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“Cada pessoa é um abismo. dá vertigem olhar dentro delas”.
Sigmund Freud
Porque algumas pessoas têm tudo e outras, nada? Porque o destino é bom com alguns e ruins para outros? Porque algumas pessoas são abençoadas com a sanidade enquanto outras, por mais que tentem, não conseguem ver-se livres de seus conflitos interiores, dos dilemas de suas almas?
Sei que estou condenado pela justiça dos homens e também pela Divina. Mas isso não me incomoda mais. Já lutei bastante todas as lutas possíveis. Já esmoreci, me reergui, pelejei e pelejei e até hoje não consigo compreender o porquê dos deuses não me terem permitido o privilégio da luz da sanidade; aliás, me permitiram, sim, porém, apenas frestas, meras frestas. O que talvez seja pior. Esse vislumbre da normalidade, do equilíbrio. O benefício da dúvida, ao contrário do que pensam, é uma indulgência distribuída a poucos. E os privilegiados, sempre figuras paradoxais, réus sem culpa, não devem buscar por motivos, explicações, justificativas para tal merecimento, pois, talvez, não existam. Não a olho nu. E se existirem, eles, os privilegiados, correm o risco de se depararem com um buraco negro.
A dor nos induz a agir. Constrói o nosso destino. Converte-nos, consciente ou inconscientemente, para o bem ou para o mal, porque nunca a esquecemos... Portanto, cuidado: aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar um deles. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você.
22 de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo sabia que já não estava raciocinando bem. Apenas apertava o passo mais e mais, imbuído da determinação de que deveria deixar tudo para trás, seu bairro, sua cidade, o estado, tudo. Nada mais poderia lhe pertencer, poderia fazer parte de si. Se é que algum dia algo, de verdade, lhe teria pertencido. A ele ou à sua irmã caçula, Bruna, a quem puxava pelo braço, quase arrastando chão afora. A menina, com uma estatura pequena para os seus onze anos, praticamente precisava correr para alcançar a velocidade com que o irmão andava, olhar adiante, obstinado.
— Por que parece que estamos fugindo?
Bruna insistia em perguntar, resfolegante, mesmo sem obter resposta alguma enquanto Ronaldo apertava os lábios numa linha angustiante, lutando para lidar com o caleidoscópio de emoções que o assolava, sem trégua, onde medo, remorso e sentimento de culpa pareciam tão presentes e concretos em sua consciência, assim como também lhe davam a impressão de pertencer a outra pessoa, a um terceiro, a alguém que, de alguma forma, Ronaldo não conseguia distinguir...
Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente, ele ia repetindo, repetindo num murmúrio indistinto em meio às dores proporcionadas pelas luxações e pelos hematomas espalhados por quase todo o corpo e pela face, assim como também ia lidando com a sensibilidade, o dolorido em seu couro cabeludo.
— O pai e a mãe vão ficar loucos atrás da gente assim que derem pela nossa falta — Bruna informou, ou ao menos tentou informar; um temor carregado na voz — E dessa vez eu também vou ter a minha parcela de cinto do pai...
Ronaldo de fato não lhe dava ouvidos. Não podia. Não devia. Precisava sair de Manhuaçu o mais breve possível e qualquer obstáculo, interrupção em seu objetivo, por menor que fosse, poderia colocar tudo a perder. Já não bastava aquelas serpentinas, Batalhas de Confetes, aqueles foliões e suas marchinhas carnavalescas espalhando-se pelas ruas... Em algum momento, quando estivessem distantes, bem, bem distante, ele daria a notícia à irmã de que os pais estavam mortos.
A propósito, a casa em que moravam, decerto, já deveria estar embebida em chamas.
Sim. Lembro-me muito bem dos instantes finais daqueles dois porcos e vou confessar que não sinto nenhum remorso pelo que fiz. Nada. Nem uma ponta de arrependimento.
Mesmo com o passar dos anos, de todos esses anos, ainda consigo enxergar nitidamente, como se estivesse observando as águas cristalinas de um lago, os olhos daqueles dois patéticos enquanto suplicavam pela vida, amarrados à cama, buscando desesperadamente se verem livres dos nós dos lençóis que estavam prendendo suas mãos e seus tornozelos, e, claro, das fronhas que eu havia enfiado nas suas bocas...
Que prazer imensurável a repercussão em meus ouvidos, proporcionada pelo som dos seus gemidos abafados, pela respiração acelerada buscando captar mais oxigênio, ao mesmo tempo que eu cantarolava a minha canção preferida, I started a joke...
Eu comecei uma piada
A qual fez o mundo inteiro começar a chorar
Mas eu não percebi
Que a piada era sobre mim
Que deleite sentir o odor almiscarado do medo exalando de seus poros, um reflexo direto da descarga de adrenalina disparada a cada milésimo de segundo por seus cérebros.
Nada. Exatamente nada. Nenhuma pena, nenhum segundo sequer de pesar diante daqueles pares de olhos que pareciam órbitas prestes a saltarem das cavidades, divisando o desprezo, o ódio e o escárnio que eu lhes desferia.
E eu comecei a chorar
O que fez o mundo inteiro começar a rir
Se eu somente tivesse percebido
Que a piada era sobre mim
Oscar Wilde afirmou, perfeitamente, que os pecados da carne não são nada; tão somente doenças a curar pelos médicos se a cura for possível. Entretanto, os pecados da alma, esses sim, são vergonhosos e as almas daqueles dois estavam chafurdadas na lama. Em que mundo ou em que realidade um pai com o consentimento de uma mãe tocaria seu filho de maneira tão voluptuosa e daria a ele um prazer jamais sentido?
Não. Não. Eu não fui culpado. Nem eu e tampouco minha irmã, Laura... Ela fez o certo ao fugir, ainda que tenha me deixado para trás... Ainda que tenha NOS deixado para trás...
Que sensação arrebatadora me invadiu quando comuniquei àqueles dois pervertidos que tinha chegado a hora de pagarem pelo que tinham feito comigo e com minhas irmãs. Mas eu não fui tão perverso, tão insensível. Não. Claro que não. Agi com condescendência, mesmo que nenhum deles merecesse. Fiquei em pé, na cama, sobre os dois, com as pernas abertas à medida que massageava minha virilha, meu pênis, na verdade, me masturbava enquanto lhes dava um último instante de prazer antes de mostrar a gravata esticada entre as minhas mãos e perguntar qual dos dois infelizes iria ter o privilégio de assistir ao outro morrer primeiro ao passo que eu cantarolava, cantarolava...
Até que eu finalmente morri
O que fez o mundo inteiro começar a viver
Se eu apenas tivesse percebido que a piada era sobre mim
14 de janeiro, 1977, sexta-feira
— Me deixa em paz!
Ronaldo gritava ferozmente ao mesmo tempo que lutava para se desvencilhar das garras de seu pai, que num último esforço tentava, a todo custo, segurá-lo pelas costas, através do tecido da camisa, depois de uma curta, porém, cansativa disputa corpo a corpo.
Antoniel, pela primeira vez, estava tendo de lidar com uma oposição ferrenha do filho, e como se já não bastasse, o infeliz decidira também enfrentá-lo. Onde já se viu um moleque que mal completara seus quinze anos, querer agir como um homem de uma hora para outra?
Enquanto Antoniel remoía ensimesmado, assistindo, impotente e possesso, o que restava do pano da camisa do garoto escorregar de sua mão, ia decidindo qual seria a melhor maneira de punir Ronaldo por tamanho atrevimento. O mal deveria ser cortado pela raiz, ponderou convicto, já completamente sem paciência. Um bom sedativo, decerto, resolveria toda a questão; diminuiria a irritabilidade reflexa e exerceria um efeito calmante sobre o sistema nervoso do rapaz, domando-o, por fim, porém, que utilidade teria com sua sexualidade, sua virilidade entorpecida?
— Me deixa em paz...
Ronaldo repetia entredentes à medida que caminhava a passos largos e em marcha à ré, sem deixar de encarar o pai com ferocidade, uma figura estagnada à sua frente, acompanhado de sua peculiar frieza, terminando de cruzar os braços como se tivesse a certeza de que ele, Ronaldo, se arrependeria do rompante de rebeldia que o abatera, de todo aquele “desgaste inútil de energia”.
— Nunca mais, ouviu bem? Nunca mais. Juro por tudo que é mais sagrado...
Ronaldo sentiu a voz começar a falhar e em seguida uma dor de cabeça lancinante, dor que o obrigou a fechar e abrir os olhos algumas vezes no intuito de recuperar o equilíbrio; certamente um resultado direto dos gritos que havia disparado e também da tensão, do desespero... Contudo, não iria desistir. Estava disposto a pagar o preço que fosse. A linha tênue que separava coragem e submissão já tinha sido atravessada e ele, sem sombra de dúvidas, não poderia, e nem pretendia, retomar àquele caminho pavimentado pelo medo, pela repulsa e, principalmente, pelo ódio!
Ao tocar, por fim, com um dos calcanhares o rodapé da parede atrás de si, não deixou de medir um instante sequer o pai de cima a baixo, preparado para qualquer contra-ataque que ainda pudesse acontecer.
— Nunca mais, nem você, e muito menos ela, vão encostar as mãos em mim, entendeu? Chega. Todo este absurdo, toda esta loucura, acabou. Por quê? Por que vocês fazem isso?
Ronaldo sentiu uma crise de histeria subir dos pulmões para o cérebro à velocidade de um relâmpago. Na verdade, conhecia muito bem aquelas sensações permeadas pela impossibilidade, pela falta de forças diante de um problema que já existia em sua vida desde que completara seus 11 anos. Um conflito até então sem solução, um medo que se tornara parte da sua vida, da sua rotina... da sua existência.
Ele respirou fundo, como se quisesse explodir os pulmões e, talvez, assim, colocar um fim a todo aquele sofrimento. Não foram poucas as vezes, naqueles últimos quatro anos, que planejou dar cabo da própria vida. Mas não podia. Como deixar a pequena Bruna à mercê dos carrascos, dos monstros que infelizmente o destino os havia ofertado como pais? E em tempo algum se permitiria agir como Laura, que da noite para o dia desaparecera, sem deixar rastros, e o pior, sem sequer consultá-lo para saber se ele e a pequena Bruna também não estariam dispostos a escapar daquele inferno.
Laura, Laura, Laura! Onde ela estaria? Ronaldo se perguntou por um instante, meneando a cabeça logo em seguida, disposto a expurgar o questionamento descabido para bem longe. Nada poderia afastá-lo de seu objetivo, muito menos a lembrança da ingrata de sua irmã mais velha.
— Você deve isso a gente, moleque!
O tom de voz imperativo de Antoniel, transbordando impaciência, resgatou Ronaldo do instante de evasão de seu raciocínio a tempo de fazê-lo perceber que o pai já havia avançado pelo menos três passos, ainda que curtos, em sua direção e já se preparava para seguir adiante.
— Nós, eu e sua mãe, lhes demos tudo. Então, nada mais justo que nos retribua...
Antoniel encarava o filho com os olhos semicerrados enquanto dava início ao seu discurso manipulador, baixando consideravelmente o timbre da voz, tornando-a quase inaudível, para com isso resgatar, em última estância, o seu poder, sua autoridade, ainda que abusiva, destilando palavras habilmente pronunciadas. Não lhe restavam dúvidas de que Ronaldo estava mais que disposto a escapar e isso não poderia acontecer. Jamais.
— Alguma vez... — Antoniel respirava sem pressa, apesar do afã de acabar com toda a balbúrdia que havia se formado dentro daquele quarto — Quero que responda olhando firme nos meus olhos, Ronaldo. Alguma vez nós te forçamos? Hein? Quero que me diga se eu e sua mãe te obrigamos a fazer alguma coisa que não quisesse? Sempre conversamos. Sempre expusemos nossos pontos de vista e justificamos todos os nossos atos. Desde o começo...
Ronaldo não sabia até quando podia mais suportar o despautério de seu pai. A vontade que tinha era de avançar sobre ele, mesmo em grande desvantagem física, e agredi-lo, uma, duas, três vezes ou o quanto fosse necessário para amainar a ira descomunal que estava aprisionada dentro de si, sufocando-o. Ele sabia de cor e salteado para onde aquele discurso infame o levaria. Precisava agir rápido. Imediatamente. O limite de sua resistência, até mesmo de sua resiliência, há tempos já tinha chegado ao fundo do poço.
— Você realmente pensa que vai encontrar apoio aí fora? — Antoniel prosseguia determinado cada vez mais a infligir o medo, a esgotar a chama da coragem que se acendera inadvertidamente no filho — Acha que alguém vai lhe ajudar depois de espalharmos o quão injusto você foi, abandonando o lar de uma hora para outra, sem aviso, deixando para trás seus pais que se mataram para lhe dar do bom e do melhor? Como acha que as pessoas reagirão diante da fragilidade da sua mãe depois de perder o filho pro mundo, sem qualquer motivo aparente, a não ser o da ingratidão, fruto de uma rebeldia sem propósito?
— Vou contar tudo...
Ronaldo balbuciou, irritado, correndo os olhos de um lado para o outro até localizar Bruna completamente encolhida no canto oposto em que ele se encontrava dentro do quarto.
— Será somente a sua palavra. Nada mais do que isso. A palavra de um moleque de quinze anos contra a dos pais, cidadãos respeitados, de moral ilibada, caridosos, amáveis...
Antoniel ousou dar mais um passo e Ronaldo, mesmo se recusando a sentir, permitiu ser invadido pela vertigem, pela taquicardia, a falta de ar, a sudorese, o desespero, enquanto uma pressão absurda tomava conta progressivamente de sua cabeça e também de suas articulações...
— Não — ele tentou gritar, doloroso, a voz em pedaços — Não. Por favor, não se aproxime...
— Você não vai sair desta casa.
A ordem dada por Antoniel foi decisiva e Ronaldo sentiu o embargo na garganta, as lágrimas começarem a escorrer pelo rosto, pelo pescoço... Mas não iria esmorecer. Não mais. Na verdade não poderia esmorecer diante de Bruna; a irmã caçula estava sentada no chão com as pernas recolhidas e dobradas, envolvidas com extrema força por seus braços frágeis. A menina, que até poucos minutos havia tentando se levantar, e que recebera como resposta um olhar ameaçador e impiedoso de Antoniel, estava muito, muito assustada, porém, diferente dele, de Ronaldo, vinha conseguindo manter — e só Deus pra saber como — o medo dentro de si, sem transformá-lo em choro; sem dar ao pai o prazer de vê-la, ao menos externamente, desesperada, sem qualquer resquício de esperança.
Em definitivo, Ronaldo percebeu que não tinha mais tempo a perder. Poucos centímetros o separavam de Antoniel. Se não colocasse em prática o seu plano de fuga, jamais o faria novamente, pois, decerto, a coragem, a força e o desespero que o arrastara até ali desapareceriam soterrados pelo temor e pela revolta diante da inércia a que se entregaria, já que seus pais não deixariam brechas, lacunas ou qualquer outro tipo de espaço para que pudesse reunir novamente o mínimo de resistência necessária para se ver livre daquele lugar que imprudentemente chamavam de lar.
Numa questão de segundos, deduziu que seria praticamente impossível resgatar Bruna, afinal, além da cama, outro obstáculo que não poderia ser desprezado, o pai, uma figura pesada, imponente, o rosto redondo crispado e vermelho, também estava bloqueando aquele curto caminho que os separava. Sentiu-se péssimo ao ter que tomar a decisão, a fatídica decisão, ainda que momentânea, em ter que deixar a menina para trás. Mas era a única alternativa. Com o ódio trespassando os olhos de Antoniel, metamorfoseando seu semblante, Ronaldo não poderia mais esperar. A sorte, ou o azar, estavam lançados.
Tropeçando entre os próprios pés e se apoiando ao que via pela frente, Ronaldo, enquanto enxugava os olhos, o rosto e o nariz com as costas da mão, atravessou o batente da porta do quarto como um relâmpago, não parando nem mesmo quando sua mãe surgiu na ponta do corredor, de pé e de braços abertos, exalando arrogância e ousadia, determinada a impedir sua passagem para os degraus que levavam ao andar térreo da casa. Uma visão dupla, tripla da imagem dela se formou e desapareceu em instantes ao passo que a dor pulsátil na cabeça de Ronaldo foi transferida de imediato para um dos lados do crânio simultaneamente a um súbito formigamento no braço direito.
Uma ofensa, indecorosa, algo que um filho jamais deveria dizer à sua mãe, por pior que ela pudesse ser, subiu à garganta de Ronaldo, mas não foi expelida. Os músculos de sua língua estavam travados... Não, não. Estavam em guerra. Sim. Em conflito, um conflito que fazia parecer que a língua estava maior que a boca e que ele, Ronaldo, por muito pouco não conseguiria contê-la.
Norma permanecia parada, os braços abertos, os olhos duros, turbulentos... Por um instante interminável todos os odores irrelevantes se ampliaram e o batimento acelerado no coração de Ronaldo, como o toque de um tambor, o fez partir ao encontro da mãe, sem mais pestanejar, empurrando-a para o lado com toda a força que possuía, pouco se importando se iria machucá-la, tendo até mesmo a absurda impressão de ser tomado por um doce prazer ao tempo que pesava, com um resquício de amargura, de uma irritante amargura, que há muito já havia deixado de enxergar Norma com condescendência. Há muito já havia deixado de buscar dentro daquele ser humano o significado inerente do amor materno, real, sincero e infinito. Ao invés disso, tinha passado a divisar, tanto em sua figura quanto na do pai, o horror do “eu sombrio” que poderia existir dentro de cada indivíduo.
Ronaldo seguiu adiante. A cólera e a sofreguidão o impulsionou a descer correndo as escadas, pulando os degraus de dois em dois para sem demora atravessar a sala em passos rápidos. Corria, sim, contudo, não conseguia entregar-se totalmente à velocidade necessária para alcançar a porta principal, que demarcaria sua liberdade, o livrando dos grilhões daquela prisão imoral, sádica, tal qual o desejo das vítimas nas obras lascivas e pervertidas do libertino Marquês de Sade.
Bruna. Bruna. Bruna. Ele precisava voltar. Precisava resgatar a irmãzinha das garras, da vingança certa que os verdugos iriam derramar sobre ela. Ronaldo sabia que agiriam daquela maneira, pois fora assim que o trataram depois da fuga de Laura. A desforra os fizera cruzar limites que ele, Ronaldo, aos treze anos, nunca imaginou que pudessem atravessar.
Por que razão Deus permitia que tudo aquilo acontecesse? Por que não castigava aqueles dois como fez com Adão e Eva? Como fez com os habitantes de Sodoma e Gomorra, segundo os relatos da Bíblia, a mesma Bíblia que seus pais empunhavam com um fervor inigualável todos os domingos e algumas terças-feiras na igreja do bairro onde moravam?
Antoniel e Norma pecavam deliberadamente, então deveriam sofrer a punição divina, como declarada nos sermões dos dois padres que ocuparam o púlpito daquele templo antes da chegada do sacerdote Lucas, que continuou a repetir cada uma daquelas palavras, prometendo, corroborando a ira celestial sobre os ímpios, ainda que com seus modos progressistas e sua relativa juventude, que por incrível que pudesse parecer, não causou nenhum espanto ou incitou qualquer resistência aos moradores da cidade e que acabou ouvindo dele, de Ronaldo, uma confissão banhada pelo terror e aflição sobre a súbita fuga de Laura e suas consequências e que nada fizera além de lhe atribuir o ultraje da ingratidão, da ofensa e do desacato grave pela atitude irresponsável para com os próprios pais.
Onde já se viu um filho atribuir acusações covardes, sem sentido e pueris contra seus progenitores? E somente para imputar a eles uma mesquinha e infantil vingança, ainda que não tivessem, sem qualquer sombra de dúvida, sido responsáveis pela fuga ordinária da filha insensível e tampouco agido da maneira tão leviana, abominável e pecadora que Ronaldo tinha afirmado com sua língua vil.
“Nunca, garoto, nunca se esqueça do quinto mandamento. Nunca: honrar teu pai e tua mãe para que se prolonguem os teus dias na terra, que o Senhor, Teu Deus, Te dá”.
Por fim, ao mesmo tempo que Ronaldo alcançava a rua, sôfrego — o formigamento no braço direito ainda não havia recuado —, ouvia os gritos de seus pais, carregados de ira, amaldiçoando-o. Contudo, nenhuma daquelas ofensas poderia mais atingi-lo. O que o perturbava, naquele instante, sim, sim, sim e de novo, de novo e de novo era o fato de ter deixado Bruna para trás.
Ronaldo respirou fundo, sentindo-se subitamente envergonhado de si mesmo à medida que um calafrio lhe percorreu o coração. Não conseguiu mais se conter. Se desmanchou em lágrimas afundando em uma crise de choro enquanto seguiu correndo com a maior velocidade que seus pés e pernas lhe pudessem permitir.
28 de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval: 14h40min.
As pupilas de Ronaldo se dilatam. Ele sente a boca completamente seca e então range os dentes, um impulso tão vigoroso que faz as mandíbulas doerem. Agachado, no final da escadaria, com os braços agarrando os joelhos, ele chora copiosamente até conseguir recuperar a calma, ou uma relativa calma para resgatar, com a mão trêmula, o celular depositado sobre o degrau, ao seu lado. Conforme segue teclando um tanto hesitante a sequência de números sobre a tela, vai repetindo para si mesmo, tentando se convencer de que sim, precisará dramatizar, se alterar, dissimular se for preciso... A ligação por fim é completada.
— Alô? — sua voz se acelera um pouco — Por favor, me ajude! Me ajude!
28 de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval
Acordei com a televisão ligada, sem conseguir distinguir exatamente o que estava passando. Acho que era um telejornal com o compacto do desfile das escolas de samba da noite anterior.
Enfim...
Sem pressa, levantei-me e sentei na cama sem coragem ou disposição para sair de onde estava. Não sabia quanto tempo havia dormido e não demorei em perceber que não estava me sentindo bem: algumas dores musculares, uma sensação recorrente de que havia sido atropelado por um caminhão, a minha língua parecendo peluda e uma batalha épica acontecendo dentro da minha cabeça, não me deixou dúvidas quanto a isso.
Respirei fundo, o máximo que pude e fechei os olhos para, alguns segundos depois, abri-los, passando a observar o meu entorno até perceber que estava no meu quarto, ou melhor, no quarto que eu estava ocupando na chácara que meus pais haviam alugado para nós três passarmos o feriado de carnaval, mesmo não conseguindo me lembrar de como havia chegado até lá, naquele quarto, e tampouco como estava vestido com o short e a blusa que sempre usava para dormir. Apenas flashes, resquícios de uma confusão mental atravessou meu cérebro numa velocidade vertiginosa até que uma determinada imagem fosse alcançada, ou imagens, eu não sei dizer ao certo; porém, com algum esforço, acabei por vislumbrar o horror que aquelas peças soltas representavam: a recordação infeliz da noite anterior...
De pronto tapei os olhos, envergonhado, sentindo-me o pior ser humano sobre a face da Terra, enquanto imaginava o inevitável primeiro contato com eles, meus pais adotivos, depois do que acontecera no banheiro... sob o chuveiro... a água escorrendo... minhas mãos sendo imobilizadas para o alto... suor... o odor da cerveja...
“Faça o que a gente mandar e você não vai se arrepender de nada, Lucas. De nada”.
Não. Não. Foi surreal demais. Inacreditável demais. Fantasioso demais para ser verdade. Em que mundo, em que realidade um pai e uma mãe tocariam seu filho de maneira tão voluptuosa e dariam a ele um prazer jamais sentido?
Não. Não. Foi tudo minha culpa. Eles estavam bêbados. Os dois. E o álcool certamente os motivou a avançar o sinal, a fazer o que começaram a fazer... Eu estava sóbrio. Eu estava consciente. Eu sabia muito bem o que estava acontecendo... Mesmo estando teso e assustado e impotente, eu deveria ter insurgido, chamado os dois à razão ao invés de permitir que meu corpo reagisse por si só, independente e arbitrário, respondendo ativamente aos estímulos que recebia...
Sim. Sim. Sim. Definitivamente jamais pensei que algo parecido pudesse acontecer envolvendo a mim e aos meus pais... Os seres humanos que me escolheram, que me adotaram com poucos meses de vida e me criaram... Que me protegeram durante os meus dezesseis anos de existência sobre a face da Terra!
Respirei fundo e decidi que ficaria no quarto até que um deles me chamasse. Certamente iríamos nos cruzar naquele dia, ou no dia seguinte, ou na melhor, ou pior das hipóteses, quando fôssemos embora, dali a quatro dias, vai saber. Talvez eles também estivessem com vergonha, muita vergonha, e então voltei a me deitar e fechei os olhos, nervoso, ansioso, aguardando a qualquer momento um grito ou uma batida na porta.
Algum tempo se passou e nem meu pai, e nem minha mãe, foram à minha procura. Retardar o momento de encará-los era um alívio, de certa maneira, mas eu não poderia viver eternamente isolado até sábado. Daí, reuni forças, cara e coragem e depois de trocar o short e a blusa por uma camiseta e bermuda, abri a porta bem devagar e saí caminhando pelo andar térreo da casa, onde estava o meu quarto, e não demorei muito para notar o inquietante silêncio incrustado em todos os cantos.
Nada na cozinha.
Nada na área de serviço.
Os dois carros estavam estacionados.
Ninguém na sala.
Retornei à cozinha e olhei para o relógio pendurado na parede e me surpreendi com o avançado das horas: exatamente 14h40min. Um milagre meus pais ainda estarem dormindo. Nunca os tinha visto depois das 10 horas na cama, mesmo em um dia de feriado... Talvez estivessem cansados pela noite anterior, não pude deixar de concluir, acanhado, já sentindo minhas bochechas pegando fogo.
De repente, ouvi ao longe, o som da música I started a joke, que eu havia destinado, no meu celular, às chamadas de Márcio Antônio, professor de filosofia. Coloquei, então, instintivamente, as mãos no bolso da bermuda e não encontrei o telefone, começando, de pronto, uma busca auditiva. O som, percebi, vinha do segundo andar. Subi as escadas paulatinamente, continuando a escutar o toque do meu aparelho cada vez mais próximo, sentindo meu coração disparar ao ser invadido pela possibilidade de que ele pudesse estar no quarto dos meus pais, apesar de ser o último lugar provável que poderia tê-lo deixado...
O som cessou, por alguns instantes, porém, logo voltou a se fazer presente, me obrigando a jogar por terra todas as dúvidas que ainda pudessem restar de que o telefone estava, sim, lá, na alcova... naquela alcova... naquela maldita alcova.
“Iremos nos arrepender”... Ouvi minha voz, meu murmúrio à medida que terminava de subir os degraus... “Iremos nos arrepender”... O riso, a gargalhada de meus pais, peças de roupas espalhadas pelo chão... mãos me ensaboando sob o chuveiro...
Meneei a cabeça com força, de um lado para o outro, e enquanto terminava de engolir em seco, me dirigi para frente do quarto, quase sem respirar, parando, por fim, defronte à porta, temeroso, sentindo todo o corpo tremer e depois de uma, duas, três batidas, sem obter nenhuma resposta, optei por permanecer imóvel por alguns instantes; aliás, uma verdadeira eternidade.
O toque do celular mais uma vez cessou e pelo tempo de silêncio que se fez, me senti incentivado a desistir de continuar a minha empreitada, mas tão logo aquele toque voltou à baila, deixando claro que o professor Márcio Antônio estava determinado a falar comigo, reconsiderei, voltando a bater à porta, novamente, entretanto, outra vez, sem receber nenhum retorno.
Porque meus pais não atenderam ao telefone? Ou me chamaram? Por mais exaustos que estivessem, seria impossível continuarem mergulhados num sono profundo...
De novo insisti e de novo ninguém me devolveu uma satisfação sequer. Não tive alternativa a não ser forçar de leve a maçaneta na esperança de que a porta estivesse trancada...
Mas não estava.
Com minhas pernas tremendo, atravessei o pequeno espaço que deixei entre a porta e seu batente, já imaginando meus pais sendo surpreendidos com a minha súbita presença, deitados sobre a mesma cama onde havíamos...
“Relaxa Lucas. Se continuar assim, você não vai aproveitar em nada o que temos pra oferecer”.
Inspirei e expirei, profundamente. Lá estavam eles, os dois, deitados sobre a cama, completamente nus, amordaçados, com os pulsos e tornozelos amarrados por lençóis e com os olhos esbugalhados, parecendo que estavam vislumbrando algo terrível.
Meu corpo inteiro foi tomado por um calafrio quase incontrolável, mas ainda assim busquei forças para chamar por seus nomes e apenas o silêncio, o maldito silêncio foi a resposta que obtive.
O toque do celular não parava. O que o professor Márcio Antônio queria falar comigo de tão urgente?
Balancei a cabeça, tonto, e caminhei pé ante pé até alcançar a beirada da cama, onde pude perceber que meus pais adotivos, cada um deles, estava com uma gravata enrolada no pescoço... e o que eu mais temia: mortos.
Lembro-me da sensação de náusea; lembro-me de uma dor intensa, quase insuportável tomando conta de toda a minha cabeça; lembro-me também de uma inusitada, de uma absurda sensação de irritabilidade... Depois disso... Não consigo... Não consigo me lembrar de mais nada depois disso...
Por quê? O que eles fizeram pra merecer o fim que tiveram? Por quê? Por que fui poupado?
Quando dei por mim estava no andar térreo, respirando com dificuldade e encharcado de suor, porém, sem saber como havia chegado até lá, como havia saído do quarto, como havia descido as escadas...
Um estrondo... Sim. Sim. Sim. De repente, um estrondo e em seguida um grito parecido com o de uma fera primitiva e por fim uma pancada, surda, nas minhas costas.
28 de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval: 15h.
— Alô? Disque Denúncia?... Sim, sim... Um crime... Um duplo homicídio... — uma voz calma, macia, mas também vacilante fala ao celular — Absoluta... Chácara “Uma grande família”... Isso... Guapimirim... Uma mulher e um jovem... Não... Não sou uma testemunha... Infelizmente não tenho informação alguma sobre onde encontrar o responsável ou os responsáveis...
A mulher segue por mais alguns minutos respondendo a outros questionamentos apresentados pelo atendente do outro lado da linha, que justifica a necessidade da precisão dessa coleta, pois caberá a ele orientar de forma correta o policial ou a viatura que irá ao local do fato.
A ligação, por fim, é encerrada e após desligar o celular, gesto acompanhado de um longo suspiro de alívio, Laura, assumindo uma fisionomia de interesse gentil, examina seu reflexo no visor apagado do aparelho: os olhos absortos, amargurados, um vinco vertical entre as sobrancelhas, linhas proeminentes mais recuadas ao redor da boca, algumas rugas e músculos flácidos, as maças do rosto menos definidas... Enquanto desvia o olhar, passando a observar o espaço à sua frente, murmura num tom de voz demonstrando uma ferida aberta, lhe doendo por dentro: foi preciso. Até você se tornar consciente o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino.
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