos e dezenas de garças. A natureza verdejante e pulsante acompanhava o braço do rio mata à dentro. Era sem dúvida uma paisagem deslumbrante. Zule, nunca esqueceria as paisagens que passara. Seria uma grande história que ele teria para contar. Uma grande aventura na floresta.
Atracaram a canoa em uma pequena ilha no meio do rio. Andaram a pé seco até a mata. Subiram um monte e caminharam no meio da vegetação. A mata fechada era de difícil acesso. Grandes árvores cobriam o céu, transformando o lugar em um cenário escuro e úmido. Os arbustos arranhavam os braços dos viajantes e os mosquitos cobriam o corpo deles, ignorando o repelente. O ataque dos mosquitos só melhorou, após queimarem um galho seco que soltava fumaça e afastava a nuvem.
Encontraram uma pequena clareira e amarraram as redes. Tentaram dormir àquela noite, mas o calor era infernal. Os mosquitos brigavam para sugar o sangue deles, os grilos cantavam, as onças rugiam, e o som de outros bichos desconhecidos, deixavam-lhes vigilantes, prontos para um ataque. Passaram a noite acordados, sentindo a ameaça aproximando-se cada vez mais. Estavam assustados.
Não perceberam quando o sol nasceu. Sabiam que havia amanhecido porque os bichos se acalmaram. Pela manhã as presas eram silenciosas. Ficavam entocadas, tentando sobreviver. À noite, Jaguatiricas fugiam apressadas perseguidas por predadores famintos. À luz do sol, elas tentavam ser discretas para viverem mais um dia. Zule e Macabeus só podiam prosseguir com a luz, mesmo que o sol penetrasse com desânimo entre as árvores.
Zule era muito curioso, e tudo que via e não conhecia, perguntava ao índio. Ele ficara surpreso com alguns buracos no chão, que pareciam pequenas entradas de ar. O índio lhe explicara que ali havia uma estrutura complexa abaixo dos pequenos buracos. Eram os chamados formigueiros. A grande construção das formigas tanajuras. E aqueles buracos, eram as portas de acesso que elas utilizavam para o transporte de alimentos e material de construção. Afinal, era verão, e as formigas trabalhavam até o inverno. Elas precisavam correr para estocar comida e ampliar o formigueiro.
Ele também queria saber os tipos de árvores, de frutos e como viver na floresta. Era decerto, muito curioso.
Até que chegaram a um pequeno abismo no meio da mata. Uma pequena fenda no chão que dividia a floresta. “Depois daqui, menino segue sozinho. Essa é a veia do coração. Menino anda direto e encontra o gigante. Macabeus não pode ultrapassar. Costume da tribo. Se ultrapassar Macabeus é maldito. Menino deve ir sozinho”, disse o índio.
Zule não tentou convencê-lo, o índio não iria adiante. Porém, ele pediu que Macabeus lhe esperasse ali. Ele não saberia voltar sozinho. Ainda precisava do guia para voltar à civilização.
Após beber água e comer carne seca, Zule partiu com o facão em punho. Atravessou a ponte sobre a fenda e entrou na região do coração da floresta. Estava prestes a realizar seu objetivo: comer o fruto dos deuses e tornar-se rico e poderoso. Ele daria muito orgulho para os seus pais. Seus irmãos iriam lhe invejar. E seus vizinhos metidos curvar-se-iam diante dele. Estava próximo da glória e da fortuna, do êxtase e da realização. Aquele era um grande momento para Zule, o explorador.
A primeira coisa que avistou foram os dedos do gigante. Ele só percebeu que eram dedos por conta das unhas longas e sujas. Se não estivesse atento, confundiria com um alto monte diante de si. Como subiria aquela inclinação?
Zule prendeu o gancho no topo do dedão, e com muito esforço, agarrou a corda subindo metro após metro. No alto, percebeu suas mãos sangrando. Limpou-se nas calças e continuo a subir. Era uma escalada íngreme. As canelas do gigante estavam repletas de musgo e ele não conseguia apoiar os dedos nas fendas. Agarrou-se a alguns galhos que cresciam rente ao corpo do gigante. E, firmando-se nos cipós, alcançou rapidamente o abdômen onduloso.
A pele de Tapuã era firme como rocha. Escalar a área do tórax foi a parte mais fácil, era o local de maior apoio para os pés. Ao chegar aos ombros do gigante, Zule pendurou-se em raízes que saíam dos ouvidos, e subiu até o lóbulo da orelha.
Dentro do pavilhão auricular, caminhou até a entrada da concha, e enfiou-se dentro da gruta enorme e escura. Alguns metros caminhando e o chão tornara-se escorregadio. Caiu em um túnel apertado que descia em uma espiral profunda. “Se descesse mais, talvez parasse no estômago do gigante”, pensou, ao desabar numa poça.
A cabeça do gigante era uma caverna sombria, lamacenta, úmida e cheia de mofo. Com a lanterna ligada, Zule seguia a trilha que o livreto indicava para chegar ao fruto dos deuses. Havia um caminho demarcado por outros aventureiros, aquele não era um lugar inexplorado. Outros também vieram atrás do poder vindo de Tapuã. Zule sabia que seria bem sucedido em sua empreitada. Nunca mais as coisas seriam as mesmas. Um novo futuro estava por vir.
Alguns morcegos voavam velozes, assustando o menino. Ele tentava iluminar o topo da cabeça do gigante, mas o facho de luz não alcançava chegar tão alto. O que a luz conseguiu focar, foi um morcego ressecado, de olhos vermelhos, pousado diante dele, dando-lhe um susto e fazendo-lhe cair.
Que queres viajante? Estás perdido?”, o morcego perguntou, com uma voz rouca e envelhecida.
Zule foi tomado pelo espanto. Ele tremeu ao ouvir a voz do morcego, mas não quis questionar o porquê daquela anomalia. Ao invés de gritar e correr assustado; decidiu iniciar um diálogo com aquele bicho estranho e falante. “Vim para comer o fruto dos deuses. Vim em busca de riquezas e glórias. Pode me ajudar?”, ele perguntou.
Não vás adiante. O caminho da morte lhe espera. Suba as escadas auriculares e retorne para casa. O preço que se paga para chegar ao fruto é alto, e não se pode retornar a partir daqui”, disse o morcego, mostrando uma ponte de nervos.
Não posso voltar. Meu destino é ser grande. Só irei retornar após comer o fruto dos deuses”, o menino respondeu, determinado a seguir adiante.
Zule olhou o mapa cerebral e confirmou sua localização. Estava no hemisfério esquerdo, lugar de raciocínio lógico, uma área que ele pouco dominava. Para chegar ao fruto, teria que percorrer um enorme labirinto, descer por uma espiral no lobo frontal até chegar ao centro. Seria mais uma grande viajem a realizar, mas ele estava confiante.
Não percebeu que estava faminto. O estômago roncou dando sinais. Encostou-se em uma raiz seca, e comeu maça e chocolate. Aproveitou para tomar água e lembrar-se de casa. “Como seu pai estaria? Será que sentiam saudades? Uma semana tinha se passado. Deviam estar desesperados atrás dele”. Lembrava-se de que todos os dias quando o pai ia trabalhar, dava um beijo em sua testa. Seu pai era incrível. Motorista de ônibus incansável. Todos os dias, pontualmente, ele saía às seis da manhã, e só voltava às seis da noite. Homem forte e trabalhador. Merecia que seus filhos lhe dessem orgulho.
Zule caminhou no meio da escuridão. Um emaranhado de teias grossas se entrelaçava em um ninho viscoso e difícil de ultrapassar. Para ir adiante, precisou usar o facão e cortar o emaranhado de fios à sua frente. Em seguida, chegou a um grande salão oval com teto curvilíneo, que gotejava um líquido gosmento. Um grande lago verde e borbulhante havia se formado, e piranhas com dentes afiados, saltavam de um lado a outro, mergulhando naquelas águas ácidas.
Só há uma maneira de ultrapassar”, disse o morcego, atrás de Zule.
O garoto assustou-se e jogou o facho de luz no rosto do morcego falante. Ele voou pousando em uma fenda próxima.
Você quase me mata de susto. Por que está me seguindo, se não vai me ajudar?”, Zule perguntou, ainda ofegante.
Não importa. Você não pode mais voltar. Agora encontre o centro do cérebro, ou morra aqui”, respondeu o morcego.
Como ultrapasso esse lago?”.
Deves escalar até o teto e pendurar-se nas alças que lá estão. Não podes cair nessas águas. Se as piranhas não lhe comerem antes, o ácido irá corroer sua alma”, avisou o mamífero.
Zule ficara impressionado. Realmente iria precisar da ajuda do morcego. Estava com medo. Nunca havia feito isso. Mas, agora precisava ser corajoso e enfrentar esse obstáculo. Não podia mais voltar, então, tinha que chegar até o fruto e escapar depois de conquistar a glória.
Tenho uma boa notícia para lhe dar”, disse o morcego observando-o com um olhar tristonho. “Os musgos que existem por aqui, são poderosos coagulantes; se por acaso um membro seu for amputado, musgo é o melhor remédio. Não se esqueça disso”.

O que ele quis dizer com amputado?”, pensou o menino. “Enfim, não podia mais perder tempo”, continuou sua jornada escalando a parede e pendurando-se nas alças. 

As primeiras foram fáceis, uma após outra, e o teto parecia alongar-se cada vez mais. No meio do lago, seus braços começaram a doer, a mochila pesava e o cansaço tomava-lhe por inteiro. Precisava ser forte. Não queria morrer ali. Continuou. Agarrando uma alça e soltando a outra. Parou. Sentiu um toque no tênis. Olhou para baixo e um grito mudo lhe tomou de assalto. As piranhas pululavam de boca aberta, tentando abocanhar os seus pés. Desesperou-se. Soltou uma mão e alça da mochila despencou. Não poderia perder suas coisas. Tudo estava ali. O mapa, a água, a comida e o facão. Não poderia perder sua mochila. Mas, ela pesava, e se não fizesse algo perderia seus pés, ou cairia no lago de ácido borbulhante.

Encolheu suas pernas e apoiou as duas mãos novamente. Prosseguiu mais alguns metros e parou. Estava exausto. Não conseguiria ir adiante, tinha que fazer algo. Soltou a mochila e observou suas coisas caírem a afundarem no lago. Estava mais leve. Quando intentou segurar a próxima alça, sentiu dentes afiados abocanharem os seus pés e arrancarem-no de si. Um ardor subiu dos cotocos até a cabeça. Segurou com mais força as alças. Não podia morrer. Prosseguiu ainda mais rápido desejando chegar do outro lado. Desabou no chão de musgos, sentindo muita dor. Sua mochila ainda boiava sendo estraçalhada pelo ácido. Seus pés viraram jantar de piranha. Estava esgotado.

Lembrou-se do conselho do morcego, e esfregou musgo nos pés arrancados. Não conseguia pensar em nada. “Espero que o sangramento pare”, disse, antes de desmaiar.
Acordou assustado. Uma gota pingava insistente em sua cabeça. Sentiu algo no bolso e tirou uma lanterna de lá. Era a única coisa que carregava, perdera tudo. “Sem mapa, como continuaria? E seus pés?”. Olhou e não sentiu mais sangrar. Havia estancado. “Mas, como andaria? Se arrastando? Será que valia mesmo apena continuar? Tudo isso pra conquistar fama e riquezas. Será que valia mesmo apenas?”, pensava.

Não demorou muito e um pato com passos curtos e bico achatado, se aproximou dele. Parecia irritado e muito apressado. “Anda, venha depressa. Não tenho tempo a perder com aventureiros”, gritava o pato. “Para onde ir?”, Zule perguntava.

“Siga-me sem mais perguntas”, o pato dizia, com uma voz anasalada e entediada.

Tudo era muito estranho, mas não havia tempo a perder. Arrastou-se pelo musgo atrás do pato e chegou diante de um armário aberto. “Escolha um e suma”, dizia o pato, mostrando fileiras de pés de pato arrumadas nas prateleiras do armário.

“O que é isso?”, Zule perguntou.

“Um favor!”, o pato respondeu. “Geralmente eu cobro, mas meu amigo morcego pediu que eu lhe ajudasse”.

Observou os pés de pato e não acreditou no que estava acontecendo. Queria ter os seus próprios pés, não aqueles. Mas não podia rejeitar a oferta. Talvez fosse a única coisa que não pudesse recusar. Como iria andar, sem os pés?

Apontou para os primeiros da fila. Viu o pato retirar o par de pés e enroscar nos cotocos. Sentiu quando os pés acoplaram-se aos seus. Ficou em pé e deu alguns passos. Desequilibrou-se no início, mas depois, abrindo bem as pernas, caminhou normalmente, parecendo um pato.

“Vá e não volte mais. Não entendo porque entram aqui. Espero nunca mais cruzar seu caminho”, disse o pato, trancando o armário e sumindo entre a relva cerebral.

“Espera, diga-me a direção para o fruto”, Zule gritou, mas já era tarde. O pato desaparecera. Teria que ir sem rumo. Sem saber o caminho.

O ar ali era denso e opressor. A massa encefálica cinza formava um muro alto que estreitava o caminho. Não sabia para onde estava indo, e não poderia ficar perdido na cabeça do gigante. Mas, sem um mapa ele não tinha como prosseguir. “Onde está o morcego para me ajudar?”, perguntou-se.

Um buraco se abriu no chão e o engoliu. Caiu em uma geleia grudenta que o imobilizava. Ao redor, dezenas de esqueletos afogados na gosma escura. “Que diabos era aquilo? Caíra em uma armadilha?”. Como uma areia movediça, a gosma nojenta ia lhe sugando cada vez mais. Morreria afogado se não saísse imediatamente. “Mas que merda, primeiro perdi minha mochila, depois meus pés, e agora morrendo afogado em um poço fedorento. O que mais poderia acontecer?”.

Uma sombra cobriu o poço, assustando-o. Olhou para o alto e uma figura aterradora tomou forma. Uma tarântula gigante, com milhares de braços humanos lhe encarava silenciosa. Seus olhos xadrezes esverdeados analisavam-no por completo. “Isso não é um bom sinal”, pensou o menino.

A aranha era pesada apoiando os braços humanos no chão. Braços negros, brancos, finos ou grossos, todos saiam da criatura e lhe serviam de pernas. Ela desceu o buraco se aproximando de Zule. Segurou sua cabeça com algumas mãos sujas. Tentou arrancá-la, mas parou ao ver uma lágrima caindo dos olhos dele.

“Não irei matá-lo. Mas, quero algo seu”, disse a aranha, com uma voz musical que ecoava sensualidade.

“Não tenho nada de valor”, Zule respondeu, com a voz trêmula.

“Engano seu”, ela disse sorrindo e mostrando as garras bucais. “Dê-me seus braços, e lhe tirarei daqui. Pelo contrário fique com eles e morra como os outros à sua volta”.

“Não posso fazer isso. Como viverei sem meus braços?”.

“Quando comer o fruto dos deuses, terá quantos braços quiser”, argumentou a aranha.

Zule percebeu que afundava cada vez mais. Quando tentava sair e agarrar-se na parede lamacenta, sentia seu corpo descendo na gosma escura. Uma agonia tomou de conta. Coração acelerado, respiração ofegante, estava em desespero. Não queria morrer afogado, mas também não queria perder os seus braços. Já não tinha os pés, e agora os braços? Como sairia da cabeça do gigante sem as mãos?

“Não irei perguntar novamente, irás me dar os braços, ou prefere morrer afogado?”, a tarântula insistia.

O tempo estava esgotando. A gosma cobria sua cintura. Em poucos minutos estaria submerso. Não via outra opção se não ceder à proposta da tarântula. Iria aceitar perder seus braços, para sobreviver. Gritou dizendo que sim. Fechou os olhos tentando não pensar na dor.

“Levante os braços”, ordenou a aranha. Zule obedeceu, e ela puxou-lhe da gosma tirando-lhe do buraco. Em seguida mordeu-lhe o pescoço fazendo-lhe desmaiar. Para depois, arrancar-lhe os dois braços e acoplá-los em si. Antes de partir, estancou a sangria com os musgos e deixou o menino adormecido.

Zule acordou esgotado. Parecia que haviam arrancado sua alma. Mesmo cambaleando, caminhou alguns metros, com seus pés de pato. Estava desolado. Sem braços, precisava do fruto. Não queria passar o resto da vida sem manipular as coisas. Queria seus braços de volta.

Caminhou durante horas, com fome, sede e frio. No meio do labirinto cerebral, cercado por muros de massa cinzenta, desmaiou. Foi despertado por uma voz infantil. Uma menina gritava muito alto. “Acorda! Você não pode morrer!”.

Despertou sobressaltado. Da parede esbranquiçada um rosto infantil desgrudava-se tentando sair dali de dentro. “Se respirar este ar por muito tempo irás morrer intoxicado. Precisa continuar”, disse a menina.

“Quem é você”, Zule perguntou curioso.

“Uma aventureira assim como você que não conseguiu comer do fruto. Estou presa aqui, ninguém pode me tirar. Mas, isso não me impede de ajudar outros idiotas que passam por aqui”, ela disse.

“Diga-me como chegar ao centro do cérebro?”, perguntou cansado.

“Antes de chegar ao fruto, deves conhecer o senhor molusco. Ele vai te ajudar com os ‘braços’”.

A garota indicou o caminho para chegar ao molusco. Disse que ele saberia a rota para o fruto.

Caminhando como um pato, Zule chegou ao oceano nervoso. Desequilibrava-se algumas vezes, mas conseguiu permanecer de pé a maior parte do tempo. Encontrou o senhor molusco trabalhando com discos.  Ele era DJ nas horas vagas. Pediu que lhe ajudasse mostrando que estava sem braços. O molusco trouxe-lhe dois tentáculos e acoplou-os ao corpo do menino. Agora sim, Zule podia continuar. Os tentáculos não eram como os seus braços, mas lhe serviriam temporariamente.

E assim Zule continuou em busca do fruto dos deuses. Com pés de pato e tentáculos de molusco, ele era um retalho ambulante e assustador. Caminhou para o norte até o salão das máscaras, e ao entrar no ambiente, o portão fechou-se atrás dele.

O lugar era gigantesco. Um grande retângulo, cheio de escadas e máscaras de rostos humanos em exposição. Milhares de pessoas andavam por ali, todas vieram atrás do fruto, mas agora se encontravam presas naquele salão. Rostos tristes e sem esperança.

Zule chamou atenção de um homem alto que passava por perto. “Diga-me senhor, como chegar ao fruto?”

“Não é possível chegar ao fruto. Fomos tragados para uma grande armadilha”, respondeu o homem desconsolado.

Mas Zule não podia acreditar que era o fim. “Deve ter uma saída. Algo a se fazer”, pensava.

“Aquele é o único caminho”, disse o homem apontando para uma porta vermelha no lado oposto da sala. “Se a mulher do espelho reconhecer seu rosto, poderás passar em paz. Do contrário terás o pescoço arrancado”.

Aquilo deixara o menino curioso. O que fazer para passar pela porta? Zule precisava arrancar seu rosto e vestir uma máscara.

“Existem bilhões de máscaras neste salão, mas somente uma poderá ser reconhecida pelo espelho, somente uma. Antes eram nove agora só resta uma. A última máscara do último guardião”, explicou o homem.

Precisava vestir um novo rosto e caso fosse do último guardião, estaria a salvo e poderia continuar a jornada. Era um desafio enorme e muito difícil de ultrapassar. Como achar uma máscara específica em meio a bilhões de máscaras? E, seu rosto, sua imagem, como que ficaria a partir de agora?

Pensou em voltar, mas não encontrou nenhuma saída. Estava trancado com os outros. Esbarrou em milhares de pessoas. Teve fome e sede. Observou homens, mulheres e crianças arrancarem seu próprio rosto, vestir uma máscara com o rosto de outra pessoa, e caminharem até a porta vermelha.

Antes da porta, havia uma guilhotina. Quando alguém se aproximava, a lâmina da guilhotina subia, revelando o fio da navalha cortante. O viajante apoiava o pescoço na barra, imobilizando a cabeça; logo em seguida, olhava para um espelho adiante. Se a mulher no espelho sorrisse, a porta se abriria e o candidato poderia continuar. Caso contrário, se a mulher ficasse irada, a navalha cairia, seccionando o pescoço da vítima. 

Uma atrás da outra, as pessoas trocavam de rosto, ajoelhavam-se diante da guilhotina e perdiam o pescoço. Qual a chance de achar uma máscara entre bilhões? Somente uma pessoa entraria! Qual a chance de Zule? Ele seria decapitado, com certeza! Fim da história, não havia mais o que fazer.

Durante meses, o menino andou de um lado para o outro, em conflito. Alimentou-se mal, e estava desidratado. “Já estou morto. Tenho que arriscar”, pensava.

Subiu no último andar do salão e procurou um rosto para si. Sempre desejou ter olhos azuis e nariz afilado, pelo menos isso iria realizar. Arrancou seu rosto e com muita dor, colou a nova face. Olhou seu reflexo num pequeno espelho, e gostou do que viu. Estava bonito. Agora iria enfrentar a guilhotina. Morreria com olhos azuis.

Aguardou duas mulheres à sua frente. Foram decapitadas. Esperou a lâmina, ainda suja de sangue, levantar. Apoiou o pescoço na barra e sentiu quando ficou preso. Um filme passou em sua cabeça. Pensou nos pais, nos irmãos, na sua casa. Nos natais, nos aniversários, e nas brigas. “Irei morrer sozinho”. Tentou sair dali, mas não conseguia. Gritou pedindo socorro, mas ninguém poderia ajuda-lo. Fechou os olhos para não ver o espelho, mas a mulher refletiu sua imagem. Era tarde demais. Estava a um fio da navalha. Podia escutar a lâmina descer furiosa e partir o seu pescoço ao meio. Podia imaginar sua cabeça quicando e sendo jogada no fogo. Não queria morrer daquele jeito.

Abriu os olhos e viu a imagem da mulher no espelho. Um rosto doce e angelical. Sorriu, e esperou a morte.

Mas a mulher retribuiu o sorriso, e uma luz ofuscou o salão inteiro, abrindo a porta vermelha. Zule levantou-se e caminhou em direção ao portal. Não olhou para trás, estava a salvo. Um grande alívio pousou em seu coração. Respirou profundamente e fechou os olhos. Fora escolhido para comer o fruto. Nada poderia lhe parar. Era um verdadeiro herói.

Estava pronto para comer a glória. Depois de tudo que enfrentara nada mais poderia lhe deter. Sendo provado e aprovado em todos os desafios, sentia que estava destinado a ser grande e adorado. Uma sensação de triunfo lhe preencheu. Sentia-se ótimo.

Uma mulher mística com vestes brilhantes voou até Zule. “Siga adiante e encontrará o fruto”, ela disse. Em seguida, partiu, deixando uma luva cintilante com ele. “Pra que serve isso?”, perguntou-se.

Desceu alguns degraus até entrar em um oráculo mágico. O lugar era um ovo gigante com um pedestal no meio. Em cima do pedestal, uma esfera vermelha cintilante, pulsava. O fruto dos deuses lembrava uma uva encrustada de rubis, e ao redor da uva, um fogo ardente lhe envolvia.

Então era verdade; o fruto existia; estava ali diante dele. Era o momento mais esperado em toda sua vida. Comeria e tudo se transformaria. Glória, poder e grandiosidade. Todos se curvariam diante da beleza e superioridade de Zule, o grande.

Ao se aproximar do pedestal, sentiu o calor do fogo envolvente. Pôs as luvas cintilantes, na ponta dos tentáculos, e tomou o fruto em suas novas mãos. Foi tomado por uma grande emoção. Pela primeira vez em toda sua vida, conseguira conquistar alguma coisa relevante.

Assustou-se quando a mulher mística materializou-se diante de si. “Seja grande e poderoso”, ela disse. “Não podes comer o fruto dentro do gigante”, alertou antes de sumir, como uma estrela cadente.

Sem que Zule percebesse, um homem sem rosto observava tudo o que acontecia no óraculo. Atrás de portas entre abertas, ele espiava Zule caminhar com o fruto até o corredor da liberdade.

Antes do corredor que dava acesso ao exterior do gigante, havia um saguão no meio. E, no centro, uma mesa comprida recheada de comida. Zule observou as coxas de frango, os peixes assados, os pães suculentos, as maças e uvas brilhantes, as taças de vinho. Estava faminto, não poderia resistir a essa oferta. Afinal, havia conquistado seu prêmio, aquilo era sua recompensa.

Sentou-se diante do banquete e saciou sua fome e sede. Comeu muito, mas muito mesmo. Ficou pesado de tanto comer. Teve sono. Tirou as luvas e apoiou o fruto dos deuses na mesa, perto de si. Dormiu.

Abriu os olhos lentamente. O sono ainda pesava em sua cabeça. Não tinha noção do quanto estava cansado. Esticou os tentáculo e as pernas com os pés de pato. Estava renovado. Nada melhor do que uma boa refeição e um ótimo cochilo. Olhou ao redor e viu toda a bagunça que fizera. Resto de carne, copos sujos e frutas pelo chão. Voltou a olhar para a mesa e se deu conta de que o fruto dos deuses havia sumido. Entrou em desespero. Onde estava? Tinha deixado em cima da mesa perto de si! Como sumira assim?

Ouviu alguns passos atrás de si. Olhou de relance e percebeu uma sombra passando entre caixotes abandonados. “Quem tá aí?”, perguntou com a voz trêmula. Correu em direção ao barulho e viu um homem atarracado segurando o fruto nas mãos. “Devolva meu fruto, seu ladrão de uma figa”, gritou, perseguindo a figura estranha.

Correram em direção ao corredor da liberdade. Zule não iria deixar que ninguém roubasse aquilo que tanto lutou para conquistar. Mataria se preciso fosse pra ter o fruto novamente.

Esticou seu tentáculo e derrubou a figura estranha. O homem puxou uma faca e cortou a ponta do tentáculo. Zule soltou um grito de dor que ecoou por todo o ambiente.

Entraram em luta corporal. O menino tinha a mesma altura do homem, mas seus pés não ajudavam, e ele se tornava lento. Zule agarrou-se com o fruto e correu em direção à saída. Uma serpente gigante se aproximava dos dois forasteiros, pronta para dar o bote. Estavam encurralados. Precisavam sair o mais rápido possível.

No fim do corredor, viram uma luz irradiar. O problema é que sapos, grudados nas paredes, cuspiam uma gosma grudenta que imobilizava os pés dos dois perseguidos. Enquanto isso, a serpente se arrastava ligeira com a boca aberta pronta para engolir suas vítimas. Com muito esforço, Zule conseguiu se livrar da gosma e continuou até chegar à porta de saída. Olhou para trás, e viu o homem se debatendo para se livrar daquilo. “Ajude-me, por favor, me tira daqui”, ele gritava em desespero. Ainda pensou em voltar, mas se retornasse seria engolido pela serpente. Não conseguiria se desgrudar daquela cola. Não podia perder sua vida. Infelizmente teria que partir sem o homem atarracado.

Deu as costas e saiu do corredor. Sentiu o calor vindo dos raios solares. Escutou o grito apavorado do homem sendo devorado pela serpente. Não havia mais o que fazer, ou ele ou os dois iriam morrer. Não podia se sentir culpado. Não havia mais lugar para a culpa em sua vida. Estava livre de qualquer coisa que lhe colocasse para baixo. Não aceitaria mais esse tipo de sentimento. Seria grande.

Estava no topo da cabeça do gigante, e uma escada de cordas surgiu do interior do cérebro. Desceu com alguma dificuldade, pois os pés de pato e os tentáculos não ajudavam, precisava livrar-se daquilo.

Observou o fruto diante de si e preparou-se para comer. Com os olhos fechados, imaginou-se morando em um castelo, sentado em um trono, com roupas celestes, banquetes grandiosos e festas de gala. Viu diante de si uma multidão que lhe admirava e lhe invejava. Seus vizinhos e colegas da escola tentando lhe bajular, e sendo ignorados e humilhados. Seus pais contando a todos o poder e soberania do filho. Milhares e milhares beijando seus pés e tentando se aproximar. Sentiu-se um deus.

Antes de morder o fruto, sentiu o chão tremer. Abriu os olhos lentamente e sentiu mais uma vez a terra estremecer. Ouviu as aves revoarem em desespero, os macacos gritarem assustados, as árvores caírem ao redor. Olhou para o alto e não acreditou no vira. O gigante havia acordado.

“Dê-me o fruto. Ele não lhe pertence”, disse o grande Tapuã olhando para Zule. O menino correu em disparada, não conseguia ver nada diante de si, caiu e levantou-se, “malditos pés de pato”, pensava enquanto tentava escapar.

O gigante esmurrou o chão abrindo uma cratera na terra. Zule saltou com o baque. “Logo agora que conseguira o fruto, iria morrer esmagado por um gigante? Não, não, precisava sair dali e voltar para a civilização. Precisava ser adorado e rico”.

Tapuã levantou sua perna pesando toneladas. Iria esmagar aquele ladrãozinho infeliz. Zule percebeu quando uma sombra inundou toda a floresta. Debaixo da sola do pé de Tapuã, só havia escuridão, e Zule estava naquela escuridão. Tentou correr mais rápido, mas não conseguia. Ouviu e sentiu o vento soprar pela floresta. Era o pé de Tapuã que descia sobre Zule.

Tudo tremeu quando o gigante pisou sobre o menino. Tapuã olhou na sola do pé se o ladrão escapara. Abaixou-se e procurou entre as árvores retorcidas. Havia muito sangue de animais esmagados. “Certamente estava entre eles”, pensou. Apontou sua mão para baixo, e como se puxasse algo, esperou até que o fruto dos deuses flutuasse até ele. Agarrou a esfera de rubis e inalou-a. Fechou os olhos e voltou a dormir.

A floresta congelou em silêncio. Olhos assustados focavam no gigante, temendo sua grandeza. O ar suspenso temia fazer barulho. Tudo ao redor prostrava-se diante da onipotência de Tapuã. Seu sono deveria ser respeitado.

Não havia rastros de Zule. Provavelmente, seu corpo fora esmagado e imprensado na terra. Não tinha chances de sobreviver à pressão entre o peso do gigante e o chão duro. A não ser que se escondesse no solo.

E foi assim que Zule escapara. No último minuto, jogou-se em um buraco pequeno no solo e caiu em um túnel estreito. Uma caverna de tons amarronzados iluminada por raios solares aconchegou o menino. Na queda, perdera seus pés de pato e os tentáculos, era um boneco desmembrado.

Não conseguia se mexer, estava imobilizado. Seu peito palpitava, seu rosto sujo de lama mostrava uma face de puro horror. Perdera o fruto, e estava numa cova no meio da Amazônia. Sem mãos, sem pés e preso. Tudo estava perdido. Foi-se a glória, foi-se a fama e o poder. Chorou e soluçou alto. Perdera outra vez. Era um fracasso total.

Ouviu patas caminharem ao redor. Uma formiga tanajura subiu no alto do seu nariz e disse: “Aqui não é o seu lugar. Saia daqui”.

“Se eu pudesse ao menos me mexer eu sairia”, ele disse melancólico.

“Onde estão seus braços e seus pés?”, perguntou a formiga.
“Na cabeça do gigante”.

“Diga-nos como chegar lá e traremo-los até você”.

Zule então lhe contou toda sua jornada, desde o lago ácido até o oráculo mágico. Pediu que as formigas trouxessem o fruto, mas recebeu um não delas. Disseram que não pegavam nada que não lhes pertencia.

No dia seguinte, um batalhão de formigas tanajuras subiram até a cabeça do gigante. Enquanto que no formigueiro, um segundo batalhão permanecia trabalhando para reconstruir o estrago que Zule causara, e para estocar alimentos.

Zule passou dias observando as formigas. Elas levantavam antes de amanhecer e iam trabalhar. As mais novas eram desengonçadas no começo, mas com o passar dos dias adquiriam habilidade e conseguiam fazer o serviço de forma eficaz. Todas se ajudavam mutuamente. Eram focadas, disciplinadas e nunca desistiam. Quando uma coluna de barro desmoronava, analisavam aonde tinham errado e depois de encontrar a falha, reconstruíam da forma correta.

Amorosas, conversavam umas com as outras, sorriam satisfeitas. Nada lhes faltava, eram felizes. Não existia uma competição para saber quem era melhor, quem tinha mais talento, quem era mais veloz. Todas buscavam fazer o seu melhor. Se alguma não se encaixasse em um determinado labor, eram designadas para outro lugar até se encaixarem adequadamente. Era encantador observar o trabalho das formigas.

Durante aqueles dias, ali, no interior da terra, no lugar mais baixo da superfície. Zule percebeu algo que não estava enxergando. Procurava a grandeza nas alturas do gigante, mas, encontrara algo mais precioso nos lugares baixos.

Enquanto isso, na cabeça de Tapuã, as formigas marcharam pelo lago das piranhas, pelas armadilhas da aranha, e não foram barradas. Chegaram até o salão das máscaras e cavaram um túnel, libertando todos que estavam ali.

Algumas semanas depois, Zule alegrou-se quando as tanajuras voltaram ao formigueiro com braços e pés humanos. Não eram os seus braços ou os seus pés, mas serviriam, era melhor do que os pés de pato e os tentáculos de molusco.

Imensamente agradecido pela estadia e ajuda, deixou o formigueiro e seguiu até o abismo que separava a floresta. Ali, avistou Macabeus deitado em uma rede.

O índio assustou-se quando olhou para Zule. Não lhe reconheceu. O menino continuava com um rosto diferente do verdadeiro. Teria que viver para sempre com uma nova aparência. Pelo menos teria braços e pés humanos.

Conseguiu voltar à Manaus e pegou um ônibus pra casa. Sentindo-se diferente sabia que sua vida nunca mais seria a mesma. Algo havia mudado.

Depois de enfrentar piranhas assassinas, aranhas mutantes e mulheres no espelho. Depois de ser mutilado, perder sua identidade e mudar sua essência para conquistar a fama. 

Percebeu que poderia encontrar-se no mundo se imitasse as formigas e trabalhasse arduamente. Se se esforçasse e nunca desistisse. Se contasse com ajuda de pessoas experientes para lhe auxiliar. Se fosse humilde como as formigas e trabalhasse em equipe. Se entendesse que o principal não era ter, mas ser. Ser íntegro, honesto e determinado. Ser consciente e entender que era único e que não deveria invejar os outros, mas trilhar o seu próprio caminho.

Zule não era seu irmão. Não era seus vizinhos. Não era seus colegas de escola ou até mesmo Erni Gobs.

Zule era Zule, e ninguém mas era como ele. Mesmo que tivesse outra face ele seria unicamente Zule.

Fora recebido por seus pais que inicialmente não o reconheceram. “Você não é o meu Zule. O meu Zule tem olhos castanhos e nariz achatado”, dizia Maria Inteiro, mãe de Zule.

“Sou eu mãe. Com um rosto que não é meu, mas ainda assim sou eu”, ele explicava.

Zule Inteiro não era mais inteiro. Deixara muitas coisas pelo caminho. Mas, aprendera que nada se conquista do dia para a noite. “Uma mordida e tudo se transforma”, não era verdade. Precisava trabalhar arduamente para conquistar o seu espaço.

Pensando nisso, trabalhou no que mais amava fazer: contar histórias. Começou na escola, depois na vizinhança e por último nas praças. Estudou, fez oficinas de histórias e se profissionalizou. Escreveu um livro de um menino que entrava na cabeça de um gigante. Fora aplaudido por seu talento. Depois de muito tempo, Zule já não era mais um fracasso. Dia-após-dia trabalhou para ser grande, e encontrando a si mesmo, encontrou a glória.

FIM
Era uma Vez... | conto II

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ERA UMA VEZ...



Antologia de
Hugo Martins

CONTO II
Mundo Perdido




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MUNDO PERDIDO


 Era uma vez uma casa amarela no fim da rua, onde morava a família do mecânico.

Albert era o filho mais novo do casal. Desde pequeno, o menino vivia grudado em um violão, tocando e cantando. Sua alegria era a música. Isso era notável.
Mas o velho mecânico não concordava que seu filho fosse músico. “Isso não tem futuro”, ele berrava. E o pobre Albert ficava triste com a reprovação do pai.
No dia do seu aniversário, Albert ganhou uma caixa de ferramentas, e com isso, havia entendido o que o pai desejava que ele fizesse.
Na calada da noite, o menino pegou seu violão, e com um martelo, quebrou o instrumento para em seguida atear fogo no resto.

Nos anos seguintes, Albert dedicou-se a ajudar seu pai na oficina de carros. O menino cresceu, tornou-se adulto, casou e teve filhos. Mas, continuou sendo mecânico. Aparentemente, estava feliz.
Todos os dias Albert fazia a mesma coisa: acordava às seis da manhã, vestia seu macacão, fazia a refeição, e trabalhava o dia inteiro na oficina. À noite, assistia TV com a família, e as vinte e uma horas dormia.

No dia seguinte, ele acordava às seis da manhã, vestia seu macacão, fazia a refeição, e trabalhava o dia inteiro na oficina. À noite, assistia TV com a família, e as vinte e uma horas dormia.
E assim ele vivia todos os dias, todos os meses, o ano inteiro. Seus hábitos eram conhecidos entre os vizinhos. Ele tinha os mesmos horários de sempre. Os mesmos cumprimentos de sempre. As mesmas piadas de sempre. O mecânico era previsível, e em certo ponto: mecânico.

Até que certo dia um alvoroço tomou conta das ruas. Pessoas corriam apressadas para saber o que estava acontecendo com a cidade. 
Na TV, a repórter comunicava que vários acidentes estavam acontecendo. Carros desgovernados atingiam postes e causavam incêndios. 
Aviões chocavam-se nos ares. Os navios perdiam o rumo e sumiam no oceano. O relato era de que várias pessoas estavam perdidas, sem direção, sem saber para onde ir. 
Elas não sabiam mais como chegar em casa, no trabalho, na escola. Simplesmente não lembravam como voltar de onde tinham saído.
Eles começaram a chamar o evento de: surto da bússola, pois ninguém conseguia dar rumo a nada. E, de repente a TV parou de noticiar. Os rádios não funcionavam. Não tinha mais sinal de celular. Um verdadeiro apocalipse atingiu o planeta, deixando as pessoas desorientadas.

Albert saiu de sua oficina e simplesmente não sabia mais como chegar em casa. À direita? À esquerda? Qual rua? Qual sentido? Ele não sabia como voltar para sua casa. A casa que ele viveu durante toda a vida. Como isso era possível? Pelo menos estava próximo à oficina. Ficaria lá até que um familiar ligasse lhe mostrando o caminho. 

Quando deu meia volta para retornar ao seu lugar de trabalho, percebeu que não sabia em que lugar estava. Que rua é essa? Que casas são essas? Onde estou? Não sei que cidade é essa? Como voltar para a minha oficina?

Ele estava desesperado. Perguntou às pessoas desorientadas onde estavam, mas elas também não sabiam. Um verdadeiro caos surgia diante de seus olhos. 
Casas, lojas e bancos eram saqueados. Mulheres estupradas em becos escuros. Não havia policiamento, não havia ordem, não existia mais direção. Essa era a verdade: todos estavam perdidos.
O celular de Albert tocou, era sua esposa. “Onde você tá?”, ela perguntou desesperada. Ele tentou explicar sua localização:
 “Estou perto de uma torre de telefonia. Deve ser por isso que meu sinal ainda funciona. Vou sentar aqui e te esperar”. 
Ele ficou sentado durante horas, mas a mulher não veio. Um cachorro passava desorientado, e Albert correu para abraça-lo. Ao retornar para o lugar que estava, percebeu que a torre não estava mais ali. 

Mas, ele não havia saído do lugar. Somente alguns passos, não poderiam leva-lo para tão distante. Mas foi exatamente isso que aconteceu. Ao olhar para cima, viu a torre ao longe, muito distante.
Ele não sabia explicar como isso aconteceu, mas sabia que nada mais seria como antes. Todos estavam perdidos.
Albert ocupou uma casa abandonada. Passou alguns dias naquele lugar, até que ao sair do local, perdeu-se novamente. Era comum encontrar pessoas perdidas, juntar-se a elas e perder-se novamente. 

E agora? O que fazer? Como ter uma vida sem saber para onde ir, em momento algum? Como a sociedade poderia prosseguir sem um ponto de partida, e sem uma rota a seguir?
 Ninguém podia reclamar com os políticos, pois não se sabia onde eles ficavam. Ninguém tinha ajuda do exército, pois o exército também se perdera. 
Ninguém podia ajudar ninguém, sem destino, sem mapas, sem sentido. Algo que a humanidade nunca havia passado estava acontecendo agora. Pessoas que não sabiam aonde chegar, e nem onde estavam. Era um verdadeiro fim do mundo.

As pessoas estavam aflitas e desesperadas. Muitas morriam violentadas, com fome, doentes. Onde ficavam os hospitais? Onde ficavam as farmácias?
Se seguissem mapas perdiam-se da mesma forma. Se orientar por bússolas era ineficaz. Seguir o GPS era andar e ir para lugar nenhum.
O senso de direção dentro do cérebro humano estava desligado. Nada, nem ninguém poderiam consertá-lo.
“Temos que aceitar que isso é o fim, e viver perdidos”, pensava Albert.

Mas, certo dia, um homem montado em um cavalo branco, seguido por 22 cavaleiros, gritou pelas ruas que havia encontrado a cura. 
Ele dizia que sabia como dar destino à humanidade. Que podia consertar o mundo novamente, e dar sentido aos homens. 

“Nós andávamos sem rumo, cada um vivendo seus erros e cometendo atrocidades. Estávamos sem lei, sem temor, fazendo o que queríamos. E, precisávamos perder o sentido de direção para cairmos em si, e buscar a ordem. Eu tenho o caminho. Eu sou a verdade. Venham até mim e encontrem o verdadeiro destino”, ele clamava pelas ruas.

Muitos seguiam “Boxo, o proclamador”. Ele dizia que se não o seguissem agora, iriam se perder novamente. Então, muitos com medo de ficarem desgarrados, se juntavam ao Boxo e marchavam com ele.
Sua proposta era chegar à estação de trem da linha sul, onde havia um túnel muito comprido. Ele dizia que os 22 cavaleiros [sacerdotes] que haviam percorrido o túnel, voltaram curados, sabendo que direção seguir. 
Com isso, muitos seguiam Boxo. Colocavam coleiras em seu pescoço, e em fila indiana seguiam o cavalo branco. Esperavam entrar no túnel e sair de lá curados, sabendo o seu destino.

Todavia, no meio do caminho, Boxo e seus seguidores toparam de frente com os oposicionistas. Em uma encruzilhada, um homem montado em um cavalo vermelho, seguido por vinte e dois homens, ordenou que Boxo parasse e soltasse o povo, pois “Harau, o libertador”, viera trazer a verdadeira direção.

Um conflito nascia naquela encruzilhada. De um lado, o proclamador e seus seguidores. Do outro, o libertador e seus fiéis súditos. Para que lado seguir? Para que direção caminhar?
Albert havia posto a coleira do proclamador, mas ficara surpreso ao descobrir que mais de um cavaleiro indicava o caminho.

Harau era valente em seu cavalo vermelho. Seus súditos estavam armados, prontos para a luta. De punhos cerrados e convictos de seu mestre, não poupariam esforços para libertar os cativos de Boxo.
“Liberte os cativos!”, ordenou Harau, com sua voz firme. “Tenho um caminho para eles”. 

Ele prometia o mesmo que Boxo: A cura para a desorientação. Levaria os homens até a maior queda d’água da região. Em um despenhadeiro, incrivelmente alto, todos que se jogassem nas águas, sairiam curados, sabendo que destino seguir. Era uma proposta tentadora.
“O meu caminho é o único caminho”, dizia Boxo. 
Em contrapartida, Harau afirmava: “Você mente. As águas da cachoeira são as únicas que podem libertar. Meus homens pularam e voltaram curados”.

Albert e todos os homens estavam em profundo conflito. “E agora, que caminho seguir? Quem falava a verdade?”, todos se perguntavam.
Perto dali, Albert viu um balão gigante. Tirou a coleira, e querendo livrar-se de toda a confusão, entrou no balão. 
Lá do alto, em transe, pôs a mão na nuca e conseguiu arrancar seu cérebro. Era uma esfera brilhante, cheia de pequenos raios. E a esfera estava presa por um fio, às mãos de Albert. Como um balão de gás, ele podia ver o seu próprio cérebro, e em um lampejo de inspiração, percebeu que podia enxergar seu caminho. 

Mas, algo não estava certo. Ao mesmo tempo em que tinha seu cérebro, havia perdido sua voz. Já não conseguia falar. 
Pensou em colocar a esfera no lugar, mas sentiu que perderia o sentido novamente. Para voltar para casa, precisava do cérebro fora, e de silêncio na voz.
Ao voltar para a encruzilhada em que os cavaleiros disputavam os homens, todos ficaram chocados quando viram Albert segurar seu cérebro como um balão. Alguns perguntavam como fazer, e Albert mostrava a forma de desgrudar o cérebro. 

Quando viu o que estava acontecendo ao redor. Quando viu que todos tiravam seus cérebros, Albert sentiu seu peito arder, e da mesma forma arrancou seu coração para fora de si. 
O seu coração tinha um formato engraçado, e parecia uma casa. Ele pulsava constantemente, e uma luz vermelha vibrava a cada batida. 
Sem o coração, Albert perdera a visão. Ao mesmo tempo em que ganhara novamente o senso de direção. Agora, sem voz e sem visão, ele podia voltar para casa. Havia achado seu caminho. Sabia aonde ir, sendo guiado pelo coração e pela razão.

Os outros, percebendo o que acontecia com Albert, faziam a mesma coisa: tiravam o cérebro e o coração. E, em uma marcha muda e escura, todos voltavam para casa, sabendo o caminho a seguir. As ruas ficaram repletas com balões de cérebros e corações. 
Os que tiravam somente o cérebro continuavam vendo, mas não conseguiam voltar todo o caminho. Mas, os que deslocavam seu cérebro e coração, sabiam todo o percurso, e não conseguiam se perder, ainda que não falassem e avistassem nada à sua frente. 
Com o tempo, todos tiraram os dois órgãos, e já caminhavam para suas casas.

Na verdade, o que acontecia era que os dois órgãos juntos criavam um mapa que misturava razão e sentimento. No fundo, todos sabiam o caminho, o que faltava era conciliar a voz da razão com a emoção, e seguir em frente, voltando para casa.
Quando Boxo e Harau perceberam que os homens encontraram o caminho, começaram a guerrear. O cavaleiro branco empunhou sua espada e matou vários homens de Harau. 

Enquanto isso, o libertador colhia para si vários cérebros e corações. Em um lance de agilidade, Boxo cravou a espada no peito do cavaleiro vermelho e lhe esmagou ao chão.
Sem perca de tempo, o proclamador cavalgando em seu cavalo branco, colheu os cérebros e corações. Com uma lâmina afiada, ele cortava os fios que ligavam os órgãos ao corpo. 
E, como um colecionador egoísta, juntou carretas de cérebros e corações, e levou para sua mansão, depois da linha do trem.
O proclamador e seus 22 súditos escravizaram os homens. Aproveitaram-se que eles não podiam ver e falar. Trancaram todos em prisões e subjugaram a humanidade. 
E como zumbis, dia após dia, os homens eram obrigados a trabalhos forçados. Mal alimentados e enfermos. Um verdadeiro inferno havia se formado. 

Agora que somente Boxo e seus oficiais podiam ver, ele iria dominar o mundo. O próximo passo era construir uma estátua de ouro e fazer com que todos se ajoelhassem e lhe prestassem culto. Ele sentia que era um deus. Um deus proclamador.

Albert fora escolhido por Boxo para trabalhar em sua coleção pessoal. O mecânico acordava às seis da manhã com um balde de água fria, era puxado até uma tigela no chão, e comia sua ração que cheirava a merda.
Logo após, entrava em uma linha de produção, onde uma esteira corria, e em cima dela, vários cérebros e corações passavam. 
O mecânico tinha que limpar todos os corações e mentes que corriam na esteira. Tinha que ser rápido, ainda que não pudesse ver ou falar. 
Vivia em um mundo escuro e sem voz. O que chegava aos seus ouvidos eram os gritos dos capatazes, ordenando que ele fosse mais rápido.

Albert não sabia o que fazer, nem como sair daquela situação. Antes estava sem direção, e agora que havia encontrado seu mapa, não sabia como localizá-lo. O que fazer?
Mas Albert vivia no automático. Acostumado com a rotina, ele percebeu, através do toque, que a batida de cada coração correspondia aos pulsos do seu cérebro. 
Cada pulsar de coração era igual às descargas que seu cérebro correspondente soltava. Ele conseguia saber qual era o par de cada órgão.
Certo dia, prestes a pegar no sono, depois de um longo dia limpando órgãos. Albert foi acordado por um menino sujo. 

“Você tem que me ajudar”, disse o garoto. 
O mecânico assustou-se. “Como ele conseguia falar?”, ele pensou. 
“Todos são mudos e cegos. Como esse menino consegue falar?”. Mas a curiosidade dele logo foi sanada. 
O menino explicou que nunca havia retirado seu cérebro, por isso conseguia falar. Mas, seu coração estava lá, na esteira da coleção do Proclamador.
“Você precisa trazer meu coração de volta”, pediu o garoto. “Só assim podemos sair daqui”.

Albert pôs a mão na cabeça do menino, e sentiu os pulsos elétricos do cérebro. Iria tentar, mas sabia dos riscos. Poderia ser pego e morto. Poderia pegar o coração errado e matar o menino, fazendo um encaixe perigoso. Poderia simplesmente não tentar e aguardar a morte.
Mas ele tentou. No dia seguinte, na esteira de produção. O mecânico limpava os órgãos com uma velocidade reduzida. Ele sabia que estava atrasando a limpeza, mas precisava sentir as batidas do coração.
Ele então lembrou-se dos dias que tocava violão. Lembrou-se do ritmo das músicas. Cada melodia com um ritmo próprio. Assim era o coração. Nenhum era igual, todos tinham um pulsar diferente.

Até que sentiu o coração do menino. Sabia que era aquele. Tinha o mesmo som, a mesma batida. Até lembrava a infância dele.
Precisava esconder aquele coração. Era sua única chance. Mas, quando estava prestes a guardar o coração em seu bolso. Um guarda gritou, pedindo que ele se afastasse. A produção estava suspensa. E, Albert não conseguira levar o coração do garoto.

No dia seguinte, os guardas flagraram o menino falando com Albert. Eles levaram o garoto até Boxo, que mandou prendê-lo nas minas abaixo da terra. “Deixe que ele morra”, ordenou o proclamador.
Enfim, não havia mais o que fazer. A única chance de sair daquele inferno era o menino, que agora estava preso e prestes a morrer.
Albert foi retirado da coleção do ditador, e agora trabalhava na construção de presídios. A única coisa que Boxo queria era prender a humanidade.
“Estão todos condenados. Ninguém escapará da prisão”, Boxo pregava. 

Enquanto que seus cavaleiros andavam armados, e prontos a eliminar qualquer um que contrariasse suas ordens.
Aqueles eram dias sombrios. Ninguém conseguia se expressar. Ninguém conseguia falar. Homens mudos e cegos, sem saber o real motivo de ainda viverem. 
Os poucos que tentavam liberdade eram logo executados. Não se podia fazer nada, apenas obedecer e aguardar a morte.
Certa feita, um capataz gritou, assustando os escravos:
“Quem aqui sabe tocar instrumento musical?”, ele perguntou.“Nosso mestre Boxo deseja ouvir música”. 

Albert escutou aquilo temeroso. “Seria mesmo verdade? Será que o proclamador quer ouvir música?”, ele pensava. 
Mesmo reticente, levantou a mão e candidatou-se. Era o único músico. Diante de vários instrumentos que foram lhe ofertados, escolheu o violão. Arrastaram-no para a sala real, onde Boxo aguardava sentado em seu trono.  
“Queremos ouvir sua música”, disse o porta-voz do proclamador. Sem muito pensar, Albert agarrou o instrumento e dedilhou suas cordas, estavam afinadas. 

Desejou ter sua voz para acompanhar a canção, mas ainda assim, tocou com maestria. Desde a infância não manejava o violão, mas surpreendeu-se por ainda tocar daquela forma.
Enquanto tocava, a melodia inundava o salão, emocionando todos os presentes. Boxo fechava os olhos sorvendo aquela música. 
Os súditos assistiam admirados o talento do escravo.
“Tenho mais uma sugestão, vossa alteza”, disse o porta-voz. “O menino preso nas minas, tem voz e pode cantar para nós. Podemos juntar o homem com o violão, e o menino com a voz, e testemunhar esse momento”.

Boxo avaliou a proposta e logo concordou com o porta-voz. Trouxeram o menino e pediram que cantasse.
Albert tocou, e nos primeiros acordes, as notas da viola juntaram-se à voz do garoto. Um abraço entre voz e violão aconteceu e um milagre surgia. 
Enquanto os dois faziam música, as melodias viajavam pela mansão do proclamador, e despertavam os corações e mentes que ali estavam.
Cada órgão desperto pela canção unia-se ao seu correspondente e viajava em direção ao seu dono. 
Em poucos minutos, homens, mulheres e crianças despertavam. A visão e a voz haviam retornado, e a esperança também. Um alvoroço surgia no meio da mansão. 
No pátio externo, homens lutavam com os soldados do proclamador. Em poucos minutos, os capatazes foram rendidos, e Boxo encurralado.

A música tocada por Albert fora o gatilho para despertar a mente e o coração dos homens. Ele mesmo havia despertado, e recebera novamente os seus órgãos.
Como num passe de mágica, todos sabiam qual o caminho a seguir. Voltavam pra casa e reuniam a família, comemoravam e celebravam a vida e a liberdade.
Albert encontrou sua família. Beijou seus filhos com amor. Abraçou sua esposa com saudade. E, voltou para sua oficina.

Quando tudo se normalizou, Albert vendeu todas as suas ferramentas. Reformou a oficina, transformando o lugar em uma escola de música. 
Como um mestre experiente, ele dedicou-se à música. Ganhou notoriedade por ser considerado o verdadeiro libertador, pois havia mostrado que no homem havia o caminho de volta pra casa.
Os dias que se seguiram foram verdadeiras surpresas. As horas de Albert eram repletas de criatividade e espontaneidade. Nada era tedioso, maçante ou chato.
O violinista vivia em completa alegria, cantando e tocando com seus filhos e vizinhos. Enquanto que Boxo estava preso, vivendo seus dias, encarcerado. 
A única coisa que o animava eram as músicas de Albert. Músicas que lhe alegravam e lhe dava esperança.

FIM
Era uma vez... | Conto I

Era uma vez... | Conto I

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ERA UMA VEZ...



Antologia de
Hugo Martins

CONTO I
A Menina e o Jardineiro




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A MENINA E O JARDINEIRO


   Era uma vez uma mansão no topo da colina, onde morava a doce e bela Selena. A jovem de olhos azuis e longos cabelos vermelhos.

   Ela passava as manhãs e as tardes cuidando do jardim nos fundos da mansão. Delicada e amorosa conversava com as flores. Sua presença irradiava paz entre todos, os olhos brilhavam de inocência, era um amanhecer que espantava o frio da noite.

   Não morava sozinha. Na mesma mansão, compartilhava o espaço com sua irmã mais velha, e com o cunhado carrasco, César Augusto; sentia medo dele.

   César tinha olhos maldosos, voz áspera e rosto sombrio. Certa noite, ela flagrou lhe mexendo em suas roupas, não sabia o que ele queria, só sentia que não podia confiar nele.

   No início da primavera os brotos floresceram, o jardim pulsava um arco-íris de cores e as rosas vermelhas, brancas e amarelas eram abundantes. Orquídeas roxas enalteciam o lugar. Ali era um paraíso sereno, um frescor que refrigerava a alma.

   César Augusto logo contratou um jardineiro. Um moleque esguio, loiro e de olhos vivos, seu nome era Argos.  

   Em seus dezessete anos, Argos nunca havia saído da cidade. Trabalhador, sempre ajudara seus pais nos serviços do campo. Agora, cuidava dos jardins da cidade. Tinha mão boa pra lidar com flores. Era sensível e apaixonado pela natureza.

   Argos e Selena tinham a mesma idade e, logo tornaram-se amigos. Aguavam o jardim juntos, adubavam a terra, plantavam sementes de girassóis, colhiam as rosas vermelhas.

   Todas as manhãs, ela aguardava o jardineiro subir a colina em sua carroça, para em seguida lhe servir café e bolo. Adorava vê-lo comer. Algo brotava em seu coração. Um sentimento tão puro que não podia explicar.

   Da mesma forma, Argos ia dormir ansioso, aguardando eufórico o amanhecer. Despertar era uma alegria, e saber que veria a jovem, motivo de muita felicidade. Nunca havia experimentado algo parecido. 

   O desejo de estar perto, de fazê-la sorrir, de esbarrar em sua mão ao devolver a xícara, ou talvez segurá-la por alguns instantes. Sentia um fogo arder em seu peito, uma chama que aquecia a alma, e acendia quando a encontrava.

   Mas, em uma noite de pesar, a irmã de Selena morrera. A jovem chorou durante dias, estava sozinha no mundo, sem mãe, pai e sua única irmã. Sentia-se abandonada pela vida, no frio de uma mansão deserta.

   Morar com César Augusto, seu tutor, era um tormento. Ele lhe proibira de ir ao jardim. Dissera-lhe que sua única função era ser dona de casa e mordoma do lar. Aqueles foram dias de trevas. As horas custavam a passar. Selena sentia-se prisioneira dentro da casa. “Como sair dessa situação?”, pensava. “Será que viverei para sempre cativa nesse lugar?”.

   Mas, numa manhã ensolarada, Argos trouxe uma escada, e subira até a janela da jovem. Ela sorriu ao lhe ver. Seu herói havia chegado. Estaria livre daquela prisão. Livre de César Augusto.

   Os dois correram para o jardim. Argos lhe abraçou com todo amor que podia, e ela beijou-lhe as mãos. Trocaram olhares apaixonados. Ele colheu uma rosa e entregou-lhe. Havia destilado seu amor naquela flor. Sentiam-se unidos, amantes, amados.

   O espinho da rosa espetou o dedo de Selena, derramando uma gota de sangue sobre a pétala. Argos carinhosamente beijou-lhe o dedo.  

   Do interior da mansão, um brado terrível ecoou. César Augusto procurava Selena. “Onde está a garota?”, rugia para os criados.

“Esconda-se. Vou distraí-lo”, disse Argos para a amada.

   Mas, ela não se sentia bem, uma tontura lhe tomava por completo. Logo após a saída dele, desmaiou no meio das flores. As pétalas das rosas caiam-lhe por cima. As raízes se entrelaçavam por suas pernas e braços. Um manto de flores cobria-lhe, e seu corpo fora puxado pela terra. Do interior das raízes, entre minhocas e grãos, levantou-se uma rosa exuberante, ainda inexistente, com pétalas vibrantes, e cores pulsantes, numa bela e mágica imagem. Selena transformara-se em rosa.

   Infelizmente, César Augusto a encontrara. Percebendo sua beleza, tratou de escondê-la no quarto, num vaso de porcelana.

   Argos fora expulso da mansão. Não poderia mais se aproximar do lugar. Sem saber do paradeiro de Selena, ainda juntou forças para tentar encontra-la, porém, sem sucesso.

   Acabou-se a primavera. Chegou o verão. As estações passavam uma atrás da outra, e Selena permanecia presa no quarto de César Augusto, que contemplava a flor com obsessão, em um olhar frio de apatia.

   Com o passar do tempo, a rosa não murchava. Suas cores vibravam, e no inverno, uma chama azul lhe envolvia, protegendo-lhe. Selena estava viva através da flor.

   Ainda era inverno, quando em uma noite gelada, a raiz da rosa começou a se mexer. Durante a madrugada, cresceu extraordinariamente e alongando-se cruzou o quarto de César Augusto. Passou por debaixo das portas e saiu da mansão. Única e determinada; percorreu todo o monte, descendo até o vale. Cruzando bosques selvagens, riachos profundos e muros de pedra. Chegou à vila de agricultores, na última casa da rua, feita de madeira simples e rústica.

   A raiz escalou as paredes até chegar à janela do jovem Argos. Ultrapassou a passagem de vidro na janela e correu até à cama, onde o jardineiro dormia. Com um só espinho, espetou-lhe o indicador lhe acordando de imediato.  

   Argos fora surpreendido pela raiz em sua cama, e ainda em choque não reagira. Simplesmente, observou enroscar lhe o dedo, e aproximá-lo da boca. Não entendia aquilo. “Por que a raiz segurava-lhe o dedo, com uma gota de sangue?”, pensava. Mesmo assim, permitiu tudo isso, e logo, entendeu o recado. “Era Selena, minha doce amada”, pensou sorrindo.

   Levantou-se rapidamente e correu até à mansão. A raiz lhe ajudou a abrir as portas, e lhe introduziu no corredor, diante do quarto de César Augusto. Era ali que estava presa. Só podia ser.

   Com prudência, o jardineiro entrou na masmorra e resgatou a rosa. Carregou o vaso com reverência, como se fosse uma parte do seu coração. Em suas mãos, a rosa brilhou. Parecia saber que seu amor lhe segurava.

   Mas, o amor não foi muito longe. César Augusto, acordou e agarrou o jardineiro por trás, lhe derrubando no assoalho frio. Argos tentava lutar, mas o carrasco era forte e estrangulava o moço. A rosa testemunhava tudo, sem poder fazer nada. Suas pétalas murchavam ao ver seu amado morrer nas mãos do cunhado.

   O crápula carregou o corpo do jovem até o jardim. Iria enterrá-lo ali mesmo. Antes, precisava cortar a raiz da flor. Não queria que ela aprontasse novamente.

   O corpo de Argos jazia morto, entre os galhos secos da roseira. Não havia pétalas para lhe cobrir, não existia rosas para lhe aquecer. Apenas algumas borboletas que se aproximavam, bailando com o vento.

    Uma, duas, dez, elas pousavam sobre o jardineiro, cobrindo-lhe por inteiro. A terra lhe sugou por completo, e do pó da existência, surgiu uma borboleta exuberante, com asas vermelhas em brasa, que soltavam flashes de luz ao bater.

   César Augusto não encontrou o corpo do jovem. “Quem o tivesse escondido, havia feito um favor”, pensava. Agora, seu único intento era manter a rosa prisioneira, com as raízes presas com fios de prata. Nunca mais ela sairia daquele quarto. Cativa para sempre.

   Mas, a borboleta vermelha voou até a janela do cativeiro, e encontrando uma brecha, conseguiu entrar. Pousou em uma das pétalas, e a rosa, percebeu sua presença. Uma dança romântica de cores começava. 

   A borboleta vibrava um vermelho vivo, enquanto a rosa emitia um azul cintilante. As cores se abraçavam no ar dançando uma valsa. A rosa logo despertou seus estames, pequenas hastes que saiam do interior. E no topo dos estames, abriu as anteras, liberando seu pólen.

   Com a delicadeza de uma canção, a borboleta pousou lentamente sobre as anteras, recolhendo os pólens. Um beijo sensível e cheio de amor acontecia. O toque suave do jardineiro sobre a rosa. A troca de calor e vida. Tudo transpirava sentimento e paixão. Uma celebração à união dos amantes.

   Ao sair do quarto, a borboleta voou até o jardim e espalhou o pólen sobre outras flores. Agora, precisava aguardar a primavera e testemunhar o milagre.

   Aqueles não foram dias fáceis. O jardim estava abandonado. A roseira não florescia. Mas, como um ato divino, várias borboletas começaram a sobrevoar o jardim. Vinham acompanhadas de abelhas e beija-flores. Traziam água em seus bicos e asas. Faziam a esperança nascer de novo.

   E, logo chegou a primavera. As flores desabrocharam cintilantes, de várias cores. E, no meio do jardim, uma dezena de rosas mágicas, destoava do restante. Tinham pétalas aveludadas pulsando uma aura mística.

   Quando a noite chegou, as rosas mágicas alongaram suas raízes até o quarto de César Augusto. Como um exército, marcharam até a cama do crápula e lhe amarraram por completo, sufocando lhe em seguida.

   Logo após, libertaram a rosa Selena e lhe carregaram até ao jardim. Ali, no meio das flores, ela que estava quase morta, ganhou vida. Pela manhã, quando o sol  aqueceu o jardim, foi sugada novamente ao interior da terra, mas em seguida o corpo frio de menina saltou da terra. A garota abriu os olhos, espantada. Parecia-lhe que tinha vivido um sonho, mas sabia que era real.

   Na mansão, encontrou seu cunhado morto, em cima da cama. Voltou ao jardim e aguardou a borboleta vermelha, que logo pousou em seu ombro. Em seguida, parecia ouvir algum segredo vindo da borboleta, um mistério que somente o jardineiro sabia.

   E foi assim que encontrou o corpo do amado, enterrado entre as rosas. Beijou-lhe as mãos e os lábios frios, mas ele continuou dormindo o sono da morte.

   Naquele mesmo dia, percebeu que não conseguia sentir o cheiro das flores. Tentou sentir o aroma em outros jardins, mas sem sucesso. Durantes anos, vários jardineiros vieram cuidar das roseiras. Um após outro, e ela buscava sentir o aroma de alguma flor. De todos os cheiros que existiam no mundo, o único inodoro era o perfume das rosas. Aquilo lhe entristecia.

   Quando a primavera retornou, um novo jardineiro fora contratado. Um homem distinto, de face serena, com porte de cavalheiro. Que segurava as flores com cuidado. Cheiravas as pétalas com paixão. E, fez florescer o jardim.

   Numa manhã feliz, Selena acompanhou o jardineiro. Agora, uma jovem senhora, ela observava o homem guiar-lhe o caminho, enquanto pousava a mão sobre o braço dele.

   Alexandre passeava com Selena entre os lírios, e recebia os raios de sol daquela manhã. Os dois sorriram com a afinidade. Foram ao jardim e ele colheu uma rosa, entregando-lhe. “Sinta o aroma”, ele disse. “Impossível”, ela pensou. Mesmo assim, aproximou a rosa de si e aspirou o doce perfume da flor. Agora podia sentir novamente. Uma flor brotava em seu coração. O amor renascia sereno, singelo e sublime.

   Selena celebrou o amor com Alexandre. Juntos, fizeram uma estufa repleta de rosas, orquídeas e lírios do campo. Todas as manhãs borboletas visitavam o lugar, e nas primaveras, uma borboleta vermelha aparecia pousando entre as flores. Selena observava o inseto, e meditava agradecida por um dia ter sido amada.

   Entre as estações, as rosas cresciam e morriam. Renasciam novamente e eram polinizadas pelo vento, as abelhas e as borboletas. Borboletas vermelhas que traziam vida e paz.

fim