Violência Urbana I - Capítulo 04 - Um Corte de Morrer

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Capítulo 04 de 09
"Um Corte de Morrer"
Luís Henrique Dourado


© 2019, WebTV.
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Laís Di Marqüi era uma perua convicta. O estereótipo perfeito de uma mulher pomposa, vazia por dentro, completa por fora. Casada com um empresário extremamente bem sucedido do ramo das telecomunicações, Laís, com seus recém-feitos quarenta e cinco anos de idade, não fez faculdade, nunca trabalhou - sua função social era apenas descobrir maneiras para atingir o infinito limite do cartão de crédito que havia sido recebido do bondoso marido. Não se importava em ser um perfeito clichê de saltos. Passava longe de qualquer pauta feminista. Aliás, era contra. Na verdade, tinha prazer em viver esse personagem. Rica de posses, paupérrima de educação e respeito aos próximos, atropelava e ultrajava quem ousasse se opor à sua linha reta. Carregava um rigor quase religioso com o cuidado de seu visual, portanto, toda sexta-feira ela tinha compromisso inadiável no salão. E não podia ser qualquer salão, tinha que ser o melhor, o mais famoso, mais chic e caro da cidade.

Naquele dia, Laís estava empolgada e fez uma entrada triunfal no salão, já aguardando ser recebida como a rainha que se considerava, sem sequer pensar em dar boa tarde, requisitou:

- Cadê a Edilene?

Todas as pessoas do salão se voltaram para Laís, tanto as funcionárias quanto as clientes, estas, a grande maioria também peruas consagradas. Aconchegava nos braços sua cadela, Athena, da raça Spitz Alemão, absolutamente obesa e peluda, com um lacinho roxo na cabeça e a jogou no colo da cabeleireira mais próxima. Com as mãos agora vazias, bateu duas palminhas, para chamar ainda mais atenção:

- Edilene?

Edilene apareceu ao fundo do salão afobada. Odiava a socialite esnobe, mas Laís Di Marqüi era a melhor cliente do salão. Embora a sua chefe, Mônica, compartilhasse do sentimento de repulsa, dava ordens expressas para tratá-la de maneira condizente com o que ela se considerava: uma deusa.

Toda sexta-feira, Edilene voltava pra casa com sentimentos ambíguos – feliz com a pomposa gorjeta que recebia, mas sofrida por escutar tantas barbaridades e ter que viver o personagem de escrava das novelas de época que assistia.

No trajeto até sua distante residência, Edilene, no ônibus, refletia sobre a pequenez da sua existência e se deprimia. Contudo, olhou a nota de cem reais que havia recebido com apreço, imaginou o presente que poderia comprar para o filho de seis anos e tratou de botar um sorriso no rosto. Sabia que a doação não era por generosidade ou bom coração da perua, mas somente mais uma gesto para expor sua superioridade sobre as serviçais e colocá-las em seu lugar. A cabeleireira quase conseguiu se esquecer disso para apenas pensar na felicidade do filho ao receber o carrinho de brinquedo que tanto pedia.

Edilene já se preparava para colocar Laís na cadeira, após pedir desculpas pelos segundos de atraso, quando a sua patroa, Mônica, interrompeu-a. Com um singelo toque, ela conteve Edilene e se dirigiu à Laís:

- Boa tarde, Sra. Laís. Como vai?
- Tudo ótimo e você?
- Também. Hoje eu mesmo vou atendê-la. Queria inaugurar um novo e reservado espaço VIP no salão, personalíssimo e estava esperando justamente a sua chegada.

Assim que terminou a frase, as outras peruas do salão largaram as revistas de fofoca sobre a vida dos famosos em castelos e se voltaram para Mônica com olhares furiosos de inveja. Laís Di Marqui, por sua vez, com seu ego massageado e inflamado, abriu um sorriso, ergueu o queixo, balançou levemente as mechas e não aguardou Mônica conduzi-la, iniciou seu andar na passarela imaginária.

- Por aqui, por favor – Mônica disse, apontando uma bela rampa, decorada com flores, que dava para um andar subterrâneo escondido. 

Laís Di Marqüi foi à frente seguida de Mônica. A dona do salão olhou firmemente sua funcionária e assentiu com a cabeça. Edilene não entendeu o que queria dizer aquele olhar tão forte e seguro, potente, um gesto de cumplicidade. 

A curiosidade vibrou intensamente dentro dela: o que a chefe estaria aprontando? E que lugar misterioso era aquele? Nunca tinha ouvido falar de um novo espaço, sequer movimento de obras ocorreram para que uma área VIP pudesse ser inaugurada. Infelizmente, Edilene ficaria desamparada com sua intriga, porque Mônica já havia desaparecido de sua vista junto com a perua Laís. Elas desciam devagar, valorizando o barulho do salto, enquanto a socialite observava:

- Estou impressionada. Não imaginava tamanha finesse vinda de você, querida. Estou me lembrando dos melhores salões europeus que tiveram a honra de me receber. Óbvio que não esperava nada igual aqui no Brasil, imagina, mas isso já é um grande avanço, sem dúvidas.

- Muito obrigada, Laís, fico extremamente lisonjeada – disse Mônica, abrindo uma pesada porta de metal, revestida com um material que remetia ao ouro – Entre por aqui, por gentileza.

Laís ingressou no salão especial e, em seguida, Mônica, fechou a porta bruscamente. O alto barulho da porta batendo escondeu o posterior click da tranca automática. Um amplo salão se revelava diante delas, lindamente iluminado, uma decoração moderna, com apenas uma enorme, confortável e moderníssima cadeira apontada para o espelho. A perua, empolgada, foi andando rapidamente em direção à cadeira e o som do salto batendo no chão ecoava pelo ambiente. Ela parou em frente ao assento e aguardou Mônica girar a cadeira para que ela delicadamente repousasse. Laís se admirou no espelho, com um leve toque do indicador tirou uma das mechas de sua testa e relaxou as mãos no encosto de braço da cadeira.

Nesse exato momento, Mônica, que observava atentamente os movimentos da perua, apertou um botão embaixo do balcão, onde os objetos de salão estavam dispostos. Em resposta, dois braceletes de ferro pularam da cadeira e prenderam os pulsos de Laís. As luzes antes claras e vivas adquiriram um tom vermelho, sombrio, neon, como numa câmara para revelar fotos, que piscavam em intervalos de poucos segundos. A perua deu um berro estridente que ensurdeceria ouvidos sensíveis.

- O que significa isso? – virou-se gritando em revolta para Mônica, que não respondeu. Com a expressão inabalada, a dona do salão pegou um pente lindamente adornado no balcão e o admirou.

- Ande, me explique! O que é isso? Como ousa me prender? Tire-me já daqui- esperneava Laís.

Mônica impassível se dirigiu para trás da cadeira e encarou fixamente a perua através do espelho. Ela repousou as mãos no ombro de Laís, fitando-a imóvel por alguns segundos, até que pegou os cabelos da socialite e começou a acariciá-los carinhosamente.  

- Socorro! Socorro! Me tira daqui. Socorro! Socorro! Tem alguém ai? Socorro!

- Já cansou? – perguntou, enfim, Mônica.

- Socorro! Socorro!

- Pode grunhir a vontade, galinha. Esse salão foi feito com revestimento acústico para que vadias como você não pudessem ser ouvidas.

- Quando eu sair daqui, você está muito encrencada, sua desgraçada. Eu vou acabar com você. Vou fechar esse salão. Meu marido vai tirar cada centavo seu. Eu juro que destruo sua vida. Não só a sua vida, como a de todas as suas gerações futuras, você está amaldiçoada para sempre.

- E o que te faz pensar que você vai sair daqui com vida? – indagou Mônica, voltando a encarar nos olhos a perua que agora mostrava um rosto preenchido em pânico. O botox se espremia para fora através dos poros. Aquelas palavras fizeram a postura dela mudar. Laís Di Marqüi se acalmou na cadeira e parou de gritar.

- Muito bem, é assim que eu gosto. Vamos começar os trabalhos? Aliás, não é por isso que você está aqui? – ao dizer isso, Mônica fez questão de mostrar claramente o pente que empunhava na mão. Ao invés dos tradicionais dentes de plástico, o artefato possuía lâminas finas, oito, paralelamente dispostas e afiadas. Elas brilhavam. Laís arregalou os olhos e esperneou como uma criança longe da mãe.

- O que você vai fazer comigo? Por favor, não me mate, por favor! Eu te dou tudo o que você quiser. Eu juro, eu juro, qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. Meu marido é muito rico. Por favor, não me mate, eu sou tão jovem, tão linda para morrer... Por favor!

- Você acha que pode me comprar com esse seu dinheiro sujo, piranha? Você acha que é pelo dinheiro que eu te coloquei aqui? – Mônica questionou com tom arrogante e poderoso.

- Por favor, por favor, não me machuque – implorava Laís.

Mônica então começou a pentear os cabelos, bem delicadamente, com o pente de lâminas. Laís tremia, mas Mônica, calma, acariciava o cabelo da perua. De forma macia, ia descendo e subindo o pente pelas lisas e lindas madeixas de Laís. As lâminas não encostavam-se ao couro cabeludo de Laís, Mônica tratava de praticar seu sadismo, passando as lâminas apenas no cabelo. O pescoço da ricaça arrepiava com a proximidade que as lâminas caminhavam, sentia o frio mortal delas. Olhando com prazer o desespero de Laís, Mônica fisgou com o pente especial uma mecha que caia na bochecha da socialite. A dona do salão ergueu lentamente os fios que escorriam pelas lâminas. Laís acompanhava o movimento completamente apavorada. Em pânico, ela se debulhava e suas lágrimas borravam sua caríssima maquiagem importada. Mônica se deliciava. De súbito, ela cansou de pentear o cabelo e estacionou o pente no pescoço de Laís.

- E ai? Será que termino isso agora? – disse Mônica, revelando uma cara fria e ameaçadora, arregalando os olhos como uma psicopata.

A perua não falava mais nada. Apenas com os olhos estanques implorava pela sua vida, enquanto chorava compulsivamente.

- Não, não, seria muito fácil – disse Mônica largando o pente de lâminas no balcão e aliviando a expressão facial – Tenho algo muito melhor...

Ela abriu a gaveta do balcão, retirou uma máquina de raspar cabelos e a colocou na tomada.

- Zero? É esse o corte que você quer? – perguntava destilando um sorriso venenoso nos lábios.

A perua gritou em defesa do seu cabelo com a mesma força que usou para lutar por sua vida.

- Não! Por favor, não! Meu cabelo não!– berrava Laís que agora suava na testa e nas axilas, coisa que nunca admitiria e fedia, fedia como um porco sendo preparado para o abate. O odor do medo.

Mônica passou o fio da máquina pela orelha de Laís e a deixou ali pendurada fazendo aquele barulho aterrorizador em seu ouvido. Ela então pegou um grande pote e mostrou o conteúdo para Laís.

- Está na hora de passarmos o creme hidratante – disse Mônica mostrando o pote que estava cheio de sangue viscoso até a borda. Dois olhos que pareciam de seres humanos boiavam nele. Ela derramou o conteúdo todo no cabelo da perua. E lá ficou ela, melecada, mergulhada em sangue, com os glóbulos, que haviam rolado, no colo. O líquido vital escorreu por seu rosto e entrou na sua boca. Laís berrava, cuspia, babava o sangue enquanto insista em vão nos pedidos de socorro. Mônica, por sua vez, gargalhava em êxtase.

- Dizem que esse creme é ótimo para pele, rejuvenesce, dá mais vida, sabe? – disse sarcástica.

- Eu me desculpo por tudo, eu juro, eu peço perdão por toda vez que eu tratei mal as pessoas, você, suas funcionárias... Eu juro, eu estou arrependida, eu aprendi minha lição. Me deixe sair daqui, por favor. Eu serei outra pessoa. Vamos esquecer isso, por favor. Não contarei a ninguém sobre o que aconteceu aqui.

- E você acha que pedir perdão vai apagar alguma coisa que você já fez? Não sou padre para te eximir dos seus pecados, estou aqui para condená-la por eles.

Dito isso, Mônica pegou a linda e enorme faca que estava no balcão e encostou a lâmina afiada no pescoço de Laís. Amarrada, chorando, de maquiagem borrada, suada, indefesa, pedinte, mergulhada em sangue, fedida, enfim, horrível, um ser digno de pena, Laís implorou a última vez pela sua vida:

- Por favor... Eu imploro...

- Agora é tarde para tentar implorar. Te encontro nos confins do inferno, sua galinha estúpida!

Mônica então fez um movimento e Laís não pôde mais pedir por sua vida. O escuro se fez.

A pequena linda e gorda cadela latia desesperada. O volume das vozes ia aumentando pouco a pouco, até que se tornaram compreensíveis.

- Sra., Sra.?

Laís abriu os olhos devagar. A claridade a incomodou um pouco e, como se despertasse de um pesadelo, como num susto, checou seu corpo. Tudo estava perfeitamente no lugar. Ela estava sentada na cadeira do salão, no ambiente comum, que havia adentrado há pouco. Di Marqüi correu gritando desesperada para olhar seu reflexo no espelho. E não acreditou no que viu:

- Não é possível! O que aconteceu? Não é possível!

- Como assim, Sra. Laís? – perguntou Edilene.

Laís retornou o olhar para o espelho para tentar acreditar no que via – não era possível: ela estava espetacularmente linda, como nunca esteve em toda sua vida, sequer na saudosa juventude. Sua pele nunca se mostrou tão linda e macia, seu cabelo nunca tão brilhante e sedoso, sua unha, pintada de uma cor que não existira no universo, fora criada naquele momento para revestir sua delicadeza. Murmúrios entre as outras peruas: “Eu quero o tratamento VIP também” “Eu sou a próxima” “Posso agendar?” se ouvia de todas elas empolgadas e invejosas com o resultado do tratamento personalíssimo. Uma discussão começava a se formar.

Laís, contudo, procurava vorazmente com os olhos a dona do salão. Finalmente, Mônica, que estava distraída, agachada, procurando algo no balcão da recepção, levantou-se e surgiu às vistas de Laís que em um impulso bateu os saltos em sua direção. Ela pegou Mônica pelo pescoço com as duas mãos:

- Eu vou te matar, sua desgraçada!

O salão inteiro se voltou incrédulo para assistir aquele ataque, para eles, desmotivado.

- O que você está falando, Laís? Por favor, me solte, está louca? Você está me machucando.

- Machucando? Machucar é o que você fez comigo, sua louca sádica.

Mônica se defendia, colocando as mãos no pulso de Laís, impedindo-a de enforcá-la.

- Acalme-se, Laís, o que está acontecendo? O que houve? – gritou uma perua de longe.

Mônica olhava para ela perplexa, mostrando-se atônita diante da reação de sua melhor cliente. Edilene, todas as funcionárias do salão pararam tudo o que estavam fazendo para acompanhar o escândalo promovido por Laís.

- Gente, o que é isso? Ela enlouqueceu? – disse uma perua para a outra.

- Devem ser esses remédios tarja preta que ela ainda tomando – sussurrou mais uma.

Edilene foi até Laís e a fez soltar o pescoço de Mônica.

- O que está acontecendo aqui, Laís? – perguntou Edilene.

- Essa louca, essa louca... ela... ela... – o salão aguardava ansiosamente para que Laís explicasse seu surto psicótico.

- Ela... ela... - Laís se olhou novamente no espelho. Ela estava radiantemente linda e não conseguiu completar a frase. Olhou em volta e estava sendo julgada aos olhos de todos como a louca fugida do hospício. Ajeitou a roupa, compondo-se, virou a cabeça rapidamente com desdém para as peruas que a observavam, e com o queixo erguido saiu do salão, batendo saltinho.

Assim que Laís deixou o estabelecimento, pegando bruscamente sua cadela do colo de alguém, as funcionárias e clientes retornaram para o seu lugar de trabalho. Obviamente o ataque foi assunto de muita fofoca, dias e dias comentaram sobre o surto da galinha. Edilene, no entanto, após o acontecido, reteve seu olhar em Mônica, que o retribuiu com um sorriso peçonhento e uma piscadela safada. Edilene, aquele dia, mesmo sem compreender exatamente o que a chefe havia feito com a vadia, entendeu o gesto e pegou seu ônibus para casa mais feliz e aliviada, acreditando que talvez existisse justiça no mundo.

Laís Di Marqüi, por sua vez, chegou à sua mansão e antes que pudesse abrir a boca para reclamar qualquer coisa para o marido, recebeu elogios efusivos dele, de como estava bela, coisa que nunca acontecia. Ele nunca ligava para qualquer coisa que ela fizesse ou inventasse na sua aparência, mas naquele dia não. Naquele dia, logo após ela girar a chave e abrir a porta de casa, dando de cara com ele, um sorriso enorme, branco, seguido de um aplauso admirado e perplexo a receberam. Ele a beijou com vontade, tentou fazer amor com ela, mas não conseguiu – iria estragar o look – disse Laís. Então ela sentou no sofá, chegou a abrir a boca para contar o ataque que havia sofrido e ordenar que a vingança fosse planejada, mas sem saber muito bem por que, se reteve.

Na sexta-feira seguinte, Laís adentrou novamente em grande estilo o salão de beleza de Mônica, chamando a atenção e novamente carregando sua cadela gorda e peluda, Athena, no colo:

- Cadê a Mônica? Quero meu tratamento VIP neste exato momento! Pago até o dobro do valor!

Mônica olhou feliz para Edilene, e mais uma vez sorriu enigmaticamente pra ela. Laís Di Marqüi teria o tratamento que merecia.



conto escrito por

Luiz Henrique Dourado
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 05 - Observador

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CONTOS CONTEMPORÂNEOS DA VIOLÊNCIA URBANA


Antologia de
Vários Autores

Capítulo 05 de 09
"Observador"
Douglas Barres


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O calor infernal de Porto Alegre fazia aquele mar de gente parecer que iam ser servidos vivos ao capeta. Por mais que o sol queimasse até a mais inocente formiga que arriscava caminhar pelas ruas, a curiosidade do povo vencia qualquer obstáculo da natureza. Um jovem, duas facadas na garganta. Estudante, a vida toda pela frente. O responsável? Ninguém sabe, ninguém viu. A vida de alguém é trocada por um par de notas amarelas.


Com seu blog, Ricardo costumava retratar toda violência que encontrava no centro da capital de Rio Grande do Sul. “A Desgraçada Violência”, ponto com, alguma coisa. Por mais que esse hobbie o fizesse parecer esses investigadores particulares que vemos nos filmes, tinha que ser forte para aguentar toda a brutalidade que o ser humano podia fazer em um semelhante.

O roubo seguido de morte do rapaz mais cedo não perdia para a briga que aconteceu duas horas depois. A mulher, descabelada, tenta violentamente derrubar o rapaz que estava acompanhado de sua filha. A garotinha berrava, pedia com todas suas forças para o pai largar a sacola e deixasse que aquela louca trocasse o conteúdo por drogas. Depois de muito insistir com empurrões, a ladrãozinha conseguiu o que queria. O posto policial que devia estar ativo no final da rua, estava vazio. “Por que não me ajudaram?”, perguntou o homem para todos curiosos que estavam ali presente. Ninguém respondeu. É como dizem, fazer textão no Facebook é mais fácil.

No começo da noite, o som de tiros ecoava por toda rua a frente do Banco do Brasil. Um mendigo tentava, por algum motivo, entrar a todo custo no banco, foi baleado. A justificativa do guarda foi que ele estava armado. Provavelmente o rapaz só queria aproveitar o ar condicionado do local, mas acabou indo tomar uma gelada com algum santo lá no céu.

Os seios balançando, aquele suor escorrendo pela nuca. O fedor de alguém que já tinha ido embora minutos antes. Ricardo ainda se perguntava como tinha coragem de fuder naquele calor infernal. Sem soltar um pingo de leite, a garota ainda ficou brava. “Ainda vai ter que pagar!”, resmungou enquanto se dirigia para o pó da felicidade em cima da mesa. Só o que nosso investigador gaúcho conseguia pensar era na brutalidade humana. Troque investigador por observador, pensou, enquanto olhava pela janela. O som de alguém gemendo no outro quarto não ajudava sua reflexão.

As ruas mal iluminadas eram um doce para qualquer vagabundo que esperava sua presa. Ricardo sentia-se a chapeuzinho vermelho indo pra casa, depois de visitar a vovó, com medo de que algum lobo aparecesse. Aquela rota era feita por ele todos os dias que resolvia tirar o atraso com uma das meninas de vinte reais. Enquanto vivia no Centro, já havia sido assaltado três vezes. Em duas ocorrências foi gravemente ferido, na maioria das vezes por corte. Mas é o medo que move as pessoas. O que ele faria se não tivesse dando uma de observador daquela cidade morta? Trabalhando em um telemarketing, sendo xingado o dia todo? Outra opção seria roubar também, causar algum choque na sociedade e terminar morto pelas mãos de um policial.

No seu quarto, alívio. Chegou inteiro e com várias coisas pra fazer. Atualizar o blog com tudo que aconteceu durante o dia, ler emails, responder mensagens de redes sociais. Assistir putaria. Uma noite qualquer. Só que não. A chegada de uma mensagem via email foi bastante interessante. Um contato no jornal local dizia que alguém tinha dado entrada no hospital sem as duas pernas e um dos braços. A mulher, coitada, estava somente acompanhada por seu cachorro. O observador da desgraça só sentiu mais animação. Um acerto de contas com uma boca de fumo? Um marido louco, enciumado por algo que nem chegou acontecer? Infinitas possibilidades.

Assim que o sol raiou, Ricardo já se esgueirava pelo hospital em busca da mulher. Com a lotação dos hospitais, não era nada difícil encontrar alguém com tal descrição pelos corredores. Assim que ficou cara a cara com a moça, Ricardo sentiu um arrepio com a frieza que ela olhava para o teto. Como se tivesse aceitado aquilo que fizeram com ela, como se merecesse. A humanidade passa milhares de horas estudando extraterrestres, a natureza, mas o curioso é como não passam mais tempo estudando nós próprios.

O que faz uma pessoa cometer um crime? Sua vida até aquele momento do ato? O que faz elas aceitarem tal julgamento? São tantas perguntas e Ricardo só conseguia pensar em como pegaria aquele papel que ela segurava tão forte. Na verdade não foi difícil, arrancou sem muito esforço das mãos na moça que gritou até ele sair do corredor.

Um endereço, nada mais. Ricardo conhecia o lugar. Uma rua cheia de vagabundos, levaria provavelmente para a morte se ele seguisse. O melhor seria esquecer e continuar sua vida de observador por aquela cidade perdida.

Mas a curiosidade não só matou o gato, como também o dono. Um sentimento de euforia começou a tomar conta do corpo do nosso investigador. Várias ideias começaram a aparecer de súbito em sua mente. E se ele tentasse juntar as fotos que ele tirou da mulher, sem pernas e sem braço, com algo que ele descobriria no endereço? A polícia provavelmente deixaria aquela moça de lado, já estariam conformados que foi acerto de contas. Será que seria nesse momento que nosso observador finalmente viraria um investigador? Desses que vemos em livros bestsellers, com cabelo cheio de gel, bonito e com vários desafios? Quem dera.

Caminhou até chegar uma rua antes da prometida. Analisou. Vagabundos armados até os dentes. Uma boca de fumo, acertou na mosca. Algumas fotos foram tiradas, alguém dê um beijo em quem criou o zoom. O planejamento começava agora: entrar fingindo que tava afim de dar uns trago, tirar fotos, sair. Melhor que isso impossível, pensou, riu. Por mais besta que o plano seja, era morte na certa. Era isso mesmo que queria fazer? Precisava de uma foda.

Já que a situação era diferente dos outros dias, resolveu pagar o dobro. Gozou bem rápido com as duas de joelho na sua frente. Um homem gozado é mais inteligente que um de pau duro. Sua vida era uma merda, passava suas manhãs e tarde vendo gente morta e postando em um blog furreca. Por mais que muita gente acompanhasse seu trabalho, no fim do dia, antes de dormir, quem parava pra pensar que merda estava fazendo da vida, era só ele.

Aquele cheiro de mofo na parede do puteiro definiu exatamente o cheiro da sua vida. Será que é nessa etapa que alguém enfia uma bala na cara da sua mulher ou filha? Claro que não, não era burro suficiente pra pensar algo assim. Sabia que as pessoas cometiam crimes, violência, o que fosse, por algo mais além de uma simples explicação. O cérebro é uma coisa fudida, se você tentar decifrar, vai acabar mais fudido ainda.


No caminho pra casa, presenciou mais duas mortes nas ruas. Os policiais, acompanhados da perícia, tentavam em vão descobrir o que tinha acontecido. A chegada no quarto foi bem direta: cama, dormir, acordar. Já nos primeiros raios do sol, Ricardo pensava no que faria. Deixou sua carteira em cima da mesa, fez o mesmo com o celular. Levou somente sua câmera portátil.


Assim que chegou há uma distância considerável do local que estava descrito no papel, tirou mais fotos.“Ô tio, descola um pra mim também”, um guri pediu ao ver Ricardo se aproximar da entrada da boca de fumo. O rapaz armado na entrada encarava nosso investigador com uma desconfiança aparente. Por mais que Ricardo tentasse parecer tranquilo, seu coração não batia, dava pulos de nervosismo. Só acenou com a cabeça para baixo, de modo que cumprimentasse o porteiro sem falar nada. Ele fez o mesmo, abriu espaço para entrar. O desgraçado conseguiu. Nosso investigador finalmente dava seus primeiros indícios de aventura iniciada com sucesso.

A violência que você vê na TV e Ricardo via nas ruas também estavam presentes lá dentro. Mesmo o rapaz da portaria ter apontado para onde era o caminho, o destino, não, a sede de aventura de nosso investigador, levou para o lado contrário. Ao parar na frente de uma porta entreaberta, escutou gritos de uma rapaz que implorava por sua vida. “Eu vou pagar amanhã, sem falta”, outro soco, dessa vez não levantou. Dizem que cada lugar tem seu próprio inferno, Ricardo estava ciente disso, e o seu fedia a maconha.


“Vai dar uma de louco?”, perguntou o guarda de antes, que havia perseguido Ricardo pelo corredor que tinha escolhido errado de propósito. Correu, até dar de cara com a parede. A porta da esquerda foi a melhor opção, já que estava aberta. Arrastar a mesa para a porta não foi nada fácil, já que a desgraça pesava bastante.

Depois de bastante esforço, o brutamontes do outro lado da porta não conseguiam abrir. Silêncio. Risada. Ao olhar pra trás, Ricardo tem uma visão vinda de um filme de zumbis. Um velho sem camisa, vestindo somente um calção que mal cobria suas coxas. O bastante idade segurava uma sirigina, onde só Satã sabe onde ele já havia enfiado. Sem aviso prévio, o senhor avançou em direção a Ricardo, apontando a seringa na sua garganta. Sem muito esforço, a esquiva foi perfeita suficiente para fazer o velho bater de barriga na mesa que segurava a porta. Grito de dor, chute lateral de Ricardo, o senhor caiu. Analisando rapidamente o quarto, a única saída aceitável era a janela.

Se um tiro não tivesse atravessado a porta e pegado na sua perna, sua fuga já estaria garantida. Seu não aguentaria pular do segundo piso, ainda mais com a perna ferida, pensou. E por mais que arriscasse, o que aconteceria era ficar deitado do lado de fora enquanto os viciados cuidavam do resto. Tinha que lutar. Agarrou a seringa do velho que estava desacordado. Segurou com força enquanto esperava a entrada de pelo menos uns três rapazes naquele quarto. Assim que a porta foi arrombada, o guarda que estava na entrada da boca de fumo já apontava a arma para sua testa. Lutar contra isso? A seringa caiu no chão, a coronhada na orelha esquerda foi avassaladora. Desacordou.

“...um policial não seria burro de entrar aqui, sua anta!”, primeira coisa que escutou amarrado na cadeira. Uma sala fechada, tomada pela fumaça da erva maldita. Ricardo falou a verdade para o cara que parecia ser o manda chuva dos maloqueiros. Mas ele não acreditou. Por mais que nosso investigador aguentasse duas putas, ele não era tão resistente assim. Cada soco doía até a alma. Para sua sorte, um drogado que estava no canto da sala, levantou do nada e começou a gritar. Um dos guardas tentou jogar ele de lado, mas foi em vão. O cara avançou em cima do rapaz armado com uma força fora do normal. Os outros dois guardas que estavam na sala se levantaram assustados, parece que o drogado deu uma de super homem que se chapou de kriptonita, mas deu efeito reverso. Mas nosso super herói gaúcho não segurou as balas que levou no peito. Trocou a vida por uma chapada.

A sorte do nosso protagonista não parava por aí, assim que os tiros cessaram, sons de sirene, gente correndo nas ruas. Parece que tanto alarde tinha atraído os porcos, como os bandidos diziam. “Bora cara, deixa esse merda aí, pega o dinheiro e vai!”, essa frase foi um alívio para os ouvidos de Ricardo. Mas que amontado de merda, pensou. Hematomas no rosto, cortes na perna, uma experiência que o desgraçado levaria pra sua vida miserável. Foi levado preso junto de uma dúzia de viciados. Os reais responsáveis daquela zona de guerra haviam fugido.

Ricardo demorou um dia inteiro para convencer os policiais de que não era ninguém, somente estava lá pra fumar, fecha aspas. Não se importava em mentir para a lei porque nem ele sabia o que estava fazendo ali mesmo. Por mais que tentasse colocar na cabeça que queria um pouco de aventura, por mais que tentasse, a vida sempre dava um jeito de voltar para a mesmice. Dedicaria a vida toda a relatar a violência urbana das ruas em seu blog de merda.

“Rezem pelo Senhor!”, gritou um homem que segurava a bíblia em uma das mãos. Todos que passavam por ele na rua, olhavam de lado. No meio ao tanto de violência que nos rodeia, a religião realmente é uma saída, uma escapatória. Qualquer meio de livrar nossas cabeças de preocupações é bem vinda, mas não pensem que isso vai livrar todos do mal. Era assim que Ricardo pensava e por isso iria continuar sua vida mesquinha. Relatar mortes, sequestros, o que quer que fosse, era o que ele sabia fazer. Investigadores só existem em filmes, séries, quadrinhos, o que for. Essa é a vida real, nua e crua.


Não muito longe do desconhecido que clamava pelo senhor, um velho foi assaltado e violado. Sua vida foi tirada por uma carteira que sabe-se lá quanto de dinheiro tinha dentro. Algum tempo depois, na rua de cima, uma filha se perdeu da mãe, ou foi abandonada? Até a impressão desse conto, sua mãe ainda não foi encontrada. O que vai ser dessa menina quando crescer? Mais uma vítima do sistema que é a vida? Sorteada da merda, teve o azar de não nascer em família rica e provavelmente vai passar a vida toda se drogando, culpando a mãe que sumiu na sua infância. Ou não. Ela pode crescer saudável em sua nova família, estudar em uma escola pública e fazer uma faculdade que sua família possa pagar. O que separa essas duas garotas, uma puta com a vida e a outra conformada com a vida?


E se, por algum milagre, a violência acabasse? O que Ricardo faria da vida? Não sabia. Pra falar a verdade, o dia que a violência acabar, vai ser no dia que o mundo acabar, porque não existe selvageria sem as pessoas.


Fim.





conto escrito por

Douglas Barres
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 06 - A Última Vez

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Antologia de
Vários Autores

Capítulo 06 de 09
"A Última Vez"
J.F. Martignoni


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Depois de dez horas de trabalho braçal, desmontando, limpando, organizando vendendo e instalando peças em um ferro velho que ficava isolado da cidade numa entrada de terra sem identificação na rodovia que ligava a cidade ao município vizinho, eu estava exausto. Era um trabalho desgraçado, sem carteira assinada, perigoso e muitas vezes me deixava questionando a legalidade de tudo o que fazia. Eu trabalhava junto com outros, ambos já haviam passado seu tempo no ambiente carcerário brasileiro. Nada grave, um se envolveu em uma briga em uma casa noturna e quase matou o adversário com socos, joelhadas e chutes; e o outro foi parado em uma blitz bêbado e com algumas gramas de cocaína dentro do veículo. 


Meu patrão não realmente sabia meu salário ou não me dizia, sempre que visitava o lugar em que trabalhávamos me oferecia dinheiro e anotava em vales. Ele pedia quanto eu queria, mas a não ser em casos de extrema urgência eu apenas esperava ele dizer um valor e aceitava. Este também tinha uns processos e quase foi preso, mas não tenho nem ideia do que ocasionou isso.


No meio do galpão de madeira em que eu trabalhava haviam dois pit bull amarrados a motores completos que estavam a venda, quase enfartei a primeira vez que vi um enquanto me dirigia ao banheiro e duvido muito que algum assaltante ouse passar por eles, mas no final das contas eram uns amores extremamente dóceis.


Foi o trabalho que consegui depois de diversos erros nas escolhas profissionais, muita falta de motivação, ego grande demais, que gerou pouco esforço em me manter nos diversos empregos que tive. No auge da minha boa vontade eu consegui ser gerente de um dos setores de uma empresa que vendia joias, entretanto como meu salário em boa parte era comissão ou bonificação por aumento nas vendas, acabei sendo demitido por ganhar demais. Isso acabou com toda e qualquer vontade de crescer que eu poderia ter em qualquer lugar.


Entretanto gosto de fantasiar neste trabalho no qual me encontro, pois realmente parece aqueles locais em que os mafiosos destroem os carros das pessoas que matam, eliminando as evidências. Claro que a maior parte de tudo isso vem apenas da minha mente fértil observando este galpão mal iluminado e sujo, os cachorros de guarda, a maneira que recebo...


Enfim, eu estava exausto, tudo que eu queria era assistir a final do Campeonato Brasileiro, tomar uma cerveja e comer uns amendoins. Quando se trabalha com serviços que você não pode errar, ou o cliente sempre achará que você deve algo pra ele. Não importa se você concerte o erro, devolva o dinheiro ou qualquer outra solução viável. Você errou com ele, ele tem prioridade de prazo, pagamento e mesmo quando estiver fazendo o melhor possível e já ter gastado comprando peças para resolver o problema deles, eles ainda ameaçam troca-lo pela concorrência. Para piorar o mercado está em crise e você precisa desse filho da puta, e este é o meu caso, não que eu receba comissão nem nada, mas se não vender bastante além de uma boa mijada, posso ficar sem emprego. Ai o motivo da minha jornada de dez horas de trabalho nesta quarta-feira. As vezes eu me perguntava como minha vida acabou assim, mas isso era irrelevante.


Decidi parar no caminho da minha casa e assistir o jogo em meio a semiconhecidos e completos estranhos, num boteco vagabundo, daqueles com donos mal humorados, comida gordurosa e cerveja barata e gelada. Infelizmente ao me aproximar pude perceber que o lugar estava lotado em virtude de jogo e tive que estacionar na rua debaixo, e ter uma boa caminhada até o estabelecimento.


- Uma original e uma porção de amendoins. – Gritei umas três vezes para o Beto, dono do boteco e único atendente do barzinho, a outra funcionária era sua esposa que fazia tudo na cozinha. A maioria da pessoas ali já estava bem alterada e falando muito mais alto do que o necessário, precisei gritar para ele uma quarta vez.


Vocês devem estar pensando por que não estou assistindo o jogo em casa, com minha família, ou até curtindo minha mulher e filhos. Que sou um péssimo pai e marido, como todos os outros. Poucos sabem que precisamos desestressar e que mesmo amando nossa família, eles não são os melhores em nos dar paz. Você entra em casa e tem que ouvir de como a vizinha foi uma vaca com a outra vizinha, ajudar o filho com a lição, cortar a grama, arrumar um cano... Quando percebe está caído na cama, sem forças para transar ou se matar. Sim você continua pensando em suicídio depois dos trinta, com família e filhos, principalmente por eles dependerem tanto de você.


Minha mulher acha que não tenho amigos, talvez ela esteja certa. Eu tenho a turma para jogar futebol, a turma para assistir futebol, a turma do poker e a turma da sinuca. Não converso com nenhuma pessoa desses grupos sobre algo que não seja organizar o jogo e a janta, sobre como foi o jogo durante a janta e como estava a janta. Muitos deles eu nem sabia nada sobre a vida, nem o que faziam, o que viviam, o que gostavam além daquilo que fazíamos juntos. Pensando agora boa parte eu nem sei como ou quando começaram a sair com nosso grupo. Hoje eu não queria assistir o jogo com o grupo de assistir jogo, pois as jantas estavam caras e eu estava apertado. Minha mulher não gosta de nenhum deles e não quer que eu saia com nenhum deles. Quando nós saímos juntos, saímos com outro casais. Ou melhor dizendo com suas amigas que acabaram casando, ai ela conversa com as amigas, e eu sou empurrado para quartos com televisões ligadas em canais de esporte com homens que nem sempre sei o nome para interagir sem incomodar. Me sinto uma criança grande.


- Tá na mão. - disse o garçom, enchendo meu copo e largando a garrafa e a porção em cima da mesa.


Os times aqueciam e a torcida cantava ininterruptamente. No bar todos estavam com os olhos focados na tela, esperando o momento de xingar alguém, o que não demorou nada. Logo que o jogo começa o que parecia um clássico se torna um massacre, depois de um gol marcado em uma imperdoável falha do goleiro que erra o passe para o zagueiro logo nos primeiros dez minutos. Considerando que o time já precisava ganhar com dois gols de vantagem pela derrota em casa, isto deixou a todos desesperados, compensando a falta de chutes à gol com faltas desnecessárias. Três jogadores expulsos nos primeiros quarenta minutos e outros dois gols da equipe adversária que tinha oitenta por cento da posse de bola. Esperei o apito que dava fim ao primeiro tempo para ir ao balcão fechar a conta, estava totalmente broxado e só queria seguir o rumo de casa antes da passeata e dos diversos bêbados que dirigem como se estivessem indo tirar a mãe da forca.


- Que jogo de merda, não? – diz o garçom.


- Nem me fale, nos meus dezoito anos nós tínhamos que lutar por vagas nos times enquanto Zico, Pelé, Garrincha... Todos esses caras estavam lá dando um show e jogando com raça, ganhando menos de um décimo que esses moleques hoje em dia ganham para fazer pose pras câmeras. – Desabafei.


- Você jogava bem? – perguntou Beto.


- Eu fui profissional no time da cidade. Nós trabalhávamos de dia e treinávamos de noite. Fui convidado para jogar no Palmeiras, mas minha mãe não deixou. Na época não se ganhava nada, meu salário como vendedor numa loja de departamentos era maior que o que eu ganharia como atleta profissional e eu tinha que sustentar a casa, meu pai gastava toda a aposentadoria com bebida e prostitutas... Fora que eu era um vagabundo, ficava amarrando e desamarrando as chuteiras durante os treinos para não ter que correr. Não me ajudei e ninguém insistiu muito em me levar jogar, sabiam que eu ia ser aqueles que não duram nada por que estão sempre de ressaca. – respondi.


- É uma pena. Se você parar para pensar, quantos foram ídolos e hoje estão na miséria, abandonados por seus “amigos,” alguns até são mendigos de rua. Se bem que meu vizinho que era veterano da Segunda Guerra Mundial teve que trabalhar como pedreiro até os oitenta anos para não morrer de fome.


- É. Não adianta, este é um mundo de merda. – Não estava afim de ficar ouvindo tragédias, peguei meu troco e segui em direção ao carro.


Era um longo caminho de volta, a sensação térmica devia ter baixado uns dez graus desde a hora que cheguei, fui todo encolhido arrependido de estar de bermuda e chinelo de dedos. Nem olhava para o lado, seguia caminhando o mais rápido possível, pois só queria ir embora de uma vez.


Quando cliquei no controle para destrancar o carro percebo que ou as portas não haviam trancado antes, ou não destrancaram agora. Eu estava com esse problema a meses, mas nunca tinha dinheiro para arrumar e nem incomodava tanto, precisava trocar a cama do meu quarto com urgência, isso era o de menos. Tentei abrir e de fato não havia destrancado, botei a chave para abrir a porta manualmente e senti o cano uma arma encostar nas minhas costas, fiquei paralisado.


- Tu vai pro porta mala, o gordão. – disse para mim com uma voz agressiva, mas quase que sussurrando em meu ouvido.


Sempre imaginei que reagiria, que seria o herói do meu próprio filme de ação, mas não. Fui um covarde como fui durante toda a minha vida. Sem coragem de falar para meu antigo patrão que os outros gerentes desviavam e por isso na folha ganhavam menos do que eu, sem coragem de abandonar a casa da minha mãe para seguir meu sonho de ser um jogador de futebol, sem coragem para acabar com um relacionamento que já estava desgastado a anos com a amiga da mulher por quem fui apaixonado durante todo o ensino médio e nunca tive coragem para me declarar... Como sempre, sem coragem para nada. Fui amarrado ali mesmo, no meio daquela rua de calçamento mal iluminada, na quadra debaixo do bar que frequentei minha vida toda simplesmente por ser o mais próximo. Não fui capaz nem de ir aos melhores e provar as comidas e as bebidas que me recomendavam, estava fadado a mesmice pelo medo da mudança e a absoluta falta de vontade.


Enquanto era amarrado, pouco antes de me jogarem no porta malas do meu próprio carro, qual estava sujo a meses, pois nunca tive vontade de limpar. Reparei que estavam em dois, nenhum usava máscara, mas mesmo assim não consegui identificar seus rostos. Discutiam sem parar e se moviam rápido demais, possivelmente por um misto de medo e adrenalina parecido com o que eu sentia. Logo depois de me jogarem para dentro do porta malas como um saco de lixo, arrancaram violentamente com o carro e partiram em uma velocidade desesperada para longe daqui. Eram diversas freadas bruscas e aceleradas cantando pneu que me faziam bater em todos os cantos de onde me encontrava, com as mãos amarradas as costas não conseguia nem defender a cabeça das pancadas, e batida de testa, nuca ou face em intervalos de segundos. O que me deixou atordoado, zonzo e com uma forte vontade de vomitar. O que acabei fazendo em cima de mim mesmo antes da viagem chegar ao fim.


- Vamo mata o gordão, faze o que com esse bosta? – disse um dos assaltantes.


- Mata pra que? Vamo larga ele no mato e já era. Esse carango vai dá alta grana mano. – respondeu o que rendeu.


- Sei não, deixamo ele vivo dá vinte minuto tem polícia atrás de nós.


- Relaxa mano. Tá tudo esquematizado, o Paulão já tá esperando nói lá na Cabana Show, desmanchamo o carro e já era. Ninguém nunca vai sabe de onde vem as peça co número raspado. Até esse burro ai se solta das amarra ou alguém achar ele onde vou deixar já gastamo o dinheiro dessa caralha.


- Ainda acho que tinha que mata ele.


- Cala a boca, porra. Qué fode cum nói? Tá ligado que tipo, carro roubado é um lance. Assassinato é outro. Tá ligado? Os cara vão caça nói. Ai fodeu. Deixa ele vivo, que ai vão bota procura só o carro e nunca vão acha nada. Crime perfeito.


Enquanto isso eu continuava batendo a cabeça, nuca, rosto, costas, joelhos nos saltos e freadas, e me vomitei duas vezes como falei que faria. A situação estava tão ruim ali que eu só queria ser largado no mato e deixar que ficassem com o meu carro. Foda-se o carro, eu só sair desse inferno, não prestaria nem queixa, afinal nem seguro eu tenho nessa bosta.


Depois de mais algum tempo de viagem que pareceu horas, sinto que o carro sai do asfalto e entra numa estrada de chão reduzindo a velocidade e ficando um pouco menos terrível apesar do cheio do meu próprio vômito e das dores que já estavam presentes em boa parte do corpo sem pausas. Finalmente para. O porta mala se abre.


- Meu deus ele se vomitou todo, puta que pariu que fedor caralho.


- Anda tira ele logo dali.


Era uma escuridão total, agora sim não tinha mais chances de ver nenhum deles. Um que estava a direta como se fazendo vigia e segurava um flash de celular em mim para que o outro pudesse me tirar do carro e me despejar por ali seja o que fosse aquele lugar. Fui jogado no meio do que eu esperava que fosse barro. Não sabia onde eu estava, não ouvia carros ou qualquer som urbano. Na verdade nada além da conversa daqueles homens desconhecidos e alguns mosquitos que insistiam e pousar em meu ouvido.


A adrenalina e o medo daquele momento estavam estranhamente passando, não por uma segurança em estar ali jogado o que poderia ser fatal de diversas maneiras por si só. Possivelmente este seria meu fim, nunca conseguiria me soltar ou encontrar ajuda, eu morreria de inanição, ou picado por uma cobra, devorado por algum animal selvagem. As chances contra mim eram imensas, e eu sabia disso, tive um momento de tranquilidade e clareza, uma espécie de total rendição e aceitação do meu destino.


- Vamos deixar ele aqui?


- Sim só larga ai e vamos embora.


- Vamos ao menos dar uns chutes nele para ele ficar desacordado.


- Cala a boca mano, vamo pro carro agora. O Paulão está nos esperando.


Neste instante parei pare refletir o que ainda não havia chamado minha atenção: Paulão era o nome do meu chefe, e claro que as acusações que ele recebia era de ter peças sem nota fiscal, o que ele alegava ser apenas desorganização e perda de documentos. Eu podia estar apenas delirando agora, e tudo ser uma grande coincidência, ou ironicamente outro cara iria ser mal pago para desmanchar o meu carro, por não ter um emprego melhor e nem entender o que se passa na empresa. Estes caras talvez eram também contratados para roubar os carros e era tudo um grande esquema. Ou eles podiam forçar o Paulão a comprar e ele ser uma boa pessoa que se meteu em uma fria, comprando uma vez por precisar urgentemente do dinheiro e nunca mais ter conseguido parar. Ou quem sabe nunca nem quis comprar e só foi forçado por estes bandidos como fui forçado a vir parar aqui. Também pode ser que eles nem estejam falando do meu chefe, afinal quantos homens no mundo tem o apelido de Paulão?


Não ouvi seus passos ganhando distância, pois estava distraído demais com meus próprios pensamentos e teóricas, o que foi abruptamente cessado com as portas do carro batendo forte e o motor de partida sendo acionado. Eu estava de volta ao presente e pensando no que realmente importa, que é o que diabos farei depois que eles forem embora?


Eu estava com os braços e pernas amarrados, deitado de lado esperando que eles fossem embora para tentar me soltar, por alguma razão neste exato momento achei que era uma possibilidade real. Todavia, antes do carro arrancar a porta se abriu, desta vez ouvi os passos se aproximando de mim. O homem ligou o flash do celular e mirou-o em mim, eu só via aquela luz, as luzes vermelhas dos faróis traseiros do carro e uma lua minguante.


- Cê tá indo aonde? – gritou o bandido que ficou no carro.


- Peraê. – respondeu o outro.


Ouvi dois disparos e senti como se duas brasas atravessassem meu corpo, era uma sensação estranha. Havia dor obviamente, mas não era exatamente como eu imaginava que seria, sentia algo mais como uma queimadura. Era estranho mesmo.


- Pra quê mantar ele? – berrou enfurecido o que estava no carro.


Eu meio que já havia aceitado isto desde que entrei no porta-malas, então fiquei em um silêncio apático. O sangue quente que saia de mim encharcava minhas roupas, e junto com ele um frio febril tomava conta do meu corpo. Ouvi os passos se afastarem, a porta bater novamente. Vi as luzes do carro se afastando até não conseguir ver mais nada.


conto escrito por

JF Martignoni
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.