– Quero
uma cela triangular. – foi o que ele disse, ao saber que seria
condenado.
–
Isso
é pouco provável. – respondeu o advogado.
–
Pouco
provável? Pouco provável era eu não conseguir minha condenação e
ao que me consta isso está mais que garantido.
–
Sim,
é verdade, mesmo com todas as apelações e recursos, a pena ditada
pelo juiz foi de noventa e nove anos em regime fechado.
Ele
riu ao ouvir aqueles números.
–
Temos
leis absurdas meu caro doutor Tenório.
Os
caras relutam contra a ideia de prisão perpétua e decretam 99 anos
de prisão para um homem de 79 anos. Isso só faz o condenado pensar
que a quantidade de legisladores que ele assassinou não foi o
suficiente.
–
E
o que isso tem a ver com uma cela triangular. – questionou o
advogado.
–
Até
mesmo um condenado, pode ser generoso com o estado, doutor. Meus
contadores fizeram todos os cálculos; meus médicos fizeram suas
projeções e a lógica dos números é fria e subjuga os mais
patriotas, os mais justos os mais moralistas e até mesmo e sem
sombra de dúvida, os mais honestos.
Ainda
sem encontrar relação com o estranho querer do condenado, o
defensor ficou esperando em silêncio, por um facho de luz naquele
diálogo.
–
Não
decidi ainda por quanto tempo permanecerei preso, mas, ordenei aos
meus contadores que providenciem tudo para que nada me falte, mesmo
que eu demore ainda vinte anos para tomar minha decisão. Minha
fortuna sobreviverá, além da minha condenação – os números
podem provar isso. Tenho tudo ajustado em testamento, de maneira que
meu filho Bryan, de 58 anos, meu neto Wiliam que está com 36 anos; e
o pequeno Antônio, de 14 anos; essas três gerações, que carregam
meu legado, sejam imunizadas contra a falta de dinheiro; e isso fará
fazer valer a vontade deles.
–
Não
entendi onde quer chegar, dom Antônio! – disse o defensor.
–
É
simples doutor Tenório, bem simples.
Ele
retirou de uma das gavetas uma pasta branca com um calhamaço de
folhas e entregou ao advogado.
–
Leia
com atenção! Essa é minha proposta, ou minha solicitação, ou se
preferir minha contribuição com o estado. Aí está minha oferta
para que o estado pague parte de suas malfadadas negociações –
dinheiro limpo doutor, livre de impostos fruto de bons e produtivos
anos; duvido que por tanto dinheiro o governador não construa, a
título de gratidão minha cela triangular.
–
Quer
que leve isso ao governador?
–
Sim.
Pois segundo me consta amanhã estarei preso, não poderei fazer tal
mimo.
–
Sim
senhor! – foi o que respondeu o defensor.
Dez
dias depois, na ante sala do Palácio do governo, um dos secretários
atendeu o doutor Tenório Guterres Lemos.
–
O
governador vai recebê-lo doutor Tenório, entre por favor!
Ao
entrar no gabinete, para surpresa dele, o governador não estava
sozinho.
O
pároco da comunidade estava ali numa conversa litúrgica com o
governante; e após procedidas as formalidades do encontro o doutor
Tenório expressou objetivamente as razões pelas quais estava ali.
De
pronto, e como se não soubesse nada sobre o assunto, o governador
pendeu para o bom senso, alegando não poder aceitar o dinheiro de um
condenado pela justiça; referindo-se ainda a sordidez psicótica dos
crimes cometidos.
–
Não
é prudente aceitar esse dinheiro – argumentou o governador.
–
Dinheiro
limpo – disse o advogado – todos os procedimentos legais de
fisco, e declarações necessárias foram devidamente protocolados.
O
religioso, que até então só assistia, decidiu opinar.
–
O
governo não pode jogar nenhum dinheiro ao vento governador; o povo
precisa, o estado está falido. Independente desse dinheiro pertencer
a um homem de coração frio e cruel, ninguém pode tirar desse homem
o direito de aplicar esse dinheiro para o bem dos mais necessitados –
lembre governador, os caminhos de Deus são muitos, nenhum homem pode
interferir na vontade de Deus. Essa pode ser a forma com que Deus
decidiu curar o coração desse homem e abrandar as necessidades do
seu povo.
O
governador segurou os documentos por alguns instantes ainda,
ponderou, retirou a caneta do bolso e assinou.
Depois,
chamou o secretário e ordenou que o fato fosse publicado nos meios
oficiais com toda a transparência. E de volta ao assunto os três
homens se entenderam, e o governador e o pároco, garantiram ao
doutor Tenório:
–
Em
sessenta dias dom Antônio será transferido de prisão, e na nova
prisão haverá um Cela Triangular.
–
É
justo, pois o próprio Deus é trino.
Em
29 de fevereiro de 1999, dom Antônio Cassarretas foi transferido
para uma prisão de segurança máxima e ocupou a única Cela
Triangular que ali existia.
A
cela media 40 metros quadrados em formato triangular. A frente norte
permitia boa iluminação solar, e reunia em seu interior móveis e
utensílios que garantiam conforto e segurança à solidão de dom
Antônio.
As
paredes atendiam a um pedido de dom Antônio, fugiam ao padrão e não
eram na cor branca, mais que isso, as paredes eram sem qualquer
acabamento.
–
Por
que um triângulo perfeito com paredes imperfeitas? – foi a
pergunta do inspetor Matias.
–
Parece
que o velho pretende pintar algumas telas. – explicou a assistente
social.
O
inspetor torceu o nariz inconformado.
–
Psicopatas,
não gosto deles!
O
inspetor não estava conformado; passara dois anos investigando as
empresas e a vida de dom Antônio; e tinha um saldo negativo.
Dois
anos de auditorias, inserções fiscais, uma equipe de trinta
auditores e nenhuma irregularidade nas transações empresariais do
maldito Cassarretas. E quando toda a sociedade preparava-se para
aclamá-lo como empresário do ano, o velho homem assume o sórdido
envenenamento de onze deputados e três senadores em sua própria
festa de aniversário.
Psicopatas,
não gosto deles! – repetiu.
A
primeira Tela
Dom
Antônio tornou-se um número apesar de todos os privilégios que
podia comprar; e nunca deixou de usar o terno italiano bem alinhado.
Nos romaneios da penitenciária Alvorecer, ele era citado como o
preso 776.
Era
assim que o agente responsável pelas correspondências que chegavam
aquela penitenciária, redigia as etiquetas que seriam colocadas nos
envelopes e nas caixas com encomendas destinadas aos detentos, apenas
um número; isso tudo depois de serem minuciosamente revistadas em
seus conteúdos.
Naquela
manhã dom Antônio recebera tintas, pincéis, canetas coloridas,
lápis e telas – material de primeira, ferramentas de trabalho para
nenhum mestre da pintura apontar defeito.
–
Abuso
de poder – comentou o agente, com a colega.
–
Fale
baixo e faça seu trabalho – disse a moça – não vai querer
perder seu emprego por causa de um ideal, não é mesmo?
–
Não.
Mas que aí tem bem umas três vezes nossos salários, isso tem.
Ela
riu.
–
Não
seja exagerado.
–
Não
sou! Veja essa nota.
Ele
mostrou aquela DANFE para ela e concluiu meio desolado.
Três
telas médias, modelo A-38/pegasusR1000.
–
Olhe
esses preços, que porcaria é essa? E quem paga um valor desses para
um doido rabiscar tintas pra todo lado e chamar de arte?
Ela
tornou a rir.
–
Vá
para casa Deniz, faça sexo com sua mulher, relaxe e esqueça dom
Antônio, ele é só um velho milionário, que decidiu viver seus
últimos anos na própria prisão.
Ele
estava ansioso.
Abriu
as caixas, separou os materiais e conferiu tudo.
Perfeito,
em ordem e na qualidade que ele esperava.
“Agora
comece Antônio!” – disse a si mesmo.
Apanhou
a caneta e escreveu:
Carmélia
era a mais viçosa, a mais alegre e a mais encantadora dentre todas;
eu era o mais atlético, o mais promissor e o mais rico dentre os
seus pretendentes, nenhuma lógica poderia nos separar, nenhuma
lógica poderia alterar nossos caminhos para que não fossem lado a
lado.
O
amor?
Ora,
o amor é um adereço de luxo, que os pobres insistem em colocar
acima de tudo por não possuírem mais nada.
Meu
professor de química dizia confiante:
–
Antônio,
a natureza às vezes é cruel com um homem. Basta a genética não
conciliar muito bem os elementos na hora H e pronto; está feito o
estrago. O pobre infeliz nasce com o nariz torto, vesgo, ou
raquítico; e só por isso passará a vida toda sendo rejeitado; por
mais talentoso, por mais carinhoso, inteligente e gentil que seja;
será rejeitado, humilhado e até hostilizado por elas. E isso só
será superado se o pobre infeliz, buscar para si, os aliados mais
apropriados, e nessa guerra – química, biologia e matemática são
imbatíveis meu jovem.
A
química principalmente; é dela que dependem os fabricantes de
vinho, sabia disso? E um vinho...um bom vinho servido numa hora de
insegurança para uma mulher segura, fará com que ela não perceba o
perigo que lhe escorre pela garganta; e ela beberá como Lilith,
senhora de si, sem saber para onde estará indo. Um bom vinho meu
jovem, despe as mulheres adultas melhor que seus próprios maridos –
e perverte as jovens, atiça a necessidade delas em refazer
fronteiras.
O
homem belo, serve-se do vinho para ser servido pelas mulheres – o
homem feio serve-se do vinho, para que as mulheres não percebam, que
o desajustado, não lhes é conveniente.
Vinho,
meu jovem; é química a favor do homem, desde que esse homem saiba
utilizá-lo da maneira conveniente.
E
depois de recordar ele escreveu:
–
Obrigado
professor e me perdoe também.
Aprendi
senhor, que guardar as lições que nos são ensinadas é o mínimo
que podemos fazer para honrar nossos mestres e que aplicar essas
lições é eternizar nossos mestres.
O
carcereiro da ala cinco, sentia-se um privilegiado; aquela era a ala
mais limpa, mais organizada e menos tumultuada. O dinheiro do
presidiário 776, bancava e mantinha o local num patamar surreal.
O
almoço dos presidiários chegava diariamente, vindo de um dos
restaurantes de dom Antônio, e os demais prisioneiros chamavam,
aquela, a hora da nobreza.
Um
afeto paternal, registrado sob um dos mais hediondos crimes do
Cassarreta.
Ele
escreveu ali:
Meu
amigo do silêncio do sol, me ajuda sempre. Confio nesse jovem por
sua presteza desinteressada, por sua obsessão em fazer o certo; isso
é fidelidade das alturas, angelical. A nobreza dele vale minha obra,
minha dedicação e meu legado.
Hoje
ele trouxe o endereço; trouxe os detalhes do local. Disse-me sobre
os costumes da família, das saídas e chegadas, dos donos da casa;
onde dorme a senhora Lucia da luz, o senhor Adalberto de Siqueira
Andaluzia da Luz, de seu jovem e infeliz rebento, retardadinho.
A
segunda tela afixada em uma das paredes da cela triangular de dom
Antônio, tinha a figura de um menino autista olhando o mundo de
cabeça para baixo.
Sob
o quadro a legenda desconexa.
“Liberte
um homem e descobrirás o potencial criminoso dele, prenda-o, e ele
lhe ensinará todas as técnicas para o exercício do crime; e no
fim, lhe cobrará as lições ensinadas, em pequenos bônus de salvo
conduto.”
Naquela
manhã Denis estava mais revoltado que o de costume; entrou em
silêncio e não cumprimentou ninguém.
–
Não
temos culpa pelo que aconteceu ontem à noite na penitenciária –
disse a policial.
–
Não
estou culpando ninguém, só não vou distribuir sorrisos, por aí –
respondeu ele – você sabe, os crimes que acontecem naquela ala,
nunca são decifrados, e quando são, os culpados apenas somem ou são
transferidos; ou enlouquecem, perdem a memória...ali o maldito
Cassarretas manda nos vivos, nos mortos, nos livres e nos presos.
Trabalho mais dois anos e deixo a corporação; mas juro a você que
ainda descobrirei quem está sob o comando do Cassarretas e quem é o
verdadeiro assassino daquela ala.
–
O
velho está pagando pelos crimes que confessou e já é o bastante,
deixe-o pintando suas telas psicóticas e decorando aquela cela, como
quiser.
–
Você
pensa mesmo isso?
–
Claro
que sim – diz ela – o velho está incomunicável com o mundo lá
fora, as câmeras filmam até mesmo quando ele tem uma ereção, ele
não tem como fazer parte desses crimes.
–
Dora,
você às vezes parece uma adolescente – resmungou ele.
Pegou
o coldre, ocultou sob o blazer surrado e foi saindo; estava na porta
quando disse:
–
Estarei
no escritório da empresa do desgraçado, hoje será o dia da posse
do novo presidente.
–
Você
foi convidado?
–
Engraçadinha,
há dois anos; se quer mesmo saber, foi o Excelentíssimo senhor juiz
dessa comarca que me enviou o referido convite.
–
Então
é verdade isso? Esse negócio de você ser um recruta do juiz dessa
Comarca?
–
Esse
povo fala demais – mas, é mais ou menos isso sim.
Ele
ligou o carro e saiu devagar pela avenida movimentada. Ainda podia
ouvir em sua mente as palavras objetivas do juiz.
Quero
que grude na família Cassarretas, cada passo deles, cada movimento
de pai, de filho, neto, quero todos sob seus olhos.
Precisamos
de uma prova concreta para colocar o culpado por aquela chacina,
atrás das grades – mas lembre-se, se falhar, estamos todos
fodidos, a sociedade cairá como abutres em cima da gente e o maldito
acabará saindo como o grande benfeitor.
Dois
anos.
Nesse
período ele não conseguira sequer uma multa de trânsito contra os
Cassarretas, e para piorar sua imagem aquela repentina confissão
psicótica de dom Antônio. Era como se o maldito, tivesse
pressentido que teria seus crimes desvendados e do nada optasse por
dar em si mesmo um golpe de misericórdia.
A
escolha por uma confissão em um templo religioso, durante uma
cerimônia de batismo, num suposto surto de bipolaridade, num gesto
anacrônico; fora o único, mas, apropriado motivo para que os
advogados pudessem elaborar um plano de defesa para dom Antônio –
no final uma decisão polêmica e sem sustentação.
O
réu confesso, quer ficar recluso – a justiça por conveniência,
dita a sentença e manda prendê-lo; a defesa para sustentar a
inocência dele e por consequência preservar o patrimônio da
família, transfere à própria justiça a obrigação de buscar
garantias clínicas da sanidade do réu – o que de pronto – seria
tido como complemento de prova contra si mesmo, fato que, por fim
faria do réu uma vítima inocente da própria insanidade.
Ciente
do imbróglio, dom Antônio subsidia a própria estada na prisão –
sabendo que o tempo lhe seria favorável, pois as provas contra ele
chegariam tardias e a ausência delas, eram agora convenientes aos
seus propósitos.
Dora
abandonou o jornal sobre a mesa e falou num desconsolo:
–
Desperdício;
uma equipe de advogados desse nível, apenas para afirmar que o réu
é maluco, tão doido que exige a própria prisão!
–
Às
vezes penso que talvez esse velho não seja o autor de todos aqueles
assassinatos – disse o inspetor.
–
Pensa
mesmo isso, senhor Nilo?
Ela
tinha aquele costume de chamá-lo de senhor; era devido à idade dele
já bem avançada; quase quarenta anos prendendo gente de todos os
tipos, ele parecia farejar os grandes assassinos.
–
Pois
concordo com o senhor, ele parece mesmo estar protegendo alguém. Mas
quem?
Nilo
esticou os pés sobre a mesa e pensou alguns instantes, parecia
conversar com o silêncio.
–
Dora,
minha querida, é tudo muito óbvio, e talvez por isso nada faça
sentido. Dom Antônio tem um filho, um neto e um bisneto.
Com
exceção do bisneto que tem apenas 14 anos; o filho e o neto tem
idade e motivos óbvios para cometerem aqueles crimes.
–
Impossível!
- disse Dora - Eles estiveram em todas as comemorações e em todos
os brindes; beberam junto com as vítimas. E estão vivos.
–
É
bem aqui que perdemos o rumo. Pois até mesmo o vinho que o réu
alega ter envenenado, está limpo. Nada, nem a comida e nem a bebida;
nenhum sinal de envenenamento.
–
Mas
o fato é que aqueles onze homens estão mortos. – Concluiu o
policial.
O
inspetor Nilo era um homem pragmático.
Ele
não estava convencido das provas até então, expostas no tribunal.
–
Se
os peritos não encontraram sinais de veneno – então é porque
aqueles homens já chegaram mortos para aquele encontro.
–
Acha
que foram envenenados fora dali? – indagou Dora.
–
Mais
que isso, eu diria até, dias antes.
–
E
a morte em grupo, fica por conta do acaso, da sorte ou do azar dos
nossos deputados?
–
Não.
Acredito nesse garoto, acho que ele desvendará esse mistério.
–
O
Deniz? – pergunta Dora.
–
Sim,
ele é obstinado, isso o colocará no rastro da verdade. – diz o
policial.
Ele
abriu a porta do carro devagar e desceu sem tirar os olhos do hall de
entrada do complexo de escritórios da Cassarretas Importações S.A;
os cuidados eram sempre os mesmos. Ele observava por dez minutos todo
o movimento ainda à distância e só então entrava no complexo.
A
jovem recepcionista o conhecia, sabia de sua obsessão por
informações.
Ela
retirou a pasta branca da gaveta de sua escrivaninha e entregou a
ele.
–
Aqui
estão todos os nomes de quem entrou até o momento na empresa para
conversar com os diretores principais. E também os que ainda virão,
na lista de agendamentos.
–
Ele
pegou a pasta e disse formalmente:
–
Obrigado,
Lúcia.
–
De
nada.
–
Ah!
Nos agendamentos, vai encontrar um nome assinalado com um asterisco.
–
E
do que se trata?
–
Essa
pessoa jamais esteve nessa empresa. – respondeu a moça.
–
Obrigado
menina, você é muito boa no que faz.
Ela
riu, com o elogio, mas não conseguiu controlar o calor que lhe
enrubesceu o rosto.
–
Obrigada.
– disse, ainda.
Ele
entrou em sua pequena sala, trancou a porta e só então abriu a
pasta. Correu os olhos por toda a lista de nomes já conhecidos e foi
parar naquele nome em especial, aquele com o asterisco que a
recepcionista falara.
–
Giovanna
Morelli.
Ao
lado do nome, além do asterisco, a informação de origem; empresa e
local.
Víveres
e Cores – Milão – Italy.
Uma
inquietação sem controle se apossou dele.
Vasculhou
as gavetas rapidamente até encontrar a pequena agenda de capa verde
musgo. Folheou e percorreu nome por nome até encontrar o que
esperava.
Ligou
para a telefonista.
–
Coloque-me
na linha com Gilceia Virella.
–
A
jornalista?
–
Essa
mesma.
O
tempo foi curto.
–
Gilce,
é você?
–
Sim.
–
Gilce
querida, sou eu, o Deniz.
Ela
deixou escapar uma risada calma; Deniz, por onde você andou esse
tempo todo? Eu devia imaginar.
–
Imaginar?
– indagou ele.
–
Sim;
já se vão dois anos e ninguém achou de me telefonar no meio do
banho, especialidade sua né!
–
É
o gosto pela paisagem. – retrucou ele.
–
O
que você quer, seu psicopata?
–
Ainda
reside em Milão?
–
Mantenho
um apartamento lá; mas não fico muito por lá, sabe jornalista né.
–
Sei;
conhece Giovanna Morelli?
–
A
designer?
–
Sim
essa mesma.
–
Vou
entrevistá-la hoje.
–
E
onde será isso?
–
No
Cassarretas, mas, o que você quer?
–
Que
me apresente a ela?
–
Quê?
–
Preciso
que me apresente a ela.
-
Com que pretexto? Sou apenas uma entre as cem jornalistas que
tentaram falar com ela hoje. Impossível.
–
Sou
responsável pela segurança do evento, e também pela segurança de
Bryan Cassarretas, digamos que eu e ele viajamos juntos com muita
frequência, o que acha?
–
Ainda
não vejo em que isso vai mudar minha vida – disse ela.
–
Posso
convencer o príncipe a conceder uns instantes de conversa inútil
antes do jantar; digamos um pequeno atraso de uns vinte minutos.
Isso
colocaria suas concorrentes fora de combate por uns minutos, o que
lhe permitiria uma entrevista exclusiva com a nossa estrela.
–
Sendo
assim, posso dar um jeito – disse ela.
–
Obrigado.
–
Querida,
sabe do senhor Bryan?
–
Ele
ainda não chegou, Deniz.
–
Sabe
que horas chega?
–
Não,
ele não me deve explicações.
–
Ligue
para ele, diga que é urgente; questão de segurança.
–
Está
bem, ligarei, aguarde na sala, não devo permitir ninguém ao
telefone aqui no balcão.
Retornou
para a sala e aguardou; foram poucos instantes e telefone tocou sobre
a pequena mesa de vidro.
–
O
senhor Bryan, na linha – disse a jovem.
–
Obrigado.
–
Bom
dia doutor Bryan, me perdoe mas, vamos ter que conversar sobre
algumas mudanças para o evento de hoje; questão de segurança
mesmo.
–
Entendo
– disse o homem – ajeite tudo aí e venha até minha casa!
Ele
desligou o telefone e respirou fundo; as coisas estavam saindo como
ele queria.
Por
um instante ele recordou as palavras de seu avô. Um delegado das
antigas, cheio de manias e superstições.
–
Se
vai querer um dia ser um investigador; aprenda a duvidar do óbvio.
Aquele que mata por prazer pensa como uma criança e trabalha como um
cozinheiro, o primeiro depende da mãe, dos ensinamentos dela, da
comida, dos carinhos dela, e dos princípios morais que ela lhe
planta – o segundo, admira aquela mulher, tanto que, saudoso do
tempero da comida dela, tenta reproduzir em cada prato o cheiro e o
tempero da última refeição que aquela mulher lhe serviu.
Retornou
ao mundo real com um dos seguranças parado à sua frente.
–
Mandou
chamar senhor Deniz?
-
Sim, Hélio. Preciso que fique por aqui por umas três horas. Ligado
em tudo, anotando tudo e identificando todos.
–
Sem
problemas senhor.
Às
10:45 ele estava entrando no pátio da mansão de dom Antônio.
Ele
desligou o motor do carro e aguardou até que o mordomo aparecesse.
–
Doutor
Bryan disse que o senhor pode subir. – informou o mordomo.
Ele
já não lembrava mais de quantas vezes subira aquelas escadas.
Desde
então, todas as vezes que o homem o recebia era a mesma situação,
o mordomo, aparecia informava o que tinha para informar e
desaparecia; e então ele subia as escadas.
Bryan
o esperava na biblioteca.
Pragmático
e inexpressivo, o filho de dom Antônio era uma espécie de incógnita
familiar; vivia um casamento falido com a neta de um magnata de
Florenza. Sua vida limitava-se ao boliche, e aos negócios. Ele
expandira em todas as direções, lazer, alimentação, cosméticos,
esportes...para todos os seguimentos o nome Cassarretas figurava
graças a visão obcecada de Bryan Cassarretas.
–
Entre!
– disse ele.
–
Com
licença, doutor.
Ele
apontou para a poltrona.
Deniz
ajeitou-se na poltrona e esperou.
–
Conte-me,
o que está acontecendo inspetor.
–
Irei
direto ao ponto senhor.
–
Por
favor.
–
Com
a prisão de dom Antônio será inevitável iniciar o congresso sem
que existam centenas de jornalistas desesperados naquele jantar. Eles
vão cercá-lo e também não darão sossego à sua convidada
italiana.
–
Giovanna.
– disse Bryan.
–
Sim,
essa mesma senhor.
–
E
o que você pensou, expulsarmos os jornalistas?
–
Quase
isso, senhor. Na verdade, pensei numa quebra de protocolo. Sua
família toda estará presente nesse evento, não podemos correr o
risco de facilitar para esses sanguessugas.
–
E
o que você sugere?
–
Sugiro
que na metade da tarde a imprensa seja informada que o senhor
concederá uma entrevista coletiva no saguão do Villenium, para
falar sobre as últimas decisões da justiça e também sobre a saúde
de dom Antônio.
–
No
Villenium? Esse hotel é do outro lado da cidade! Isso vai causar um
enorme transtorno.
–
Essa
é a proposta do doutor. Esgotar as perguntas da imprensa e
dispersar parte dos jornalistas.
Bryan
levantou-se e apontou para ele de maneira desafiadora.
–
Faça
isso acontecer e será promovido a delegado.
Antes
de deixar a sala ele deparou-se com várias caixas de tintas e
pincéis.
–
O
senhor também é pintor doutor?
–
Não
inspetor; meu neto de quatorze anos parece que saiu a dom Antônio.
São dele essas caixas.
Ao
longo do corredor ele notou que o garoto parecia mesmo um veterano na
arte, pois os troféus e diplomas de honrarias em nome do pequeno
Cassarretas se multiplicavam na parede.
Ao
entrar no carro ele telefonou para Dora.
–
O
que você quer – perguntou ela.
–
Lembra
que você disse que a única informação em comum das vítimas da
chacina é que todos participaram de um leilão?
–
Sim.
–
E
sabe que leilão foi esse?
–
Um
leilão de obras juvenis, na ocasião foram leiloadas obras de um tal
de Ginno Morelli.
–
Tem
certeza que é esse o nome?
–
Sim,
todas as vítimas tinham algum quadro deste pintor.
Ele
emudeceu por um instante e desligou.
O
próximo passo era encontrar Gilcéia.
Proximidades
de algum hotel de luxo da cidade, 15h35 minutos.
–
Alô!
–
Preciso
falar com você agora, posso subir?
–
Aguarde
aí embaixo já desço.
Ela
desceu em seguida.
–
O
que está acontecendo?
–
Dependendo
do que você me dizer acho que estou a dois passos de descobrir quem
é o assassino daquele grupo de políticos.
–
Todos
sabem que esse caso está resolvido, o velho Cassarretas está preso
por ter confessado aqueles crimes – disse ela.
–
Pois
é, mas a polícia nunca deixou de trabalhar na possibilidade de ele
estar protegendo o verdadeiro assassino.
–
Qual
a relação de Giovanna Morelli com a família Cassarretas? O que
você sabe?
–
Onde
você quer chegar Deniz?
–
Ginno
Morelli. Esse nome lhe diz alguma coisa?
–
É
o bisneto de dom Antônio – diz ela.
–
Sabe
que o garoto é pintor?
–
Sim,
sei sim.
–
O
garoto é um prodígio, expõe quadros em diversas galerias pelo
mundo; porém é problemático ao extremo e não se adaptou nas
escolas convencionais. Foi criado pelo avô, e se envolveu em
diversas brigas e até algumas situações bem violentas, nada que o
dinheiro do avô não tenha encobertado, como o episódio do estupro
de uma garota inglesa numa festa teen.
–
Ainda
não entendi onde você quer chegar?
O
garoto só produz seus quadros sob encomenda; e só os assina na hora
em que entrega ao cliente que fez o pedido.
–
Muitos
pintores modernos trabalham assim. Não vejo problema algum nisso.
–
Nem
eu; o detalhe é que o empresário do garoto exige duas coisas no
mínimo excêntricas para a produção do quadro.
Para
assinar a obra o proprietário precisa contribuir com uma pequena
amostra do próprio sangue para que o artista misture a tinta com a
qual assinará a obra.
A
outra cláusula é que o quadro jamais poderá ser comercializado,
exceto com o próprio artista; e isso vale também em caso de morte
do proprietário da obra, que não poderá deixá-la aos herdeiros,
posto que o único herdeiro da obra é o próprio artista.
–
Como
sabe disso tudo?
–
Dois
anos de trabalho junto àquela família.
–
Mas
até ontem eu não sabia que o empresário do garoto chama-se
Giovanna Morelli, você sabia disso, Gilce?
–
Não.
Mas talvez tenha a informação que você procura. Giovanna Morelli é
a mãe do garoto e está aqui para reivindicar os direitos do menino
na herança de dom Antônio. – explicou Gilce.
Ele
pensou por um instante e tornou a falar.
–
Na
condição de mãe e empresária do garoto, ela o acompanha em todos
os eventos e até mesmo na entrega das obras, que é quando o garoto
assina as obras, certo?
–
Sim,
ela transformou a assinatura dessas obras num evento de marketing
extraordinário. – responde a jornalista.
–
Só
que esses eventos jamais anunciaram que ela é a pessoa responsável
pela coleta de amostra de sangue do comprador da obra. Certo?
–
Isso
pode estar ligado à morte daquelas pessoas todas?
–
É
possível. Veja, as onze pessoas mortas eram todos políticos; todos
possuíam uma obra de Ginno Morelli, adquirida num leilão em que
somente políticos participaram. Eles adquiriram as obras lá, as
obras foram assinadas no ato do arremate, e todos os compradores
submeteram-se a coleta do próprio sangue para que o artista
assinasse sua obra. Curiosamente, a enfermeira responsável por essa
amostra sanguínea não poderia deixar de ser alguém de plena
confiança; nesse caso a mãe do artista, a empresária e conhecida
enfermeira do exército italiano Giovanna Morelli.
Isso
também explica o fato de os peritos jamais terem encontrado indício
algum de envenenamento das vítimas conforme o relato de dom Antônio.
–
E
como se explica as mortes?
–
Simples,
todos foram envenenados antes, num outro momento, ou seja no dia do
leilão.
Nossa
enfermeira ao coletar as amostras de sangue, injeta num primeiro
momento uma pequena dose; um composto a base de benzeno que ficará
armazenado no tecido gorduroso da vítima até o momento em que em
contato com outro elemento estrategicamente acoplado a algum alimento
desencadeará a ação do veneno.
–
E
esse desencadeamento ocorreu durante o referido jantar ao qual dom
Antônio se referiu para confessar o crime? – Indagou Gilce.
–
E
por que ele faria isso?
–
Porque
dom Antônio já sabia que a mãe do garoto estava agindo dessa
maneira para garantir que as obras retornassem ao seu poder. Ou seja,
ela vendia as obras do filho, garantia através de contrato o retorno
das obras ao próprio artista, e acelerava esse processo
providenciando a morte dos proprietários das obras.
–
E
o que pretende fazer com essas informações? – perguntou ela.
–
Entregar
ao delegado, mas antes quero falar com dom Antônio.
–
Posso
publicar isso? – perguntou Gilce.
–
Eu
acho que lhe devo um presente de aniversário, não é?
–
Dois.
– respondeu ela – mas o outro, vou cobrar na festa da sua
promoção, futuro delegado!
Fim