Violência Urbana I - Capítulo 07 - O Assassinato de Estevão Molina

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Capítulo 07 de 09
"O Assassinato de Estevão Molina"
Hikaru


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Gilberto Molina pisa o asfalto quente e caminha sem pressa. Avista adiante um caminho de pedras em meio a um gramado mal cuidado e também alguns bancos de pedra. Mais ao longe, um coreto se ergue com falsa imponência. Uma barraca simples se situa a poucos metros.

Detrás do balcão da barraca, uma pessoa de meia-idade observa.

- Pensei que não o veria tão cedo.

Gilberto se aproxima e debruça sobre o balcão. Pega uma garrafa.

- Me dê uma dessa.

O atendente se vira e estica o braço, pegando a bebida.

- O que traz você aqui?

- Negócios.

- Steve foi morto uns dias atrás...

Gilberto olha bem fundo nos olhos do atendente.

- Não sou tão descuidado, Guido.

- Mas é prudente?

Gilberto continua encarando Guido enquanto leva a garrafa outra vez à boca. Em seguida, tira uma nota do bolso e deixa sobre o balcão.

- Você fala demais.

O homem atravessa o gramado, indo em direção a um dos bancos de pedra. Ao se acercar do assento, porém, seu olhar é atraído por uma visão no outro lado da praça.

Uma menina, de no máximo quinze anos, vem devagar, cabisbaixa, carregando uma mochila nas costas. Ela se dirige para o mesmo banco de Gilberto, mas, ao notar a presença do homem, desvia-se rapidamente.

Gilberto não a conhece, mas, por algum motivo, decide prestar atenção nela.

Ele vê quando a menina se senta em outro banco, próximo ao asfalto, e descansa a mochila no chão. Ela evita olhar para frente e brinca com os fios de cabelos loiros. Vez por outra, ajeita os óculos.

Gilberto dá de ombros. Provavelmente mais uma dessas jovens problemáticas que resolveu sair de casa. Acende um cigarro. Neste instante, escuta um ronco de motor.

Um veículo desce a toda velocidade. Gilberto olha para a barraca, e nota a reação preocupada de Guido. A menina continua olhando para o chão. De repente, o carro freia ao lado dela. A porta lateral se abre e dois braços fortes se projetam dali, agarrando a menina e a puxando para dentro do carro. Em seguida, o veículo arranca, mais rápido do que quando viera.

Gilberto e Guido se entreolham por um instante e, no instante seguinte, Gilberto está correndo em direção ao seu carro.

- Gilberto! Não seja idiota, volte aqui!

O homem não dá ouvidos. Agarrando o volante com força, dá a partida e dispara.

O carro de Gilberto é um modelo antigo. Por isso, mesmo que acelere tudo que possa, é impossível alcançar o carro da frente.

- Que droga! Eu já devia ter trocado essa lata velha!

O homem engata a marcha e pisa fundo, mas a distância entre os dois veículos não se altera. Gilberto suspira e olha para fora.

Montanhas, árvores e postes passam um atrás do outro com grande rapidez, em sentido contrário, e pessoas de bicicleta parecem estar pedalando para trás. As casas começam a rarear e a dar lugar a pastagens.

Gilberto conhece aquele lugar. Sorrindo, vira o volante e conduz o carro para uma dessas pastagens, entrando numa estradinha de terra que passaria despercebida ao motorista menos atento.

Kuroda olha pelo retrovisor.

- E aí, cadê o cara?

- Sumiu.

Ramalho olha para o vidro de trás, preocupado.

- Me deu a impressão de ser o Molina.

- Molina?

O homem meneia a cabeça. Kuroda engole em seco e faz menção de pisar o pedal do acelerador. Ramalho o detém.

- Não precisa se preocupar. Ele não tem provas.

No banco de trás, calada, Júlia escuta a conversa dos bandidos. Não faz ideia do que estão falando e não demonstra nenhum interesse. Ao seu lado, Gomes a mantém sob a mira de uma arma.

- O que faremos com essa franguinha aqui?

Ramalho se vira novamente e passa os olhos sobre Júlia.

- Não sei. Pensei que a gente podia se divertir um pouquinho.

Kuroda entende e arregala os olhos. Júlia também. Ela olha para Gomes e depois para Ramalho, a princípio sem dizer nada, mas por fim, fala num fio de voz:

- A polícia vai vir atrás de vocês ...

Gomes explode numa gargalhada e, depois, tira um distintivo do bolso.

- Está bom pra você?

Júlia volta a se calar, enquanto Gomes e Ramalho continuam rindo. Apenas Kuroda não participa da zombaria, continuando a dirigir, apreensivo.

O veículo sai da estrada principal e envereda por uma trilha no mato, até parar numa espécie de clareira. Ao longe, ouve-se o murmúrio ritmado de águas batendo nas pedras.

Júlia se encolhe no interior do veículo.

- Calma, garota, nós não vamos lhe fazer nenhum mal. - diz Gomes. – Ainda.

Ele coloca a pistola no rosto de Júlia e pressiona o cano na pele dela. Julia comprime os olhos, esperando o tiro.

- Para com isso, Gomes.

- Quê que há, Kuroda? Tá gostando dela?

- Eu acho que é isso – zomba Ramalho, abrindo a porta do carro. – Tá apaixonado pela franguinha.

Kuroda não responde. Gomes guarda a pistola e também sai do carro. Ele dá a volta e abre o porta-malas, de onde tira uma mochila de viagem.

- Eu e o Ramalho vamos lá negociar com o cara. Fique aqui com a garota.

Kuroda novamente não diz nada, apenas observa os comparsas se afastarem para fora da clareira, sem pressa. O motorista tira a chave da ignição e bota no bolso.

Julia também está quieta.

- Qual é o seu nome, menina?

Ela vira o rosto.

- Eu não concordo com o que eles estão fazendo. Estou aqui a contragosto.

Ela permanece sem encará-lo. Kuroda suspira.

- O Capitão Gomes está me chantageando. Eu ... – reluta. – Eu matei um homem sem querer.

Julia dá uma olhada de canto de olho para ele e, por fim, pergunta:

- Sem querer?

- Sim. Eu sou padeiro. Um bandido entrou no meu comércio atirando e eu tentei desarmá-lo tacando uma faca. Só que eu errei e atingi outro cara na barriga. O capitão Gomes viu tudo.

- E quem era esse outro cara?

Kuroda demora um pouco pra falar.

- Estevão Molina.

Júlia franze a sobrancelha.

- Não conheço.

- Era um dos chefões do crime organizado. Rival do Gomes e do Ramalho. Era cliente da padaria, não mexia comigo. Ia sempre lá de manhã tomar um café e bater papo. Um cara maneiro.

- Vocês eram amigos?

- Não, amigos não. Mas definitivamente não era meu inimigo.

Júlia esquece um pouco a situação em que se encontra e se debruça sobre o encosto do banco da frente.

- Pensando bem, você não parece mau.

Kuroda sente o rosto queimar.

- Obrigado.

- Me deixa ir embora.

O homem abaixa a cabeça.

- Eu deixaria se pudesse.

- Eles vão me matar, não vão?

Kuroda não responde.

- Eles vão se aproveitar de mim e, depois, vão me matar. É isso?

- Sim – o homem parece contrariado.

- Você não é bandido, Kuroda. Não se envolva em mais um crime. Deixa eu sair.

- Não posso. Você viu o nosso rosto, escutou o que viemos fazer. Se você sair, vai nos denunciar!

- Eu juro que não conto pra ninguém!

Kuroda dá uma risada nervosa.

- Por que a gente não foge junto, então?

- O que? – o homem olha para a menina, incrédulo.

- Minha mãe me expulsou de casa. Eu não tenho pra onde ir. Por isso eu estava naquela praça, com a mochila. Ninguém vai dar a minha falta.

- Está falando sério?

- Sim! Eles nunca vão nos encontrar! Mas temos que sair agora, Kuroda. Antes que eles voltem.

Kuroda parece gostar da ideia.

- Tá certo. – ele tira a chave do bolso e recoloca na ignição. Porém, antes que o carro se desloque, um cano de revólver é apontado para a cabeça dele.

- Vai a algum lugar, Masami Kuroda?

Gomes e Ramalho chegam num local próximo à praia. Está deserto, a não ser pela presença de quatro homens de preto. Um deles segura uma maleta.

- Demoraram!

Gomes deu de ombros. Ramalho apanha a mochila e a coloca no chão, diante deles.

- Podem verificar.

Um dos homens se aproxima e abre a mochila. Neste momento, porém, policiais saem do mato, gritando:

- Pegamos, Coronel!

Na mesma hora, Gomes aponta a sua arma para Ramalho.

- O que é isso, cara?

- Foi mal. É você ou eu. – e atira.

Os homens de terno, entendendo a manobra, atiram em Gomes, mas o capitão se esquiva e atinge um deles. O da maleta corre, mas é acertado pelo Coronel. Só restam dois, que se rendem.

O Coronel se aproxima.

- O que faz aqui, Gomes?

- O mesmo que o senhor, Coronel. No meu caso, eu me infiltrei na quadrilha para apanhá-los.

Os bandidos que sobraram se entreolham, confusos. O Coronel faz um movimento e eles são algemados. Gomes olha para o corpo de Ramalho.

- Bem, preciso ir. Minha missão acabou.

O Coronel o detém por um instante.

- Saiba que estou de olho em você, capitão.

Gomes o encara.

- Tudo bem. É o seu dever.

Os dois ficam parados, e, por fim, o Coronel o deixa ir. Os policiais permanecem no local, averiguando.

Júlia e Kuroda estão paralisados.

- Não atire, por favor. Eu não queria matar o Estevão.

- Eu sei disso.

Kuroda olha para o homem armado.

- O que foi que disse?

Gilberto Molina se certifica de que não há ninguém por perto.

- Eu sei o que aconteceu. Meu irmão entrou na padaria no exato momento em que um bandido começou a atirar. Acredito eu que ele pretendia pará-lo. Mas você jogou a faca e acertou Steve.

Kuroda baixa a cabeça.

- O Capitão Gomes entrou em seguida e você se escondeu atrás do balcão, com medo de ele ter visto a cena. Gomes trocou tiros com o bandido, o matou e, aproveitando a oportunidade ... – Gilberto cerra o punho – deu o tiro de misericórdia no meu irmão.

Kuroda parece surpreso.

- Não acredito! Como você sabe de tudo isso?

Gilberto suspira.

- Eu tenho minhas fontes.

Kuroda sente uma mistura de alívio e preocupação.

- Então, o que pretende fazer?

- Não é óbvio? – Molina sacode a pistola. – E você vai me ajudar.

- Não, não, me tira dessa – protesta o padeiro. – Eu não quero ser cúmplice da morte de ninguém!

Gilberto o empurra. Júlia se manifesta.

- Deixa a gente ir embora primeiro.

- Ninguém vai embora até que eu ponha as mãos naquele safado. Mas fica tranquila. Ele é quem vai pagar, não vocês.

Neste instante, ouvem passos.

- É ele. Está voltando!

- Eu vou pra trás do carro. Não tentem nenhuma gracinha.

Gomes chega.

- Vamos, Kuroda. Estou precisando relaxar.

Kuroda não esboça reação.

- Kuroda! Estou falando com você, imbecil!

- Eu não sou imbecil.

Gomes estranha.

- O que é que você tem?

- Onde está o Ramalho?

O capitão hesita um instante antes de falar:

- Deu ruim lá. A polícia chegou, houve troca de tiros. Você não ouviu?

- Sim, de longe. – Kuroda está calmo.

Gomes, desconfiado, olha ao redor.

- Tem mais alguém aqui?

- Tem.

Na mesma hora, Gilberto Molina sai de trás do carro com a pistola em punho. Gomes dá uma risada de desdém.

- Ora, ora, o que temos aqui. Uma conspiração.

- Não vamos perder tempo, capitão.

Um novo tiroteio se inicia. Molina atira, mas o policial desvia. Kuroda também dispara, e novamente Gomes se safa. Este atira de volta e acerta a cabeça do padeiro. Júlia dá um grito. Kuroda cai no chão, morto.

- Não! Kuroda, Kuroda!

Gomes se aproveita da situação e agarra a menina.

- Largue a arma, Molina. Senão, ela morre.

- Eu não a conheço, não me importo.

- O quê? Estou falando sério, Molina!

- Eu também – e engatilha.

Júlia fecha os olhos e espera a bala atravessar o seu corpo. Porém, no último instante, Gomes a joga no chão e sai correndo. Gilberto mira e atira. Gomes se choca contra uma árvore e fica ali, imóvel.

Molina caminha devagar até o corpo do policial e o examina de longe. Gomes não esboça nenhuma reação. O irmão de Estevão Molina saboreia a sua vingança com prazer, mas também com certo enfado. Fora muito fácil. Esperava mais adrenalina.

- Pois é, capitão. O mundo dá voltas. Dias atrás, era você na minha situação, com Steve agonizando no chão. Agora sou eu. Mas não sou covarde como você. Não vou te dar o tiro de misericórdia.

Ele se volta para Júlia, que permanece no chão, cabeça baixa, aguardando o desfecho do caso. Molina passa por ela, sem se importar e entra no seu carro. Em seguida, pensando melhor, a chama.

- Quer uma carona?

- Não.

O homem balança a cabeça e dá a partida. O carro se afasta. Júlia, então, engatinha até o cadáver de Kuroda e segura a mão dele.

- Eu não tive a chance de agradecer, Kuroda. Obrigado por tentar me salvar. – e, fechando os olhos, com raiva, promete em tom solene: - Eu vou vingar você.

Em seguida, ela pega um pedaço do vidro do carro, que se estilhaçara no tiroteio, vai até Gomes e finca nas costas do policial. Ele, que estivera se fingindo de morto, é pego de surpresa e se ergue violentamente. Júlia toma um susto.

- Meu Deus!

Gomes urra de dor e tenta apanhar o seu revólver, que está caído ali perto. Porém, com o sangue escorrendo pelo ferimento, ele começa a perder as forças e a ter a vista turva.

- Des... graça... da...

Júlia corre e taca uma pedra em Gomes. Ele continua andando na direção do revólver. Júlia taca outra.

-Eu... vou...

Júlia salta e taca uma terceira pedra. Esta acerta na testa do homem, como Davi e Golias. Já amortecido pelo vidro em suas costas, a consciência apagando, Gomes cambaleia mais alguns passos, braços estendidos a esmo e por fim, cai, pesadamente. Júlia apanha o revólver e termina o serviço.

Nesta mesma hora, uma viatura da polícia passa e, vendo a cena, estanca. As luzes dos holofotes batem na menina de quinze anos com a arma na mão, expressão assustada, incrédula do que acabara de fazer.

- Parada aí, mocinha! Não faça um movimento!

Num instinto, Júlia dispara contra a viatura. O tiro quebra o vidro dianteiro, mas não atinge ninguém. Sem perder tempo, ela corre pra dentro do mato e os policiais descem do carro, prontos para persegui-la. Porém, o Coronel, sem nenhuma razão aparente, faz sinal para todos voltarem.

De dentro do mato, Júlia Olsson observa a viatura dar meia volta e desaparecer. Ela respira, um misto de alívio e medo.

No dia seguinte, com grande pompa e salva de tiros, o corpo do capitão José Gomes é conduzido pelo cemitério. Numa grande passeata, oficiais, amigos e familiares, se reúnem para dar o último adeus ao capitão, amigo da vizinhança, morto em combate com marginais enquanto desbaratava um imenso esquema de contrabando no cais do porto.

Em outro ponto, numa cerimônia mais modesta, um pequeno punhado de pessoas assiste a um funcionário baixar o caixão de Masami Kuroda.

Um rapaz agarrado à sua mãe chora bastante.

- Porque o pai, mãe? Com tanta gente ruim pra morrer, matam logo o pai – lamentava-se o rapaz, soluçando.

- Deus sabe o que faz, filho. Chegou a hora dele.

- Que Deus é esse, que determina um jeito tão cruel de uma pessoa morrer?

A mãe não responde, nem faz questão. Está abalada demais para questões dessa natureza. Uma mulher, porém, intervém.

- Pode ter certeza, menino, que Deus não tem responsabilidade nenhuma nisso. O homem gosta de botar a culpa em Deus em tudo. Mas o que realmente acontece é que as pessoas escolhem seus próprios caminhos, sem refletir no que vai dar.

A esposa de Kuroda olha para a mulher, depois para o filho e não diz nada. O rapaz também não. Apenas continua chorando.

Escondida entre os túmulos, uma menina de quinze anos observa a cena e escuta a conversa. Concorda mentalmente. A mulher conclui:

- A memória de seu pai não foi apagada.

O rapaz a abraça, assentindo com a cabeça. A mãe continua calada. O caixão é depositado na cova. Salva de tiros, não por Kuroda, mas por Gomes. Ouve-se, de longe, o discurso de uma alta patente, louvando os feitos do capitão.

Júlia sente vontade de falar com a família de Kuroda, mas se refreia. Provavelmente, seria reconhecida. Seu retrato falado já deve estar circulando pelas redes sociais. De repente, ela olha e vê um rosto conhecido.

Gilberto Molina!

Júlia sente o ódio reacender dentro dela.

- Foi por sua causa que o Kuroda morreu – pensa a menina, fechando os olhos. – se você tivesse nos deixado sair, hoje essa família não estaria chorando!

Gilberto não vê Júlia entre os túmulos. Ele está de longe, de roupa escura, numa posição que permite ver o enterro tanto de Gomes quanto de Kuroda. A Ramalho não enterraram; parece que seu corpo ainda está no Instituto Médico Legal.

Para Júlia, perdeu o interesse ver o enterro do padeiro. Agora, suas atenções se voltam para Gilberto Molina. Está com a ideia fixa de vingança. Quer acertar as contas com ele, fazê-lo pagar pela morte do homem que poderia ter sido um grande amigo.

Gilberto, alheio aos olhares da menina, dá de costas e começa a descer as escadarias. Outra salva de tiros. Júlia se desloca, sempre atrás das tumbas, e vai seguindo Gilberto até que o vê entrando no carro dele. Atendendo a uma ideia de súbito, pega o celular e focaliza a placa do carro.

O veículo arranca e se mistura aos outros veículos que perambulam pela cidade.

Guido está no balcão, como de costume.

- Então, deu cabo do Gomes?

Gilberto, sem se preocupar com os outros clientes, faz que sim com a cabeça. Toma uma golada generosa de cerveja.

- E a menina?

- Que menina?

Guido não responde. Gilberto olha para cima, como se consultasse a própria mente.

- Ah, sim, aquela novinha. Não sei que fim levou. Recusou a minha carona.

- Ela pode te dedurar pra polícia.

- Pode. – e toma mais um gole. – Mas não faz mal. Eles já estão atrás de mim, mesmo.

Guido acha graça.

- Então, o que faz aqui, dando sopa, à luz do dia?

Molina o encara com os seus olhos penetrantes.

- Eles precisam me pegar. Não adianta só saber onde eu estou.

Um dos clientes olha espantado para Gilberto e sai de perto. Guido ri. Molina, não. Devolve o copo ao balcão e se afasta, postura altiva, peito aberto, ombros pra trás.

Ao se curvar para abrir a porta do carro, é surpreendido por um cano de revólver em suas costas.

- Agora é a sua vez, desgraçado.

Molina reconhece a voz.

- O que pretende fazer, menina? Sabe mexer nesse negócio?

- Não foi você que matou o Gomes – responde Júlia, engatilhando. - Fui eu.

Gilberto Molina tenta se virar, mas a menina pressiona a arma ainda mais em suas costas. Na rua, a multidão começa a juntar. Guido desce correndo.

- Ele já pagou pela morte do Kuroda. Falta você.

- Menina, eu não atirei no padeiro. Foi o Gomes. Você viu.

- Mas foi você que meteu a gente nisso! - grita Júlia, chorando. Seu dedo começa a tremer no gatilho do revólver. Molina tenta manter a calma.

- Olha, eu sinto muito pelo seu amigo. Eu sei o que você está sentindo. O Gomes matou o meu irmão! Mas o fato de ele ter morrido não trouxe o Steve de volta. - Gilberto sente que Júlia afrouxa a pressão da arma. - Me matar não vai trazer o Kuroda de volta.

Sirenes de polícia se aproximam da praça.

- Larga essa arma, garota! - grita Guido – Você vai se complicar ainda mais!

Júlia sacode a cabeça e, num impulso, empurra Molina de encontro ao carro. Este tenta tomar-lhe a arma e segura o braço dela. Guido sai do meio da multidão e a agarra por trás.

- Me larga!

Gilberto Molina dá um tapa no rosto de Júlia e finalmente toma o revólver. Ela cai no asfalto e se encolhe. Molina engatilha, mas Guido o impede.

- Pára, Gilberto! Não precisa disso.

- Precisa sim – e aponta as pessoas ao redor. - Todo mundo precisa saber o que acontece com quem desafia Gilberto Molina!

As pessoas se desesperam e começam uma algazarra. Uma execução à luz do dia, na frente de todo mundo! Júlia, chorando, fecha os olhos e novamente espera a bala atravessar o seu corpo.

Dois disparos.

Molina arregala os olhos, surpreso, e coloca a mão nas costas. Está ensanguentada. Guido bota a mão na boca e apara o corpo do irmão. Júlia abre os olhos, também surpresa. Mais uma vez, saiu ilesa. A multidão se volta pra direção de onde viera os tiros.

O Coronel aparece de pistola empunhada. Atrás deles, meia dúzia de policiais também armados, abrem caminho entre as pessoas. Molina, nos braços do irmão, olha espantado, sem entender o que aconteceu.

- Não se preocupe, Molina. Vamos te levar ao hospital e, com um pouco de sorte, você vai sobreviver. Homens, levem-no.

Quase inconsciente, Gilberto se deixa levar pelos policiais até uma ambulância. Guido fica ali, com Júlia. A multidão se dispersa. As viaturas vão embora.

Júlia olha para Guido.

- Obrigado por tentar me salvar.

- Não precisa agradecer. Meu irmão não é má pessoa, só tem pouco juízo. Eu cansei de avisar a ele pra não entrar nessa vida.

Júlia abaixa a cabeça.

- Eu só queria que o Kuroda estivesse vivo.

Guido coloca a mão no ombro dela.

- Tem coisas que a gente não pode mudar. - e se afasta.

Júlia se levanta e observa o dono do bar voltar para o estabelecimento. Ela pensa em como seria a sua vida se Kuroda não tivesse morrido. Balança a cabeça. Não tem como saber. Frustrada por não ter dado cabo do Molina, a menina sobe a rua em direção à sua casa, até que se lembra que sua mãe a expulsara de lá.

Decide sentar na praça. Depois de escapar da morte várias vezes, é hora de pensar em seguir a vida.



conto escrito por

Hikaru

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 08 - Sombra do Medo

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10:00 min    


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Vários Autores

Capítulo 08 de 09
"A Sombra do Medo"
Gabo Olsen


© 2019, WebTV.
Todos os direitos reservados.

Este conto foi inspirado em fatos reais.
O olhar esconde grandes segredos, opressões, medo. Eu sofria calada na minha infância. Quem poderia imaginar que dentro da sua própria casa moraria o perigo? Eu me chamo Júlia, tenho 17 anos e estou terminando o terceiro ano do ensino médio. Nunca conheci meu pai, ele foi vítima de um assalto e, ao se defender o bandido não pensou duas vezes e atirou no meu pai. Já a minha mãe, conheceu o Antônio, um frentista que se apaixonou por ela e aceitou cuidar de mim. Na infância, por volta dos meus 11 anos, enquanto a minha mãe trabalhava como faxineira na vizinhança, o Antônio consertava aparelhos eletrônicos em casa e a noite trabalhava no posto. De vez em quando, ele entrava no meu quarto, me observava e brincava comigo. Ele me pegava no colo e me acariciava, eu achava normal, mas um dia ele me pediu para tirar o vestido, eu recusei e sem repetir a pergunta, o Antônio ergueu o meu vestido a força, baixou a calça dele:

- Hoje você vai virar mocinha.
- Como assim? O que você vai fazer? - eu respondi, apreensiva.
- Você já vai saber.

Ele se aproximou de mim, retirou o resto da minha roupa e a pior sensação da minha vida aconteceu. Eu gritava, e ele falava para eu calar a boca, se não ele iria me dar uma surra.

- Escuta aqui, menina, se você contar o que aconteceu para a sua mãe, eu te mato. Você entendeu?

Eu estava em choque, não conseguia responder. Ele deu um tapa no meu rosto.

- Você entendeu, Júlia?
- Sim, entendi. Eu não vou falar nada.
- Muito bem. Agora vá tomar banho e volte a brincar.

Durante o banho eu chorava sem entender o que estava acontecendo. A partir deste dia o medo passou a fazer parte da minha vida. Ficar em casa na presença do meu padrasto passou a ser um pesadelo. Quando minha mãe chegava do trabalho, o Antônio sempre me observava para ver se eu falaria algo. Eu estava perdida, sozinha, sem poder pedir ajuda para alguém. Minha fuga foi gritar no travesseiro, desta maneira ninguém me escutava. Ao levantar eu alcancei meu diário e resolvi desabafar, coloquei no papel tudo o que eu estava sentindo.

Certo dia, na sala de aula, a professora passou uma lição e pediu que cada aluno lesse individualmente um texto. Ao passar pelas carteiras para conferir a atividade, ela parou na minha frente e viu uma marca no meu braço, eu rapidamente escondi com a blusa de frio.

- O que é isso Júlia?
- Não é nada, professora.
- Eu vi a marca. Não tem nada que você queira me dizer?

Eu fiquei em silêncio por um instante. A voz do Antônio me ameaçando ecoava em minha mente:

“Se você contar para alguém eu te mato, menina”.

O meu pensamento foi invadido com a voz da professora.

- Júlia, você não vai me responder?
- Anteontem acabou energia lá em casa e eu bati na cômoda. - respondi, nervosa.
- Certeza que foi isso? - perguntou desconfiada.
- Sim, professora.

Ela me encarou e seguiu seu rumo. Respirei fundo, abaixei a cabeça.

- Essa foi por pouco.

Durante o intervalo a Cidinha sentou do meu lado e entreguei um pedaço do meu lanche à ela.

- Obrigada por dividir o lanche comigo. Ontem eu nem jantei.

Enquanto comíamos o lanche, eu observava as crianças se divertindo. Fechei os meus olhos e a imagem do Antônio abusando de mim veio como um pesadelo. Eu dei um grito e a Cidinha se assustou.

- O que foi, Júlia?
- Não foi nada.

Por um descuido eu puxei a blusa e ela viu a marca.

- De novo essas marcas, Júlia? Alguém te bateu?

Eu fiquei sem reação. Minha vontade era desabafar, gritar, colocar pra fora, só que o medo do Antônio era maior.

- Júlia?

Uma lágrima escorreu do meu rosto. Eu tentei controlar o choro, porém foi impossível.

- Eu não aguento mais.
- O que houve? - Cidinha perguntou preocupada.
- Eu não posso falar, me desculpe.

Eu saí correndo. A Cidinha veio atrás.

- Júlia, confia em mim. Me fala o que aconteceu.
- Você precisa me prometer que não vai contar a ninguém.
- Eu prometo.

Sem saída e precisando colocar tudo pra fora, eu contei pra minha melhor amiga. Ela ficou horrorizada. No dia seguinte o meu mundo desabou. Fui surpreendida com a mãe da Cidinha e a professora me interrogando. Eu chorei e falei pra Cidinha que nunca mais falaria com ela. A professora chamou minha mãe e o meu padrasto. Ele negou todas as acusações.

- Essa menina é louca. Eu nem chego perto dela.

Minha mãe me olhava com ar de reprovação. Eu fechei meus olhos e todas as palavras que o Antônio soltava eu sentia medo do que aconteceria depois e, assim se concretizou. Ele me bateu no rosto, nos braços, nas pernas, eu chorava, gritava e sem forças, cai no chão. O Antônio me puxou com força do chão, rasgou a minha roupa e novamente eu fui abusada. Tive que ficar com blusa comprida para esconder todas as marcas. Depois desse dia eu fui surpreendida com uma arma, com a qual ele me ameaçou.

- Sua filha da puta, que merda foi aquela na escola? Você acha que vai escapar de mim?

Permaneci em silêncio.

- Nunca. Você ouviu? Você nunca vai escapar das minhas mãos. - gritou

Ele me chutou.

- Você será minha e de mais ninguém. Se você abrir essa boca, essa arma vai direto na tua cabeça. Você só sai dessa casa direto pro caixão.

Essas palavras doeram tanto, minha vontade era morrer, só assim todo esse sofrimento acabaria.

Os anos se passaram e minha mãe nunca acreditou em mim. Sem esperanças de mudar de vida, tentei fugir, fui encontrada, esse ogro sentia prazer em me fazer sofrer; Minha vontade de viver já não existia mais. Ficava deitada na cama, nem passava pela minha cabeça que eu estava com depressão, causada pelos abusos sofridos pelo meu padrasto. O único local que eu tinha confiança era quando eu desabafava no meu diário.

Aos 18 anos, cansada de sofrer, eu bolei um plano. Falei pro Antônio que eu precisava levar o Doug ao veterinário. Ele aceitou ir comigo. Na clínica, eu fiz o check-in e pedi para o Antônio ficar com o Doug na sala de espera enquanto eu ia ao banheiro. Na recepção, eu entreguei uma carta às recepcionistas. Elas perceberam que eu estava com as mãos trêmulas. Rapidamente eu saí do local e voltei à sala de espera. Quando as recepcionistas leram a carta elas perceberam o perigo:

“Chame a polícia, eu sofro abuso há mais de 5 anos e não aguento mais. O meu padrasto está com uma arma. Por favor me ajudem.”

As recepcionistas entraram em ação. Os minutos pareciam horas e o meu receio de tudo dar errado era grande. Um tempo depois, os policiais chegaram e foram até à sala e intimaram o meu padrasto. Ao erguer a camiseta dele encontraram a arma. Ele olhou em meus olhos e aquele olhar fez com que um filme passasse em minha mente mostrando tudo o que eu sofri. Em seguida, ele saiu da sala, nesse instante eu chorei, ergui minha blusa e mostrei os machucados para os policiais, abri a bolsa e entreguei o meu diário. Tudo o que eu sofri estava escrito naquelas folhas que me acompanharam nesse período.

Novamente, o tempo passou, as sequelas ficaram, à noite eu tenho medo dele aparecer a qualquer instante. Já não moro mais com minha mãe, to bem distante, sem endereço, sem rumo, deixei para trás tudo o que me fez sofrer, não será fácil me reerguer, no momento nem quero pensar nisso, só quero tentar fugir do medo que me persegue a todo instante, será que eu vou conseguir? Acho difícil. No fim lembro que eu consegui ajuda, então pode ser que um dia eu consiga construir minha família e levar a vida, porque a paz eu nunca vou encontrar. A imagem daquele ser nunca vai sair da minha mente. Esse será o pesadelo que vou carregar para sempre. O Antônio será a sombra do medo.



conto escrito por
Gabo Olsen


produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 09 - Atos Subversivos

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Capítulo 09 de 09
"Atos Subversivos"
Cristina Ravela


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Quase todas as noites, perto da madrugada, um sujeito bêbado cantarolava no karaokê de um bar lá da esquina. Cantava mal aquelas canções de corno, mas era uma tradição dormir ouvindo aquela desafinação. Às vezes, soltavam uns fogos por conta de um time de futebol ou porque era dia de santo. Santo deve gostar de barulho; eu também.

Na verdade, eu quase nunca dormia nesse horário. Nesse momento, por exemplo, eu estou sendo cavalgado pela Alicinha Santa Cruz, uma puta mulher de seios fartos que sacudiam de quase bater no queixo. Sabia fazer como nenhuma outra.

Eu, com mais de 50 anos, barriguinha de chop e uma barba grisalha, ainda tinha muito a oferecer. A gente fazia sexo semana sim e semana não, quando o marido dela viajava. Um caminhoneiro responsa, trabalhador, sonhava ser pai, mas Alicinha não nasceu para ser mãe.

Oh, meu Deus, oh, meu Deus! — Alicinha, veloz e furiosa.

Isso, vai! Mais rápido, mais rápido, filha da puta! Eu vou gozar!

A mulher revirou os olhos já no auge, e quando gozei, ela gritou de prazer, no mesmo instante que um estampido de fogos ressoou naquele quartinho.

Alicinha caiu pro lado com um tiro na cabeça. Mortinha.

***

A sirene de polícia na capital carioca era tão comum quanto o bêbado cantando música de corno no barzinho da esquina. Os policiais faziam o cerco em frente ao bar do Olavinho. Ali, no chão, o corpo de um sujeito de uns 50 anos, com quatro balaços nas fuças.

Esse deu a cara a tiro — eu disse, puxando meu cigarro pirateado.

Piada mais sem graça, Peixotão. Tá fazendo o quê por essas bandas?

Tava só batendo um papo cabeça.

Timotinho, um sujeito franzino, com 55 anos na cara e rugas de tanto cigarro me enquadrava no canto.

Ataulfo Medeiros, 50 anos, jornalista do Língua Ferina. Saiu pra comprar queijo e voltou assim. Perfurado.

Língua Ferina? — dei uma baforada na cara do Timotinho — Né aquele jornal que mete o carai nos políticos e tudo? Demorou até. Por tudo que já escreveu, ele já era para tá no saco faz tempo.

O cara era dos bons, mas nunca se conformou daquele caso que ele perdeu.

Jornalista acha que tem caso pra resolver. Quem resolve é nós!

Testemunhas disseram que ele foi jogado aqui por uns caras de uma van. Parece um recado, que cê acha?

A última vez que vi isso acontecer foi num caso que peguei em 2003. O tal que o jornalista lamentava ter perdido. Não era meu dia de plantão, então resolvi levar minha morena para ir do Leme ao Pontal. Peguei minha brasília amarela e dobrei à esquerda. Foi coisa rápida. Um furgão preto cruzou meu caminho, deu uma freada brusca. Parei e vi a cena escancarada à luz do dia: as portas foram abertas e um corpo de um homem morto foi arremessado na calçada.

Eu disse que um homem morto foi arremessado na calçada.

Em plena luz do dia.

Eu e minha equipe investigamos e descobrimos que o morto era o jornalista Melqui Martins, ativista dos direitos humanos, influente em uma época onde nem existia rede social para postar bosta.

Me vê um pingado, Olavinho!

Olavinho era um sujeito de cabelo branco, falava bonito, ninguém diria que ele não terminou o fundamental.

Acha que meu bar vai ganhar notoriedade com esse crime na minha porta? Jornalista, não? De gabarito.

Esse é seu sonho de uma noite de verão. Vai continuar no esquecimento que nem hit de carnaval.

Você acha que foi político, é? — Olavinho terminou de servir o pingado e debruçou sobre o balcão – Vou fazer bingo. Já tenho uns políticos em mente.

Conversar com Olavinho era uma experiência em dois mundos. Ora ele falava bonito, usava palavras difíceis; ora ele se comportava exatamente como ele era: um fofoqueiro oportunista. E ainda acreditava em terra plana!


***

Eu cheguei na delegacia e só se ouvia falar do tal Ataulfo Medeiros. Em outras épocas seria só mais um crime, mas o delega já tinha até informação que eu ainda não tinha.

Ataulfo era alguma coisa daquela belezinha que morreu ontem.

Que belezinha? — perguntei, enquanto pegava café do bebedouro.

Alícia Santa Cruz. Não parecia um caso interessante pra você, por isso ia deixar pro Bola.

Bola entrou ali, mascando chiclete, alvoroçado, botões da camisa arreganhados e suor escorrendo no peito. Não preciso nem dizer o porquê do apelido ser Bola, né? A braguilha da calça dele saltava por conta da gordura exposta.

A garota levou um balaço enquanto dava, maluco. (mordiscou os lábios, bem discreto) Quem tava com ela fez um bom serviço ali. Tava toda molhadinha.

O que tem ela com o jornalista? — Perguntei, ressabiado.

Ataulfo tinha a foto dela na carteira. Novinha que só, das duas uma: ou era amante ou filha. Em quem tu aposta, Peixotão?

Que tu se aliviou onde não devia e estragou a cena do crime.

O delega riu. Bola ficou boladão, se estressou.

Pô cara, tão cansado de saber que não posso pegar esses casos, não. Garota tava fresquinha ainda, ah…

Bola saiu, chateado. O cara era bacana, sempre ia na minha laje comer churrasco, levava a mulherada, pagava as bebidas. Certo dia, liguei pra ele pra gente resolver um negócio. O cara estava aceso, tinha tomado um viagra e a garota não apareceu. O tal negócio era o assassinato de uma puta na esquina de Copacabana. Briga de ponto, sabe? Caso pequeno, sem alarde. Botei o Bola na linha de frente, qualquer coisa, a gente dizia que foi rival. Bola meteu ali mesmo. Caso encerrado.


***

Eu e o Bola fomos até a redação da Língua Ferina colher alguns depoimentos. Os jornalistas não sabiam qual matéria pôr na capa: a morte do conceituado Ataulfo Medeiros, cujo nome talvez estampe placa de rua, ou uma celebridade que foi vista – pasmem! – fazendo compras em um shopping.

Ataulfo recebia ameaças, piadinhas, tentativas de desacreditá-lo. Coisas normais do ofício, relatou um dos colegas, enquanto bebia café em uma caneca com estampa dos Vingadores.

A gente tem que ver os tuítes do cara, Bola. Deve ter algo bom ali para ajudar nas investigações.

Existe um programa que varre todos os tuítes de uma pessoa. Pode ser útil, destacou o colega de Ataulfo.

Eu e o Bola não perdemos tempo; usamos o tal programinha, e não é que o bicho vasculhou tudo? Ataulfo Medeiros gostava de ser irônico e era bem respeitado no meio, menos no meio político, onde rolava fake news. Politizava tudo: da água que bebemos até os filmes que assistimos. Em um dos tuítes, questionava os filmes de maior bilheteria e de impacto, afirmando que eles traziam mensagens subliminares sobre os poderosos de uma tal elite.

O Homem-aranha, por exemplo, naquele filme em que ele ganha um uniforme negro e se transforma. Por que uniforme negro revela seu lado obscuro? O que queriam dizer com isso?” - questionava, Ataulfo aos seus seguidores.

As respostas eram aleatórias, mas ele mesmo não dava pitaco. Foi numa dessas que percebi um seguidor assíduo e costumaz na arte de dar patadas:

Homem-aranha é só filme, porra! Para com essas teorias da conspiração, imbecil! Toma conta da sua irmã, aquela puta que adora fazer o canguru-perneta!”

Bola riu. Fiquei na dúvida, porque a Alicinha era puta mesmo, mas eu sempre achei que filmes tentassem nos mostrar alguma verdade sobre o futuro, que nem Os Simpsons.

Tu anda de papo com o Olavinho do bar, cara. Já já vai querer pular da terra plana, debochou o Bola.

O tal sujeito tinha o apelido de “38 na chapa”. Resolvi varrer os tuítes e stalkear o carinha. Sei lá, bateu uma coisa. Descobri que é fã obcecado pelo político Carlinhos “abençoado”, um dos senadores mais votados do Rio.

O fanatismo é que atrasa o país — filosofou o Bola.


***

A gente estava no bar do Olavinho, tomando um pingado. Olavinho apresentou uma cartela de bingo pra gente comprar: dez reais para apostar em qual político tinha relação com a morte de Ataulfo Medeiros. Dei uma olhada na lista de nomes.

Coronel Tino? Esse cara fala muito, mandar matar acho puxado pra ele. Luíz Eustáquio da Silva? Num tava preso? Ataulfo até defendia suas pautas.

Pior é meteram o Carlinhos “abençoado” aí. Querem tudo morrer vocês? — disparou o Bola.

Nesse momento, percebi um sujeito moreno, com quase 40 anos, encarando a gente no canto, enquanto bebia a cerveja. Deu um gole rápido, sacou uma grana do bolso e se aproximou. O cara jogou 50 pila na mesa.

Aposto que o Carlinhos “abençoado” é inocente. Quem mais?

Nisso, o sujeito deixou à mostra sua 38 na cintura, achando que era o Chuck Norris da capital carioca. De longe, um cara com autoestima rasa, adorador de político, disposto a partir pro tudo ou nada. Olavinho gostava de briga:

Aposto que ele não é. — e Olavinho dobrou a aposta, metendo cenzinho sobre a mesa.

O clima ficou pesado. Ambos se encaravam como galos em rinha. Falei que o Olavinho era um velho safado de costas quentes? Ninguém se atrevia a falar de Carlinhos “abençoado” se não tivesse costas quentes.

Qual é a prova que tu tem contra ele, Olavete? — disparou o sujeito da 38.

A mesma prova que tiveram contra o Luíz Eustáquio. Mas relaxa que se ele for preso, alguém solta. Não fica com inveja, não.

Olavinho riu e alguns outros também. O tal do Chuck Norris sacou duas notas de cinquenta e meteu na mesa, quase derrubando tudo.

Cenzinho que tu é viado.

Não entendi o que uma coisa teria a ver com a outra, mas o Bola me espiou de canto e eu até me levantei para não ficar no fogo cruzado. Foi a vez do Olavinho sacar duas notas de 100 e jogar na mesa encarando o sujeito.

Sou viado mesmo, mas o teu “abençoado” é ladrão e assassino!

Alguns aplaudiram, riram da situação. Mas no meio da risada, o sujeito da 38 puxou a arma e meteu dois tiros no peito de Olavinho. Foi um alvoroço só! Olavinho caiu morto no chão sujo do bar, ninguém estava acreditando na ousadia e alegria do Chuck Norris de 38. Inclusive, ele fugiu, querendo ser o Jason Sthatam da cidade.


***

Passaram-se algumas poucas horas desde que o Olavinho foi derrubado por uma 38. Amigos, familiares, pessoas que nunca vi na vida estiveram no enterro dele.

Alguma novidade? — perguntei pro Bola.

O delega acha o caso do jornalista mais importante, mas ó, já descobri que a Alicinha era irmã do Ataulfo. Duas pessoas da mesma família morrem. Pode ser que mataram a garota pra mexer com o jornalista. Que cê acha?

Se fizeram isso devem estar putos, porque o jornalista também vazou.

Eu sabia que tinha fio solto nessa história. Alicinha podia ter morrido por qualquer motivo aleatório, e ter sido coincidência o irmão morrer na mesma hora. Mas nesse meio sabemos que não existem coincidências.

Já falou com o marido da Alicinha? — Bola deu a dica.


***

Cheguei no andar de um prédio bem estruturado, com direito a piscina e área de lazer. O caminhoneiro responsa tinha bala na agulha para se sustentar e manter aquela puta. O porteiro nem queria me deixar entrar, mas mostrei o distintivo.

Diante da porta do apartamento que se abria, um susto: o caminhoneiro era o Chuck Norris de 38! Tentou barrar a porta, fez força de um lado e eu de outro, até que ele desistiu. O filho da puta ainda sacou a arma.

Melhor não tentar nenhuma gracinha, Peixotão!

O Chuck Norris me conhecia. Besteira! Quem não conhece o Peixotão?

Tu matou meu colega, maluco. Melhor se entregar agora pra não complicar pro teu lado.

Vai ser tu e mais quantos, camarada? O “abençoado” já já mete o carai na tua cara se marcar bobeira!

O sujeito estava começando num tom que eu não gostei. A gente ia ter problema.

Num tenho nada a ver com política, não, qual é a tua?

Mas com a minha garota você tinha muito a ver, né? Tomou quantos viagras pra dar conta?

O frangote riu. Eu não estava diante apenas de um caminhoneiro cheio de rebite nas ideias; ele era um assassino, a serviço do Carlinhos “abençoado”, será?

Matou a Alicinha e a mim deixou vivo, por quê?

Por que senão tu ia morrer como herói, paladino de uma justiça puta. Povinho eleva qualquer merda a mito, depois não entende por que toma no cu — o sujeito baixou o nível. Herói de verdade era o Melqui Martins que tu mandou pro ralo, aquele lá poderia ter sido deputado, acho que até presidente.

O Chuck Norris se referia ao jornalista assassinado em 2003, herói de merda, paladino de porra alguma, príncipe dos oprimidos, rei das frases filosóficas que ninguém ligava. Atualmente seria coach, não presidente.

O “abençoado” tá cobrando o serviço, Peixotão. Tirar um puta jornalista do caminho pro seu ego não sair ferido custa caro. Tem gente inocente na cadeia por isso, enquanto você era alçado a fama de herói.

Levei um baque, mas disfarcei lindamente.

Não sei do que você tá falando...

Tu vai encerrar o caso de Ataulfo Medeiros — falou por cima — afinal, tu sabe bem como funciona a justiça neste país.

Se eu fizer isso e descobrirem, minha carreira vai pro buraco!

O cara de 38 foi me empurrando até a porta enquanto apontava a arma na direção do meu peito.

Tá preocupado agora porque esse crime não foi tu que encomendou, né? — ele abriu a porta — Essa será sua última missão, Peixotão. Você não terá mais serventia na polícia para o “abençoado”.


***

Cheguei quase no fim de tarde na delegacia. Fui direto no bebedouro e notei o delega me encarando:

Alguma novidade sobre o jornalista e o Olavinho?

Bola me espiava de canto, receoso. Notei algo estranho. O delega parecia analisar minhas falas e minha postura, mas continuei a ladainha.

Amanhã vou atrás do vagabundo. Olavinho era um parceirão da gente, não merece ter sua morte impune.

O Olavinho sempre foi metido com coisa errada, Peixotão. Uma hora alguém ia encaçapá-lo.

Fiquei de cara com a secura do homem.

Você não tem nada para me falar? — indagou o delega, fazendo suspense.

Diante do meu silêncio, o delega, com olhar sinistro, mexeu no celular dele e me mostrou um vídeo que me deixou estupefato. Nele, toda a minha conversa com o cara de 38 tinha sido gravada. Nunca antes na história deste país alguém se atreveu a me gravar e correr o risco de ser preso só para me incriminar. Uma patifaria!

Eu tava sendo ameaçado, seu delega, o cara matou a esposa e o jornalista lá...

Você mandou matar Melqui Martins, Peixotão...

Cada um tem seus motivos, delega. Olavinho cometia crimes e a gente fazia vista grossa. O meu crime tá quase prescrevendo.

Já imaginou se isso vem a público, Peixotão? Não importa se foi só um crime. Todos os casos que você pegou ficarão contaminados. Ninguém vai acreditar que você cumpriu com a verdade. Ninguém! Será um escândalo!

O senhor sabe que sempre cumpri com a lei. Quer dizer, nem sempre, mas eu to perto de me aposentar, delega. Pega leve, aí.

O delegado colocou a mão no telefone, decidido. Espiei o Bola ali, que me devolveu um olhar de incerteza.

O seu destino agora tá nas mãos do divino — decretou o delega.


***

Sentado numa poltrona de rico, tomando uma cervejinha gelada, eu admirava o cenário daquele salão que devia ter o mesmo tamanho do meu cubículo na Penha. Eu estava diante do divino, que me encarava enquanto saboreava um uísque. Era Carlinhos “abençoado”, ostentando saúde aos 64 anos, cavanhaque demodê e camisa listrada azul. Meio brega, mas ninguém podia falar isso.

O “38 na chapa” já deve ter te passado a moral, né? Você não tem mais serventia pra mim na polícia.

O “38 na chapa” era o carinha do tuíter, que respondia com grosserias ao jornalista Ataulfo Medeiros. Assumiu a autoria de sua morte e da esposa, e ainda teve que inocentar o Carlinhos. Mas ele seria libertado em pouco tempo.

A justiça neste país não funciona muito bem — disse o “abençoado”. Por isso, o Brasil precisa de um herói. Estão todos cansados dessa patifaria que taí. Que tal aproveitar que você se aposentou e se aliar a mim, por um país melhor?


***

Uma multidão se aglomerava ao redor de um carro. Som de cornetas, placas para tudo que é lado, gente aplaudindo e o povo só ouvia o slogan:

Com ele, a criminalidade não tem vez. É Peixotão quem tem vez! Para deputado federal, vote Peixotão!”

Pois é, quem não me conhecia, vai passar a me conhecer. Prazer, sou Peixotão, e tudo o que fiz pela polícia farei pelo Brasil. Pode ter certeza disso!

Fim.