WEBTVPLAY APRESENTA
OS PECADOS DE CADA UM
Série
de
Francisco Siqueira
Episódio 01 de 06
"Pecados e Misérias"
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“Cada
pessoa é um abismo. dá vertigem olhar dentro delas”.
Sigmund
Freud
Porque
algumas pessoas têm tudo e outras, nada? Porque o destino é bom com
alguns e ruins para outros? Porque algumas pessoas são abençoadas
com a sanidade enquanto outras, por mais que tentem, não conseguem
ver-se livres de seus conflitos interiores, dos dilemas de suas
almas?
Sei
que estou condenado pela justiça dos homens e também pela Divina.
Mas isso não me incomoda mais. Já lutei bastante todas as lutas
possíveis. Já esmoreci, me reergui, pelejei e pelejei e até hoje
não consigo compreender o porquê dos deuses não me terem permitido
o privilégio da luz da sanidade; aliás, me permitiram, sim, porém,
apenas frestas, meras frestas. O que talvez seja pior. Esse vislumbre
da normalidade, do equilíbrio. O benefício da dúvida, ao contrário
do que pensam, é uma indulgência distribuída a poucos. E os
privilegiados, sempre figuras paradoxais, réus sem culpa, não devem
buscar por motivos, explicações, justificativas para tal
merecimento, pois, talvez, não existam. Não a olho nu. E se
existirem, eles, os privilegiados, correm o risco de se depararem com
um buraco negro.
A
dor nos induz a agir. Constrói o nosso destino. Converte-nos,
consciente ou inconscientemente, para o bem ou para o mal, porque
nunca a esquecemos... Portanto, cuidado: aquele
que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar um deles.
Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta
para você.
22
de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo
sabia que já não estava raciocinando bem. Apenas apertava o passo
mais e mais, imbuído da determinação de que deveria deixar tudo
para trás, seu bairro, sua cidade, o estado, tudo. Nada mais poderia
lhe pertencer, poderia fazer parte de si. Se é que algum dia algo,
de verdade, lhe teria pertencido. A ele ou à sua irmã caçula,
Bruna, a quem puxava pelo braço, quase arrastando chão afora. A
menina, com uma estatura pequena para os seus onze anos, praticamente
precisava correr para alcançar a velocidade com que o irmão
andava,
olhar adiante, obstinado.
—
Por
que parece que estamos fugindo?
Bruna
insistia em perguntar, resfolegante, mesmo sem obter resposta alguma
enquanto Ronaldo apertava os lábios numa linha angustiante, lutando
para lidar com o caleidoscópio de emoções que o assolava, sem
trégua, onde medo, remorso e sentimento de culpa pareciam tão
presentes e concretos em sua consciência, assim como também lhe
davam a impressão de pertencer a outra pessoa, a um terceiro, a
alguém que, de alguma forma, Ronaldo não conseguia distinguir...
Talvez
eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha
própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração
pelas costas de minha própria mente, ele
ia repetindo, repetindo num murmúrio indistinto em meio às dores
proporcionadas pelas luxações e pelos hematomas
espalhados por quase todo o corpo e pela face, assim como também ia
lidando com a sensibilidade, o dolorido em seu couro cabeludo.
—
O
pai e a mãe vão ficar loucos atrás da gente assim que derem pela
nossa falta — Bruna informou, ou ao menos tentou informar; um temor
carregado na voz — E dessa vez eu também vou ter a minha parcela
de cinto do pai...
Ronaldo
de fato não lhe dava ouvidos. Não podia. Não devia. Precisava sair
de Manhuaçu o mais breve possível e qualquer obstáculo,
interrupção em seu objetivo, por menor que fosse, poderia colocar
tudo a perder. Já não bastava aquelas serpentinas, Batalhas de
Confetes, aqueles foliões e suas marchinhas carnavalescas
espalhando-se pelas ruas... Em algum momento, quando estivessem
distantes, bem, bem distante, ele daria a notícia à irmã de que os
pais estavam mortos.
A
propósito, a casa em que moravam, decerto, já deveria estar
embebida em chamas.
Sim.
Lembro-me muito bem dos instantes finais daqueles dois porcos e vou
confessar que não sinto nenhum remorso pelo que fiz. Nada. Nem uma
ponta de arrependimento.
Mesmo
com o passar dos anos, de todos esses anos, ainda consigo enxergar
nitidamente, como se estivesse observando as águas cristalinas de um
lago, os olhos daqueles dois patéticos enquanto suplicavam pela
vida, amarrados à cama, buscando desesperadamente se verem livres
dos nós dos lençóis que estavam prendendo suas mãos e seus
tornozelos, e, claro, das fronhas que eu havia enfiado nas suas
bocas...
Que
prazer imensurável a repercussão em meus ouvidos, proporcionada
pelo som dos seus gemidos abafados, pela respiração acelerada
buscando captar mais oxigênio, ao mesmo tempo que eu cantarolava
a
minha canção preferida,
I
started a joke...
Eu
comecei uma piada
A
qual fez o mundo inteiro começar a chorar
Mas
eu não percebi
Que
a piada era sobre mim
Que
deleite sentir o odor almiscarado do medo exalando de seus poros, um
reflexo direto da descarga de adrenalina disparada a cada milésimo
de segundo por seus cérebros.
Nada.
Exatamente nada. Nenhuma pena, nenhum segundo sequer de pesar diante
daqueles pares de olhos que pareciam órbitas prestes a saltarem das
cavidades, divisando o desprezo, o ódio e o escárnio que eu lhes
desferia.
E
eu comecei a chorar
O
que fez o mundo inteiro começar a rir
Se
eu somente tivesse percebido
Que
a piada era sobre mim
Oscar
Wilde afirmou, perfeitamente, que os pecados da carne não são nada;
tão somente doenças a curar pelos médicos se a cura for possível.
Entretanto, os pecados da alma, esses sim, são vergonhosos e as
almas daqueles dois estavam chafurdadas na lama. Em que mundo ou em
que realidade um pai com o consentimento de uma mãe tocaria seu
filho de maneira tão voluptuosa e daria a ele um prazer jamais
sentido?
Não.
Não. Eu não fui culpado. Nem eu e tampouco minha irmã, Laura...
Ela fez o certo ao fugir, ainda que tenha me deixado para trás...
Ainda que tenha NOS deixado para trás...
Que
sensação arrebatadora me invadiu quando comuniquei àqueles dois
pervertidos que tinha chegado a hora de pagarem pelo que tinham feito
comigo e com minhas irmãs. Mas eu não fui tão perverso, tão
insensível. Não. Claro que não. Agi com condescendência, mesmo
que nenhum deles merecesse. Fiquei em pé, na cama, sobre os dois,
com as pernas abertas à medida que massageava minha virilha, meu
pênis, na verdade, me masturbava enquanto lhes dava um último
instante de prazer antes de mostrar a gravata esticada entre as
minhas mãos e perguntar qual dos dois infelizes iria ter o
privilégio de assistir ao outro morrer primeiro ao passo que eu
cantarolava, cantarolava...
Até
que eu finalmente morri
O
que fez o mundo inteiro começar a viver
Se
eu apenas tivesse percebido que a piada era sobre mim
14
de janeiro, 1977, sexta-feira
—
Me
deixa em paz!
Ronaldo
gritava ferozmente ao mesmo tempo que lutava para se desvencilhar das
garras de seu pai, que num último esforço tentava, a todo custo,
segurá-lo pelas costas, através do tecido da camisa, depois de uma
curta, porém, cansativa disputa corpo a corpo.
Antoniel,
pela primeira vez, estava tendo de lidar com uma oposição ferrenha
do filho, e como se já não bastasse, o infeliz decidira também
enfrentá-lo. Onde já se viu um moleque que mal completara seus
quinze anos, querer agir como um
homem
de uma hora para outra?
Enquanto
Antoniel remoía ensimesmado, assistindo, impotente e possesso, o que
restava do pano da camisa do garoto escorregar de sua mão, ia
decidindo qual seria a melhor maneira de punir Ronaldo por tamanho
atrevimento. O mal deveria ser cortado pela raiz, ponderou convicto,
já completamente sem paciência. Um bom sedativo, decerto,
resolveria toda a questão; diminuiria a irritabilidade reflexa e
exerceria um efeito calmante sobre o sistema nervoso do rapaz,
domando-o, por fim, porém, que utilidade
teria com sua sexualidade, sua virilidade entorpecida?
—
Me
deixa em paz...
Ronaldo
repetia entredentes à medida que caminhava a passos largos e em
marcha à ré, sem deixar de encarar o pai com ferocidade, uma figura
estagnada à sua frente, acompanhado de sua peculiar frieza,
terminando de cruzar os braços como se tivesse a certeza de que ele,
Ronaldo, se arrependeria do rompante de rebeldia que o abatera, de
todo aquele “desgaste inútil de energia”.
—
Nunca
mais, ouviu bem? Nunca mais. Juro por tudo que é mais sagrado...
Ronaldo
sentiu a voz começar a falhar e em seguida uma dor de cabeça
lancinante, dor que o obrigou a fechar e abrir os olhos algumas vezes
no intuito de recuperar o equilíbrio; certamente um resultado direto
dos gritos que havia disparado e também da tensão, do desespero...
Contudo, não iria desistir. Estava disposto a pagar o preço que
fosse. A linha tênue que separava coragem e submissão já tinha
sido atravessada e ele, sem sombra de dúvidas, não poderia, e nem
pretendia, retomar àquele caminho pavimentado pelo medo, pela
repulsa e, principalmente, pelo ódio!
Ao
tocar, por fim, com um dos calcanhares o rodapé da parede atrás de
si, não deixou de medir um instante sequer o pai de cima a baixo,
preparado para qualquer contra-ataque que ainda pudesse acontecer.
—
Nunca
mais, nem você, e muito menos ela, vão encostar as mãos em mim,
entendeu? Chega. Todo este absurdo, toda esta loucura, acabou. Por
quê? Por que vocês fazem isso?
Ronaldo
sentiu uma crise de histeria subir dos pulmões para o cérebro à
velocidade de um relâmpago. Na verdade, conhecia muito bem aquelas
sensações permeadas pela impossibilidade, pela falta de forças
diante de um problema que já existia em sua vida desde que
completara seus 11 anos. Um conflito até então sem solução, um
medo que se tornara parte da sua vida, da sua rotina... da sua
existência.
Ele
respirou fundo, como se quisesse explodir os pulmões e, talvez,
assim, colocar um fim a todo aquele sofrimento. Não foram poucas as
vezes, naqueles últimos quatro anos, que planejou dar cabo da
própria vida. Mas não podia. Como deixar a pequena Bruna à mercê
dos carrascos, dos monstros que infelizmente o destino os havia
ofertado como pais? E em tempo algum se permitiria agir como Laura,
que da noite para o dia desaparecera, sem deixar rastros, e o pior,
sem sequer consultá-lo para saber se ele e a pequena Bruna também
não estariam dispostos a escapar daquele inferno.
Laura,
Laura, Laura! Onde ela estaria? Ronaldo se perguntou por um instante,
meneando a cabeça logo em seguida, disposto a expurgar o
questionamento descabido para bem longe. Nada poderia afastá-lo de
seu objetivo, muito menos a lembrança da ingrata de sua irmã mais
velha.
—
Você
deve isso a gente, moleque!
O
tom de voz imperativo de Antoniel, transbordando impaciência,
resgatou Ronaldo do instante de evasão de seu raciocínio a tempo de
fazê-lo perceber que o pai já havia avançado pelo menos três
passos, ainda que curtos, em sua direção e já se preparava para
seguir adiante.
—
Nós,
eu e sua mãe, lhes demos tudo. Então, nada mais justo que nos
retribua...
Antoniel
encarava o filho com os olhos semicerrados enquanto dava início ao
seu discurso manipulador, baixando consideravelmente o timbre da voz,
tornando-a quase inaudível, para com isso resgatar, em última
estância, o seu poder, sua autoridade, ainda que abusiva, destilando
palavras habilmente pronunciadas. Não lhe restavam dúvidas de que
Ronaldo estava mais que disposto a escapar e isso não poderia
acontecer. Jamais.
—
Alguma
vez... — Antoniel respirava sem pressa, apesar do afã de acabar
com toda a balbúrdia que havia se formado dentro daquele quarto —
Quero que responda olhando firme nos meus olhos, Ronaldo. Alguma vez
nós te forçamos? Hein? Quero que me diga se eu e sua mãe te
obrigamos a fazer alguma coisa que não quisesse? Sempre conversamos.
Sempre expusemos nossos pontos de vista e justificamos todos os
nossos atos. Desde o começo...
Ronaldo
não sabia até quando podia mais suportar o despautério de seu pai.
A vontade que tinha era de avançar sobre ele, mesmo em grande
desvantagem física, e agredi-lo, uma, duas, três vezes ou o quanto
fosse necessário para amainar a ira descomunal que estava
aprisionada dentro de si, sufocando-o. Ele sabia de cor e salteado
para onde aquele discurso infame o levaria. Precisava agir rápido.
Imediatamente. O limite de sua resistência, até mesmo de sua
resiliência, há tempos já tinha chegado ao fundo do poço.
—
Você
realmente pensa que vai encontrar apoio aí fora? — Antoniel
prosseguia determinado cada vez mais a infligir o medo, a esgotar a
chama da coragem que se acendera inadvertidamente no filho — Acha
que alguém vai lhe ajudar depois de espalharmos o quão injusto você
foi, abandonando o lar de uma hora para outra, sem aviso, deixando
para trás seus pais que se mataram para lhe dar do bom e do melhor?
Como acha que as pessoas reagirão diante da fragilidade da sua mãe
depois de perder o filho pro mundo, sem qualquer motivo aparente, a
não ser o da ingratidão, fruto de uma rebeldia sem propósito?
—
Vou
contar tudo...
Ronaldo
balbuciou, irritado, correndo os olhos de um lado para o outro até
localizar Bruna completamente encolhida no canto oposto em que ele se
encontrava dentro do quarto.
—
Será
somente a sua palavra. Nada mais do que isso. A palavra de um moleque
de quinze anos contra a dos pais, cidadãos respeitados, de moral
ilibada, caridosos, amáveis...
Antoniel
ousou dar mais um passo e Ronaldo, mesmo se recusando a sentir,
permitiu ser invadido pela vertigem, pela taquicardia, a falta de ar,
a sudorese, o desespero, enquanto uma pressão absurda tomava conta
progressivamente de sua cabeça e também de suas articulações...
—
Não
— ele tentou gritar, doloroso, a voz em pedaços — Não. Por
favor, não se aproxime...
—
Você
não vai sair desta casa.
A
ordem dada por Antoniel foi decisiva e Ronaldo sentiu o embargo na
garganta, as lágrimas começarem a escorrer pelo rosto, pelo
pescoço... Mas não iria esmorecer. Não mais. Na verdade não
poderia esmorecer diante de Bruna; a irmã caçula estava sentada no
chão com as pernas recolhidas e dobradas, envolvidas com extrema
força por seus braços frágeis. A menina, que até poucos minutos
havia tentando se levantar, e que recebera como resposta um olhar
ameaçador e impiedoso de Antoniel, estava muito, muito assustada,
porém, diferente dele, de Ronaldo, vinha conseguindo manter — e só
Deus pra saber como — o medo dentro de si, sem transformá-lo em
choro; sem dar ao pai o prazer de vê-la, ao menos externamente,
desesperada, sem qualquer resquício de esperança.
Em
definitivo, Ronaldo percebeu que não tinha mais tempo a perder.
Poucos centímetros o separavam de Antoniel. Se não colocasse em
prática o seu plano de fuga, jamais o faria novamente, pois,
decerto, a coragem, a força e o desespero que o arrastara até ali
desapareceriam soterrados pelo temor e pela revolta diante da inércia
a que se entregaria, já que seus pais não deixariam brechas,
lacunas ou qualquer outro tipo de espaço para que pudesse reunir
novamente o mínimo de resistência necessária para se ver livre
daquele lugar que imprudentemente chamavam de lar.
Numa
questão de segundos, deduziu que seria praticamente impossível
resgatar Bruna, afinal, além da cama, outro obstáculo que não
poderia ser desprezado, o pai, uma figura pesada, imponente, o rosto
redondo crispado e vermelho, também estava bloqueando aquele curto
caminho que os separava. Sentiu-se péssimo ao ter que tomar a
decisão, a fatídica decisão, ainda que momentânea, em ter que
deixar a menina para trás. Mas era a única alternativa. Com o ódio
trespassando os olhos de Antoniel, metamorfoseando seu semblante,
Ronaldo não poderia mais esperar. A sorte, ou o azar, estavam
lançados.
Tropeçando
entre os próprios pés e se apoiando ao que via pela frente,
Ronaldo, enquanto enxugava os olhos, o rosto e o nariz com as costas
da mão, atravessou o batente da porta do quarto como um relâmpago,
não parando nem mesmo quando sua mãe surgiu na ponta do corredor,
de pé e de braços abertos, exalando arrogância e ousadia,
determinada a impedir sua passagem para os degraus que levavam ao
andar térreo da casa. Uma visão dupla, tripla da imagem dela se
formou e desapareceu em instantes ao passo que a dor pulsátil na
cabeça de Ronaldo foi transferida de imediato para um dos lados do
crânio simultaneamente a um súbito formigamento no braço direito.
Uma
ofensa, indecorosa, algo que um filho jamais deveria dizer à sua
mãe, por pior que ela pudesse ser, subiu à garganta de Ronaldo, mas
não foi expelida. Os músculos de sua língua estavam travados...
Não, não. Estavam em guerra. Sim. Em conflito, um conflito que
fazia parecer que a língua estava maior que a boca e que ele,
Ronaldo, por muito pouco não conseguiria contê-la.
Norma
permanecia parada, os braços abertos, os olhos duros, turbulentos...
Por um instante interminável todos os odores irrelevantes se
ampliaram e o batimento acelerado no coração de Ronaldo, como o
toque de um tambor, o fez partir ao encontro da mãe, sem mais
pestanejar, empurrando-a para o lado com toda a força que possuía,
pouco se importando se iria machucá-la, tendo até mesmo a absurda
impressão de ser tomado por um doce prazer ao tempo que pesava, com
um resquício de amargura, de uma irritante amargura, que há muito
já havia deixado de enxergar Norma com condescendência. Há muito
já havia deixado de buscar dentro daquele ser humano o significado
inerente do amor materno, real, sincero e infinito. Ao invés disso,
tinha passado a divisar, tanto em sua figura quanto na do pai, o
horror do “eu sombrio” que poderia existir dentro de cada
indivíduo.
Ronaldo
seguiu adiante. A cólera e a sofreguidão o impulsionou a descer
correndo as escadas, pulando os degraus de dois em dois para sem
demora atravessar a sala em passos rápidos. Corria, sim, contudo,
não conseguia entregar-se totalmente à velocidade necessária para
alcançar a porta principal, que demarcaria sua liberdade, o livrando
dos grilhões daquela prisão imoral, sádica, tal qual o desejo das
vítimas nas obras lascivas e pervertidas do libertino Marquês de
Sade.
Bruna.
Bruna. Bruna. Ele precisava voltar. Precisava resgatar a irmãzinha
das garras, da vingança certa que os verdugos iriam derramar sobre
ela. Ronaldo sabia que agiriam daquela maneira, pois fora assim que o
trataram depois da fuga de Laura. A desforra os fizera cruzar limites
que ele, Ronaldo, aos treze anos, nunca imaginou que pudessem
atravessar.
Por
que razão Deus permitia que tudo aquilo acontecesse? Por que não
castigava aqueles dois como fez com Adão e Eva? Como fez com os
habitantes de Sodoma e Gomorra, segundo os relatos da Bíblia, a
mesma Bíblia que seus pais empunhavam com um fervor inigualável
todos os domingos e algumas terças-feiras na igreja do bairro onde
moravam?
Antoniel
e Norma pecavam deliberadamente, então deveriam sofrer a punição
divina, como declarada nos sermões dos dois padres que ocuparam o
púlpito daquele templo antes da chegada do sacerdote Lucas, que
continuou a repetir cada uma daquelas palavras, prometendo,
corroborando a ira celestial sobre os ímpios, ainda que com seus
modos progressistas e sua relativa juventude, que por incrível que
pudesse parecer, não causou nenhum espanto ou incitou qualquer
resistência aos moradores da cidade e que acabou ouvindo dele, de
Ronaldo, uma confissão banhada pelo terror e aflição sobre a
súbita fuga de Laura e suas consequências e que nada fizera além
de lhe atribuir o ultraje da ingratidão, da ofensa e do desacato
grave pela atitude irresponsável para com os próprios pais.
Onde
já se viu um filho atribuir acusações covardes, sem sentido e
pueris contra seus progenitores? E somente para imputar a eles uma
mesquinha e infantil vingança, ainda que não tivessem, sem qualquer
sombra de dúvida, sido responsáveis pela fuga ordinária da filha
insensível e tampouco agido da maneira tão leviana, abominável e
pecadora que Ronaldo tinha afirmado com sua língua vil.
“Nunca,
garoto, nunca se esqueça do quinto mandamento. Nunca: honrar teu pai
e tua mãe para que se prolonguem os teus dias na terra, que o
Senhor, Teu Deus, Te dá”.
Por
fim, ao mesmo tempo que Ronaldo alcançava a rua, sôfrego — o
formigamento no braço direito ainda não havia recuado —, ouvia os
gritos de seus pais, carregados de ira, amaldiçoando-o. Contudo,
nenhuma daquelas ofensas poderia mais atingi-lo. O que o perturbava,
naquele instante, sim, sim, sim e de novo, de novo e de novo era o
fato de ter deixado Bruna para trás.
Ronaldo
respirou fundo, sentindo-se subitamente envergonhado de si mesmo à
medida que um calafrio lhe percorreu o coração. Não conseguiu mais
se conter. Se desmanchou em lágrimas afundando em uma crise de choro
enquanto seguiu correndo com a maior velocidade que seus pés e
pernas lhe pudessem permitir.
28
de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval: 14h40min.
As
pupilas de Ronaldo
se
dilatam. Ele sente a boca completamente seca e então range os
dentes, um impulso tão vigoroso que faz as mandíbulas doerem.
Agachado, no final da escadaria, com os braços agarrando os joelhos,
ele chora copiosamente até conseguir recuperar a calma, ou uma
relativa calma para resgatar, com a mão trêmula, o celular
depositado sobre o degrau, ao seu lado. Conforme segue teclando um
tanto hesitante a sequência de números sobre a tela, vai repetindo
para si mesmo, tentando se convencer de que sim, precisará
dramatizar, se alterar, dissimular se for preciso... A ligação por
fim é completada.
— Alô?
— sua voz se acelera um pouco — Por favor, me ajude! Me ajude!
28
de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval
Acordei
com a televisão ligada, sem conseguir distinguir exatamente o que
estava passando. Acho que era um telejornal com o compacto do desfile
das escolas de samba da noite anterior.
Enfim...
Sem
pressa, levantei-me e sentei na cama sem coragem ou disposição para
sair de onde estava. Não sabia quanto tempo havia dormido e não
demorei em perceber que não estava me sentindo bem: algumas dores
musculares, uma sensação recorrente de que havia sido atropelado
por um caminhão, a minha língua parecendo peluda e uma batalha
épica acontecendo dentro da minha cabeça, não me deixou dúvidas
quanto a isso.
Respirei
fundo, o máximo que pude e fechei os olhos para, alguns segundos
depois, abri-los, passando a observar o meu entorno até perceber que
estava no meu quarto, ou melhor, no quarto que eu estava ocupando na
chácara que meus pais haviam alugado para nós três passarmos o
feriado de carnaval, mesmo não conseguindo me lembrar de como havia
chegado até lá, naquele quarto, e tampouco como estava vestido com
o short e a blusa que sempre usava para dormir. Apenas flashes,
resquícios de uma confusão mental atravessou meu cérebro numa
velocidade vertiginosa até que uma determinada imagem fosse
alcançada, ou imagens, eu não sei dizer ao certo; porém, com algum
esforço, acabei por vislumbrar o horror que aquelas peças soltas
representavam: a recordação infeliz da noite anterior...
De
pronto tapei os olhos, envergonhado, sentindo-me o pior ser humano
sobre a face da Terra, enquanto imaginava o inevitável primeiro
contato com eles, meus pais adotivos, depois do que acontecera no
banheiro... sob o chuveiro... a água escorrendo... minhas mãos
sendo imobilizadas para o alto... suor... o odor da cerveja...
“Faça
o que a gente mandar e você não vai se arrepender de nada, Lucas.
De nada”.
Não.
Não. Foi surreal demais. Inacreditável demais. Fantasioso demais
para ser verdade. Em
que mundo, em que realidade um pai e uma mãe tocariam seu filho de
maneira tão voluptuosa e dariam a ele um prazer jamais sentido?
Não.
Não. Foi tudo minha culpa. Eles estavam bêbados. Os dois. E o
álcool certamente os motivou a avançar o sinal, a fazer o que
começaram a fazer... Eu estava sóbrio. Eu estava consciente. Eu
sabia muito bem o que estava acontecendo... Mesmo estando teso e
assustado e impotente, eu deveria ter insurgido, chamado os dois à
razão ao invés de permitir que meu corpo reagisse por si só,
independente e arbitrário, respondendo ativamente aos estímulos que
recebia...
Sim.
Sim. Sim. Definitivamente
jamais pensei que algo parecido pudesse acontecer envolvendo a mim e
aos meus pais... Os seres humanos que me escolheram, que me adotaram
com poucos meses de vida e me criaram... Que me protegeram durante os
meus dezesseis anos de existência sobre a face da Terra!
Respirei
fundo e decidi que ficaria no quarto até que um deles me chamasse.
Certamente iríamos nos cruzar naquele dia, ou no dia seguinte, ou na
melhor, ou pior das hipóteses, quando fôssemos embora, dali a
quatro dias, vai saber. Talvez eles também estivessem com vergonha,
muita vergonha, e então voltei a me deitar e fechei os olhos,
nervoso, ansioso, aguardando a qualquer momento um grito ou uma
batida na porta.
Algum
tempo se passou e nem meu pai, e nem minha mãe, foram à minha
procura. Retardar o momento de encará-los era um alívio, de certa
maneira, mas eu não poderia viver eternamente isolado até sábado.
Daí, reuni forças, cara e coragem e depois de trocar o short e a
blusa por uma camiseta e bermuda, abri a porta bem devagar e saí
caminhando pelo andar térreo da casa, onde estava o meu quarto, e
não demorei muito para notar o inquietante silêncio incrustado em
todos os cantos.
Nada
na cozinha.
Nada
na área de serviço.
Os
dois carros estavam estacionados.
Ninguém
na sala.
Retornei
à cozinha e olhei para o relógio pendurado na parede e me
surpreendi com o avançado das horas: exatamente 14h40min. Um milagre
meus pais ainda estarem dormindo. Nunca os tinha visto depois das 10
horas na cama, mesmo em um dia de feriado... Talvez estivessem
cansados pela noite anterior, não pude deixar de concluir, acanhado,
já sentindo minhas bochechas pegando fogo.
De
repente, ouvi ao longe, o som da música I
started a joke,
que eu havia destinado, no meu celular, às chamadas de Márcio
Antônio, professor de filosofia. Coloquei, então, instintivamente,
as mãos no bolso da bermuda e não encontrei o telefone, começando,
de pronto, uma busca auditiva. O som, percebi, vinha do segundo
andar. Subi as escadas paulatinamente, continuando a escutar o toque
do meu aparelho cada vez mais próximo, sentindo meu coração
disparar ao ser invadido pela possibilidade de que ele pudesse estar
no quarto dos meus pais, apesar de ser o último lugar provável que
poderia tê-lo deixado...
O
som cessou, por alguns instantes, porém, logo voltou a se fazer
presente, me obrigando a jogar por terra todas as dúvidas que ainda
pudessem restar de que o telefone estava, sim, lá, na alcova...
naquela alcova... naquela maldita alcova.
“Iremos
nos arrepender”... Ouvi
minha voz, meu murmúrio à medida que terminava de subir os
degraus... “Iremos
nos arrepender”... O
riso, a gargalhada de meus pais, peças de roupas espalhadas pelo
chão... mãos me ensaboando sob o chuveiro...
Meneei
a cabeça com força, de um lado para o outro, e enquanto terminava
de engolir em seco, me dirigi para frente do quarto, quase sem
respirar, parando, por fim, defronte à porta, temeroso, sentindo
todo o corpo tremer e depois de uma, duas, três batidas, sem obter
nenhuma resposta, optei por permanecer imóvel por alguns instantes;
aliás, uma verdadeira eternidade.
O
toque do celular mais uma vez cessou e pelo tempo de silêncio que se
fez, me senti incentivado a desistir de continuar a minha empreitada,
mas tão logo aquele toque voltou à baila, deixando claro que o
professor Márcio Antônio estava determinado a falar comigo,
reconsiderei, voltando a bater à porta, novamente, entretanto, outra
vez, sem receber nenhum retorno.
Porque
meus pais não atenderam ao telefone? Ou me chamaram? Por mais
exaustos que estivessem, seria impossível continuarem mergulhados
num sono profundo...
De
novo insisti e de novo ninguém me devolveu uma satisfação sequer.
Não tive alternativa a não ser forçar de leve a maçaneta na
esperança de que a porta estivesse trancada...
Mas
não estava.
Com
minhas pernas tremendo, atravessei o pequeno espaço que deixei entre
a porta e seu batente, já imaginando meus pais sendo surpreendidos
com a minha súbita presença, deitados sobre a mesma cama onde
havíamos...
“Relaxa
Lucas. Se continuar assim, você não vai aproveitar em nada o que
temos pra oferecer”.
Inspirei
e expirei, profundamente. Lá estavam eles, os dois, deitados sobre a
cama, completamente
nus, amordaçados, com os pulsos e tornozelos amarrados por lençóis
e com os olhos esbugalhados, parecendo que estavam vislumbrando algo
terrível.
Meu
corpo inteiro foi tomado por um calafrio quase incontrolável, mas
ainda assim busquei forças para chamar por seus nomes e apenas o
silêncio, o maldito silêncio foi a resposta que obtive.
O
toque do celular não parava. O que o professor Márcio Antônio
queria falar comigo de tão urgente?
Balancei
a cabeça, tonto, e caminhei pé ante pé até alcançar a beirada da
cama, onde pude perceber que meus pais adotivos, cada um deles,
estava com uma gravata enrolada no pescoço... e o que eu mais temia:
mortos.
Lembro-me
da sensação de náusea; lembro-me de uma dor intensa, quase
insuportável tomando conta de toda a minha cabeça; lembro-me também
de uma inusitada, de uma absurda sensação de irritabilidade...
Depois disso... Não consigo... Não consigo me lembrar de mais nada
depois disso...
Por
quê? O que eles fizeram pra merecer o fim que tiveram? Por quê? Por
que fui poupado?
Quando
dei por mim estava no andar térreo, respirando com dificuldade e
encharcado de suor, porém, sem saber como havia chegado até lá,
como havia saído do quarto, como havia descido as escadas...
Um
estrondo... Sim. Sim. Sim. De repente, um estrondo e em seguida um
grito parecido com o de uma fera primitiva e por fim uma pancada,
surda, nas minhas costas.
28
de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval: 15h.
— Alô?
Disque Denúncia?... Sim, sim... Um crime... Um duplo homicídio... —
uma voz calma, macia, mas também vacilante fala ao celular —
Absoluta... Chácara “Uma grande família”... Isso...
Guapimirim... Uma mulher e um jovem... Não... Não sou uma
testemunha... Infelizmente não tenho informação alguma sobre onde
encontrar o responsável ou os responsáveis...
A
mulher segue por mais alguns minutos respondendo a outros
questionamentos apresentados pelo atendente do outro lado da linha,
que justifica a necessidade da precisão dessa coleta, pois caberá a
ele orientar de forma correta o policial ou a viatura que irá ao
local do fato.
A
ligação, por fim, é encerrada e após desligar o celular, gesto
acompanhado de um longo suspiro de alívio, Laura, assumindo uma
fisionomia de interesse gentil, examina seu reflexo no visor apagado
do aparelho: os olhos absortos, amargurados, um vinco vertical entre
as sobrancelhas, linhas proeminentes mais recuadas ao redor da boca,
algumas rugas e músculos flácidos, as maças do rosto menos
definidas... Enquanto desvia o olhar, passando a observar o espaço à
sua frente, murmura num tom de voz demonstrando uma ferida aberta,
lhe doendo por dentro: foi
preciso. Até você se tornar consciente o inconsciente irá dirigir
sua vida e você vai chamá-lo de destino.