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Violência Urbana I - Capítulo 05 - Observador

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CONTOS CONTEMPORÂNEOS DA VIOLÊNCIA URBANA


Antologia de
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Capítulo 05 de 09
"Observador"
Douglas Barres


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O calor infernal de Porto Alegre fazia aquele mar de gente parecer que iam ser servidos vivos ao capeta. Por mais que o sol queimasse até a mais inocente formiga que arriscava caminhar pelas ruas, a curiosidade do povo vencia qualquer obstáculo da natureza. Um jovem, duas facadas na garganta. Estudante, a vida toda pela frente. O responsável? Ninguém sabe, ninguém viu. A vida de alguém é trocada por um par de notas amarelas.


Com seu blog, Ricardo costumava retratar toda violência que encontrava no centro da capital de Rio Grande do Sul. “A Desgraçada Violência”, ponto com, alguma coisa. Por mais que esse hobbie o fizesse parecer esses investigadores particulares que vemos nos filmes, tinha que ser forte para aguentar toda a brutalidade que o ser humano podia fazer em um semelhante.

O roubo seguido de morte do rapaz mais cedo não perdia para a briga que aconteceu duas horas depois. A mulher, descabelada, tenta violentamente derrubar o rapaz que estava acompanhado de sua filha. A garotinha berrava, pedia com todas suas forças para o pai largar a sacola e deixasse que aquela louca trocasse o conteúdo por drogas. Depois de muito insistir com empurrões, a ladrãozinha conseguiu o que queria. O posto policial que devia estar ativo no final da rua, estava vazio. “Por que não me ajudaram?”, perguntou o homem para todos curiosos que estavam ali presente. Ninguém respondeu. É como dizem, fazer textão no Facebook é mais fácil.

No começo da noite, o som de tiros ecoava por toda rua a frente do Banco do Brasil. Um mendigo tentava, por algum motivo, entrar a todo custo no banco, foi baleado. A justificativa do guarda foi que ele estava armado. Provavelmente o rapaz só queria aproveitar o ar condicionado do local, mas acabou indo tomar uma gelada com algum santo lá no céu.

Os seios balançando, aquele suor escorrendo pela nuca. O fedor de alguém que já tinha ido embora minutos antes. Ricardo ainda se perguntava como tinha coragem de fuder naquele calor infernal. Sem soltar um pingo de leite, a garota ainda ficou brava. “Ainda vai ter que pagar!”, resmungou enquanto se dirigia para o pó da felicidade em cima da mesa. Só o que nosso investigador gaúcho conseguia pensar era na brutalidade humana. Troque investigador por observador, pensou, enquanto olhava pela janela. O som de alguém gemendo no outro quarto não ajudava sua reflexão.

As ruas mal iluminadas eram um doce para qualquer vagabundo que esperava sua presa. Ricardo sentia-se a chapeuzinho vermelho indo pra casa, depois de visitar a vovó, com medo de que algum lobo aparecesse. Aquela rota era feita por ele todos os dias que resolvia tirar o atraso com uma das meninas de vinte reais. Enquanto vivia no Centro, já havia sido assaltado três vezes. Em duas ocorrências foi gravemente ferido, na maioria das vezes por corte. Mas é o medo que move as pessoas. O que ele faria se não tivesse dando uma de observador daquela cidade morta? Trabalhando em um telemarketing, sendo xingado o dia todo? Outra opção seria roubar também, causar algum choque na sociedade e terminar morto pelas mãos de um policial.

No seu quarto, alívio. Chegou inteiro e com várias coisas pra fazer. Atualizar o blog com tudo que aconteceu durante o dia, ler emails, responder mensagens de redes sociais. Assistir putaria. Uma noite qualquer. Só que não. A chegada de uma mensagem via email foi bastante interessante. Um contato no jornal local dizia que alguém tinha dado entrada no hospital sem as duas pernas e um dos braços. A mulher, coitada, estava somente acompanhada por seu cachorro. O observador da desgraça só sentiu mais animação. Um acerto de contas com uma boca de fumo? Um marido louco, enciumado por algo que nem chegou acontecer? Infinitas possibilidades.

Assim que o sol raiou, Ricardo já se esgueirava pelo hospital em busca da mulher. Com a lotação dos hospitais, não era nada difícil encontrar alguém com tal descrição pelos corredores. Assim que ficou cara a cara com a moça, Ricardo sentiu um arrepio com a frieza que ela olhava para o teto. Como se tivesse aceitado aquilo que fizeram com ela, como se merecesse. A humanidade passa milhares de horas estudando extraterrestres, a natureza, mas o curioso é como não passam mais tempo estudando nós próprios.

O que faz uma pessoa cometer um crime? Sua vida até aquele momento do ato? O que faz elas aceitarem tal julgamento? São tantas perguntas e Ricardo só conseguia pensar em como pegaria aquele papel que ela segurava tão forte. Na verdade não foi difícil, arrancou sem muito esforço das mãos na moça que gritou até ele sair do corredor.

Um endereço, nada mais. Ricardo conhecia o lugar. Uma rua cheia de vagabundos, levaria provavelmente para a morte se ele seguisse. O melhor seria esquecer e continuar sua vida de observador por aquela cidade perdida.

Mas a curiosidade não só matou o gato, como também o dono. Um sentimento de euforia começou a tomar conta do corpo do nosso investigador. Várias ideias começaram a aparecer de súbito em sua mente. E se ele tentasse juntar as fotos que ele tirou da mulher, sem pernas e sem braço, com algo que ele descobriria no endereço? A polícia provavelmente deixaria aquela moça de lado, já estariam conformados que foi acerto de contas. Será que seria nesse momento que nosso observador finalmente viraria um investigador? Desses que vemos em livros bestsellers, com cabelo cheio de gel, bonito e com vários desafios? Quem dera.

Caminhou até chegar uma rua antes da prometida. Analisou. Vagabundos armados até os dentes. Uma boca de fumo, acertou na mosca. Algumas fotos foram tiradas, alguém dê um beijo em quem criou o zoom. O planejamento começava agora: entrar fingindo que tava afim de dar uns trago, tirar fotos, sair. Melhor que isso impossível, pensou, riu. Por mais besta que o plano seja, era morte na certa. Era isso mesmo que queria fazer? Precisava de uma foda.

Já que a situação era diferente dos outros dias, resolveu pagar o dobro. Gozou bem rápido com as duas de joelho na sua frente. Um homem gozado é mais inteligente que um de pau duro. Sua vida era uma merda, passava suas manhãs e tarde vendo gente morta e postando em um blog furreca. Por mais que muita gente acompanhasse seu trabalho, no fim do dia, antes de dormir, quem parava pra pensar que merda estava fazendo da vida, era só ele.

Aquele cheiro de mofo na parede do puteiro definiu exatamente o cheiro da sua vida. Será que é nessa etapa que alguém enfia uma bala na cara da sua mulher ou filha? Claro que não, não era burro suficiente pra pensar algo assim. Sabia que as pessoas cometiam crimes, violência, o que fosse, por algo mais além de uma simples explicação. O cérebro é uma coisa fudida, se você tentar decifrar, vai acabar mais fudido ainda.


No caminho pra casa, presenciou mais duas mortes nas ruas. Os policiais, acompanhados da perícia, tentavam em vão descobrir o que tinha acontecido. A chegada no quarto foi bem direta: cama, dormir, acordar. Já nos primeiros raios do sol, Ricardo pensava no que faria. Deixou sua carteira em cima da mesa, fez o mesmo com o celular. Levou somente sua câmera portátil.


Assim que chegou há uma distância considerável do local que estava descrito no papel, tirou mais fotos.“Ô tio, descola um pra mim também”, um guri pediu ao ver Ricardo se aproximar da entrada da boca de fumo. O rapaz armado na entrada encarava nosso investigador com uma desconfiança aparente. Por mais que Ricardo tentasse parecer tranquilo, seu coração não batia, dava pulos de nervosismo. Só acenou com a cabeça para baixo, de modo que cumprimentasse o porteiro sem falar nada. Ele fez o mesmo, abriu espaço para entrar. O desgraçado conseguiu. Nosso investigador finalmente dava seus primeiros indícios de aventura iniciada com sucesso.

A violência que você vê na TV e Ricardo via nas ruas também estavam presentes lá dentro. Mesmo o rapaz da portaria ter apontado para onde era o caminho, o destino, não, a sede de aventura de nosso investigador, levou para o lado contrário. Ao parar na frente de uma porta entreaberta, escutou gritos de uma rapaz que implorava por sua vida. “Eu vou pagar amanhã, sem falta”, outro soco, dessa vez não levantou. Dizem que cada lugar tem seu próprio inferno, Ricardo estava ciente disso, e o seu fedia a maconha.


“Vai dar uma de louco?”, perguntou o guarda de antes, que havia perseguido Ricardo pelo corredor que tinha escolhido errado de propósito. Correu, até dar de cara com a parede. A porta da esquerda foi a melhor opção, já que estava aberta. Arrastar a mesa para a porta não foi nada fácil, já que a desgraça pesava bastante.

Depois de bastante esforço, o brutamontes do outro lado da porta não conseguiam abrir. Silêncio. Risada. Ao olhar pra trás, Ricardo tem uma visão vinda de um filme de zumbis. Um velho sem camisa, vestindo somente um calção que mal cobria suas coxas. O bastante idade segurava uma sirigina, onde só Satã sabe onde ele já havia enfiado. Sem aviso prévio, o senhor avançou em direção a Ricardo, apontando a seringa na sua garganta. Sem muito esforço, a esquiva foi perfeita suficiente para fazer o velho bater de barriga na mesa que segurava a porta. Grito de dor, chute lateral de Ricardo, o senhor caiu. Analisando rapidamente o quarto, a única saída aceitável era a janela.

Se um tiro não tivesse atravessado a porta e pegado na sua perna, sua fuga já estaria garantida. Seu não aguentaria pular do segundo piso, ainda mais com a perna ferida, pensou. E por mais que arriscasse, o que aconteceria era ficar deitado do lado de fora enquanto os viciados cuidavam do resto. Tinha que lutar. Agarrou a seringa do velho que estava desacordado. Segurou com força enquanto esperava a entrada de pelo menos uns três rapazes naquele quarto. Assim que a porta foi arrombada, o guarda que estava na entrada da boca de fumo já apontava a arma para sua testa. Lutar contra isso? A seringa caiu no chão, a coronhada na orelha esquerda foi avassaladora. Desacordou.

“...um policial não seria burro de entrar aqui, sua anta!”, primeira coisa que escutou amarrado na cadeira. Uma sala fechada, tomada pela fumaça da erva maldita. Ricardo falou a verdade para o cara que parecia ser o manda chuva dos maloqueiros. Mas ele não acreditou. Por mais que nosso investigador aguentasse duas putas, ele não era tão resistente assim. Cada soco doía até a alma. Para sua sorte, um drogado que estava no canto da sala, levantou do nada e começou a gritar. Um dos guardas tentou jogar ele de lado, mas foi em vão. O cara avançou em cima do rapaz armado com uma força fora do normal. Os outros dois guardas que estavam na sala se levantaram assustados, parece que o drogado deu uma de super homem que se chapou de kriptonita, mas deu efeito reverso. Mas nosso super herói gaúcho não segurou as balas que levou no peito. Trocou a vida por uma chapada.

A sorte do nosso protagonista não parava por aí, assim que os tiros cessaram, sons de sirene, gente correndo nas ruas. Parece que tanto alarde tinha atraído os porcos, como os bandidos diziam. “Bora cara, deixa esse merda aí, pega o dinheiro e vai!”, essa frase foi um alívio para os ouvidos de Ricardo. Mas que amontado de merda, pensou. Hematomas no rosto, cortes na perna, uma experiência que o desgraçado levaria pra sua vida miserável. Foi levado preso junto de uma dúzia de viciados. Os reais responsáveis daquela zona de guerra haviam fugido.

Ricardo demorou um dia inteiro para convencer os policiais de que não era ninguém, somente estava lá pra fumar, fecha aspas. Não se importava em mentir para a lei porque nem ele sabia o que estava fazendo ali mesmo. Por mais que tentasse colocar na cabeça que queria um pouco de aventura, por mais que tentasse, a vida sempre dava um jeito de voltar para a mesmice. Dedicaria a vida toda a relatar a violência urbana das ruas em seu blog de merda.

“Rezem pelo Senhor!”, gritou um homem que segurava a bíblia em uma das mãos. Todos que passavam por ele na rua, olhavam de lado. No meio ao tanto de violência que nos rodeia, a religião realmente é uma saída, uma escapatória. Qualquer meio de livrar nossas cabeças de preocupações é bem vinda, mas não pensem que isso vai livrar todos do mal. Era assim que Ricardo pensava e por isso iria continuar sua vida mesquinha. Relatar mortes, sequestros, o que quer que fosse, era o que ele sabia fazer. Investigadores só existem em filmes, séries, quadrinhos, o que for. Essa é a vida real, nua e crua.


Não muito longe do desconhecido que clamava pelo senhor, um velho foi assaltado e violado. Sua vida foi tirada por uma carteira que sabe-se lá quanto de dinheiro tinha dentro. Algum tempo depois, na rua de cima, uma filha se perdeu da mãe, ou foi abandonada? Até a impressão desse conto, sua mãe ainda não foi encontrada. O que vai ser dessa menina quando crescer? Mais uma vítima do sistema que é a vida? Sorteada da merda, teve o azar de não nascer em família rica e provavelmente vai passar a vida toda se drogando, culpando a mãe que sumiu na sua infância. Ou não. Ela pode crescer saudável em sua nova família, estudar em uma escola pública e fazer uma faculdade que sua família possa pagar. O que separa essas duas garotas, uma puta com a vida e a outra conformada com a vida?


E se, por algum milagre, a violência acabasse? O que Ricardo faria da vida? Não sabia. Pra falar a verdade, o dia que a violência acabar, vai ser no dia que o mundo acabar, porque não existe selvageria sem as pessoas.


Fim.





conto escrito por

Douglas Barres
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 06 - A Última Vez

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Antologia de
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Capítulo 06 de 09
"A Última Vez"
J.F. Martignoni


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Depois de dez horas de trabalho braçal, desmontando, limpando, organizando vendendo e instalando peças em um ferro velho que ficava isolado da cidade numa entrada de terra sem identificação na rodovia que ligava a cidade ao município vizinho, eu estava exausto. Era um trabalho desgraçado, sem carteira assinada, perigoso e muitas vezes me deixava questionando a legalidade de tudo o que fazia. Eu trabalhava junto com outros, ambos já haviam passado seu tempo no ambiente carcerário brasileiro. Nada grave, um se envolveu em uma briga em uma casa noturna e quase matou o adversário com socos, joelhadas e chutes; e o outro foi parado em uma blitz bêbado e com algumas gramas de cocaína dentro do veículo. 


Meu patrão não realmente sabia meu salário ou não me dizia, sempre que visitava o lugar em que trabalhávamos me oferecia dinheiro e anotava em vales. Ele pedia quanto eu queria, mas a não ser em casos de extrema urgência eu apenas esperava ele dizer um valor e aceitava. Este também tinha uns processos e quase foi preso, mas não tenho nem ideia do que ocasionou isso.


No meio do galpão de madeira em que eu trabalhava haviam dois pit bull amarrados a motores completos que estavam a venda, quase enfartei a primeira vez que vi um enquanto me dirigia ao banheiro e duvido muito que algum assaltante ouse passar por eles, mas no final das contas eram uns amores extremamente dóceis.


Foi o trabalho que consegui depois de diversos erros nas escolhas profissionais, muita falta de motivação, ego grande demais, que gerou pouco esforço em me manter nos diversos empregos que tive. No auge da minha boa vontade eu consegui ser gerente de um dos setores de uma empresa que vendia joias, entretanto como meu salário em boa parte era comissão ou bonificação por aumento nas vendas, acabei sendo demitido por ganhar demais. Isso acabou com toda e qualquer vontade de crescer que eu poderia ter em qualquer lugar.


Entretanto gosto de fantasiar neste trabalho no qual me encontro, pois realmente parece aqueles locais em que os mafiosos destroem os carros das pessoas que matam, eliminando as evidências. Claro que a maior parte de tudo isso vem apenas da minha mente fértil observando este galpão mal iluminado e sujo, os cachorros de guarda, a maneira que recebo...


Enfim, eu estava exausto, tudo que eu queria era assistir a final do Campeonato Brasileiro, tomar uma cerveja e comer uns amendoins. Quando se trabalha com serviços que você não pode errar, ou o cliente sempre achará que você deve algo pra ele. Não importa se você concerte o erro, devolva o dinheiro ou qualquer outra solução viável. Você errou com ele, ele tem prioridade de prazo, pagamento e mesmo quando estiver fazendo o melhor possível e já ter gastado comprando peças para resolver o problema deles, eles ainda ameaçam troca-lo pela concorrência. Para piorar o mercado está em crise e você precisa desse filho da puta, e este é o meu caso, não que eu receba comissão nem nada, mas se não vender bastante além de uma boa mijada, posso ficar sem emprego. Ai o motivo da minha jornada de dez horas de trabalho nesta quarta-feira. As vezes eu me perguntava como minha vida acabou assim, mas isso era irrelevante.


Decidi parar no caminho da minha casa e assistir o jogo em meio a semiconhecidos e completos estranhos, num boteco vagabundo, daqueles com donos mal humorados, comida gordurosa e cerveja barata e gelada. Infelizmente ao me aproximar pude perceber que o lugar estava lotado em virtude de jogo e tive que estacionar na rua debaixo, e ter uma boa caminhada até o estabelecimento.


- Uma original e uma porção de amendoins. – Gritei umas três vezes para o Beto, dono do boteco e único atendente do barzinho, a outra funcionária era sua esposa que fazia tudo na cozinha. A maioria da pessoas ali já estava bem alterada e falando muito mais alto do que o necessário, precisei gritar para ele uma quarta vez.


Vocês devem estar pensando por que não estou assistindo o jogo em casa, com minha família, ou até curtindo minha mulher e filhos. Que sou um péssimo pai e marido, como todos os outros. Poucos sabem que precisamos desestressar e que mesmo amando nossa família, eles não são os melhores em nos dar paz. Você entra em casa e tem que ouvir de como a vizinha foi uma vaca com a outra vizinha, ajudar o filho com a lição, cortar a grama, arrumar um cano... Quando percebe está caído na cama, sem forças para transar ou se matar. Sim você continua pensando em suicídio depois dos trinta, com família e filhos, principalmente por eles dependerem tanto de você.


Minha mulher acha que não tenho amigos, talvez ela esteja certa. Eu tenho a turma para jogar futebol, a turma para assistir futebol, a turma do poker e a turma da sinuca. Não converso com nenhuma pessoa desses grupos sobre algo que não seja organizar o jogo e a janta, sobre como foi o jogo durante a janta e como estava a janta. Muitos deles eu nem sabia nada sobre a vida, nem o que faziam, o que viviam, o que gostavam além daquilo que fazíamos juntos. Pensando agora boa parte eu nem sei como ou quando começaram a sair com nosso grupo. Hoje eu não queria assistir o jogo com o grupo de assistir jogo, pois as jantas estavam caras e eu estava apertado. Minha mulher não gosta de nenhum deles e não quer que eu saia com nenhum deles. Quando nós saímos juntos, saímos com outro casais. Ou melhor dizendo com suas amigas que acabaram casando, ai ela conversa com as amigas, e eu sou empurrado para quartos com televisões ligadas em canais de esporte com homens que nem sempre sei o nome para interagir sem incomodar. Me sinto uma criança grande.


- Tá na mão. - disse o garçom, enchendo meu copo e largando a garrafa e a porção em cima da mesa.


Os times aqueciam e a torcida cantava ininterruptamente. No bar todos estavam com os olhos focados na tela, esperando o momento de xingar alguém, o que não demorou nada. Logo que o jogo começa o que parecia um clássico se torna um massacre, depois de um gol marcado em uma imperdoável falha do goleiro que erra o passe para o zagueiro logo nos primeiros dez minutos. Considerando que o time já precisava ganhar com dois gols de vantagem pela derrota em casa, isto deixou a todos desesperados, compensando a falta de chutes à gol com faltas desnecessárias. Três jogadores expulsos nos primeiros quarenta minutos e outros dois gols da equipe adversária que tinha oitenta por cento da posse de bola. Esperei o apito que dava fim ao primeiro tempo para ir ao balcão fechar a conta, estava totalmente broxado e só queria seguir o rumo de casa antes da passeata e dos diversos bêbados que dirigem como se estivessem indo tirar a mãe da forca.


- Que jogo de merda, não? – diz o garçom.


- Nem me fale, nos meus dezoito anos nós tínhamos que lutar por vagas nos times enquanto Zico, Pelé, Garrincha... Todos esses caras estavam lá dando um show e jogando com raça, ganhando menos de um décimo que esses moleques hoje em dia ganham para fazer pose pras câmeras. – Desabafei.


- Você jogava bem? – perguntou Beto.


- Eu fui profissional no time da cidade. Nós trabalhávamos de dia e treinávamos de noite. Fui convidado para jogar no Palmeiras, mas minha mãe não deixou. Na época não se ganhava nada, meu salário como vendedor numa loja de departamentos era maior que o que eu ganharia como atleta profissional e eu tinha que sustentar a casa, meu pai gastava toda a aposentadoria com bebida e prostitutas... Fora que eu era um vagabundo, ficava amarrando e desamarrando as chuteiras durante os treinos para não ter que correr. Não me ajudei e ninguém insistiu muito em me levar jogar, sabiam que eu ia ser aqueles que não duram nada por que estão sempre de ressaca. – respondi.


- É uma pena. Se você parar para pensar, quantos foram ídolos e hoje estão na miséria, abandonados por seus “amigos,” alguns até são mendigos de rua. Se bem que meu vizinho que era veterano da Segunda Guerra Mundial teve que trabalhar como pedreiro até os oitenta anos para não morrer de fome.


- É. Não adianta, este é um mundo de merda. – Não estava afim de ficar ouvindo tragédias, peguei meu troco e segui em direção ao carro.


Era um longo caminho de volta, a sensação térmica devia ter baixado uns dez graus desde a hora que cheguei, fui todo encolhido arrependido de estar de bermuda e chinelo de dedos. Nem olhava para o lado, seguia caminhando o mais rápido possível, pois só queria ir embora de uma vez.


Quando cliquei no controle para destrancar o carro percebo que ou as portas não haviam trancado antes, ou não destrancaram agora. Eu estava com esse problema a meses, mas nunca tinha dinheiro para arrumar e nem incomodava tanto, precisava trocar a cama do meu quarto com urgência, isso era o de menos. Tentei abrir e de fato não havia destrancado, botei a chave para abrir a porta manualmente e senti o cano uma arma encostar nas minhas costas, fiquei paralisado.


- Tu vai pro porta mala, o gordão. – disse para mim com uma voz agressiva, mas quase que sussurrando em meu ouvido.


Sempre imaginei que reagiria, que seria o herói do meu próprio filme de ação, mas não. Fui um covarde como fui durante toda a minha vida. Sem coragem de falar para meu antigo patrão que os outros gerentes desviavam e por isso na folha ganhavam menos do que eu, sem coragem de abandonar a casa da minha mãe para seguir meu sonho de ser um jogador de futebol, sem coragem para acabar com um relacionamento que já estava desgastado a anos com a amiga da mulher por quem fui apaixonado durante todo o ensino médio e nunca tive coragem para me declarar... Como sempre, sem coragem para nada. Fui amarrado ali mesmo, no meio daquela rua de calçamento mal iluminada, na quadra debaixo do bar que frequentei minha vida toda simplesmente por ser o mais próximo. Não fui capaz nem de ir aos melhores e provar as comidas e as bebidas que me recomendavam, estava fadado a mesmice pelo medo da mudança e a absoluta falta de vontade.


Enquanto era amarrado, pouco antes de me jogarem no porta malas do meu próprio carro, qual estava sujo a meses, pois nunca tive vontade de limpar. Reparei que estavam em dois, nenhum usava máscara, mas mesmo assim não consegui identificar seus rostos. Discutiam sem parar e se moviam rápido demais, possivelmente por um misto de medo e adrenalina parecido com o que eu sentia. Logo depois de me jogarem para dentro do porta malas como um saco de lixo, arrancaram violentamente com o carro e partiram em uma velocidade desesperada para longe daqui. Eram diversas freadas bruscas e aceleradas cantando pneu que me faziam bater em todos os cantos de onde me encontrava, com as mãos amarradas as costas não conseguia nem defender a cabeça das pancadas, e batida de testa, nuca ou face em intervalos de segundos. O que me deixou atordoado, zonzo e com uma forte vontade de vomitar. O que acabei fazendo em cima de mim mesmo antes da viagem chegar ao fim.


- Vamo mata o gordão, faze o que com esse bosta? – disse um dos assaltantes.


- Mata pra que? Vamo larga ele no mato e já era. Esse carango vai dá alta grana mano. – respondeu o que rendeu.


- Sei não, deixamo ele vivo dá vinte minuto tem polícia atrás de nós.


- Relaxa mano. Tá tudo esquematizado, o Paulão já tá esperando nói lá na Cabana Show, desmanchamo o carro e já era. Ninguém nunca vai sabe de onde vem as peça co número raspado. Até esse burro ai se solta das amarra ou alguém achar ele onde vou deixar já gastamo o dinheiro dessa caralha.


- Ainda acho que tinha que mata ele.


- Cala a boca, porra. Qué fode cum nói? Tá ligado que tipo, carro roubado é um lance. Assassinato é outro. Tá ligado? Os cara vão caça nói. Ai fodeu. Deixa ele vivo, que ai vão bota procura só o carro e nunca vão acha nada. Crime perfeito.


Enquanto isso eu continuava batendo a cabeça, nuca, rosto, costas, joelhos nos saltos e freadas, e me vomitei duas vezes como falei que faria. A situação estava tão ruim ali que eu só queria ser largado no mato e deixar que ficassem com o meu carro. Foda-se o carro, eu só sair desse inferno, não prestaria nem queixa, afinal nem seguro eu tenho nessa bosta.


Depois de mais algum tempo de viagem que pareceu horas, sinto que o carro sai do asfalto e entra numa estrada de chão reduzindo a velocidade e ficando um pouco menos terrível apesar do cheio do meu próprio vômito e das dores que já estavam presentes em boa parte do corpo sem pausas. Finalmente para. O porta mala se abre.


- Meu deus ele se vomitou todo, puta que pariu que fedor caralho.


- Anda tira ele logo dali.


Era uma escuridão total, agora sim não tinha mais chances de ver nenhum deles. Um que estava a direta como se fazendo vigia e segurava um flash de celular em mim para que o outro pudesse me tirar do carro e me despejar por ali seja o que fosse aquele lugar. Fui jogado no meio do que eu esperava que fosse barro. Não sabia onde eu estava, não ouvia carros ou qualquer som urbano. Na verdade nada além da conversa daqueles homens desconhecidos e alguns mosquitos que insistiam e pousar em meu ouvido.


A adrenalina e o medo daquele momento estavam estranhamente passando, não por uma segurança em estar ali jogado o que poderia ser fatal de diversas maneiras por si só. Possivelmente este seria meu fim, nunca conseguiria me soltar ou encontrar ajuda, eu morreria de inanição, ou picado por uma cobra, devorado por algum animal selvagem. As chances contra mim eram imensas, e eu sabia disso, tive um momento de tranquilidade e clareza, uma espécie de total rendição e aceitação do meu destino.


- Vamos deixar ele aqui?


- Sim só larga ai e vamos embora.


- Vamos ao menos dar uns chutes nele para ele ficar desacordado.


- Cala a boca mano, vamo pro carro agora. O Paulão está nos esperando.


Neste instante parei pare refletir o que ainda não havia chamado minha atenção: Paulão era o nome do meu chefe, e claro que as acusações que ele recebia era de ter peças sem nota fiscal, o que ele alegava ser apenas desorganização e perda de documentos. Eu podia estar apenas delirando agora, e tudo ser uma grande coincidência, ou ironicamente outro cara iria ser mal pago para desmanchar o meu carro, por não ter um emprego melhor e nem entender o que se passa na empresa. Estes caras talvez eram também contratados para roubar os carros e era tudo um grande esquema. Ou eles podiam forçar o Paulão a comprar e ele ser uma boa pessoa que se meteu em uma fria, comprando uma vez por precisar urgentemente do dinheiro e nunca mais ter conseguido parar. Ou quem sabe nunca nem quis comprar e só foi forçado por estes bandidos como fui forçado a vir parar aqui. Também pode ser que eles nem estejam falando do meu chefe, afinal quantos homens no mundo tem o apelido de Paulão?


Não ouvi seus passos ganhando distância, pois estava distraído demais com meus próprios pensamentos e teóricas, o que foi abruptamente cessado com as portas do carro batendo forte e o motor de partida sendo acionado. Eu estava de volta ao presente e pensando no que realmente importa, que é o que diabos farei depois que eles forem embora?


Eu estava com os braços e pernas amarrados, deitado de lado esperando que eles fossem embora para tentar me soltar, por alguma razão neste exato momento achei que era uma possibilidade real. Todavia, antes do carro arrancar a porta se abriu, desta vez ouvi os passos se aproximando de mim. O homem ligou o flash do celular e mirou-o em mim, eu só via aquela luz, as luzes vermelhas dos faróis traseiros do carro e uma lua minguante.


- Cê tá indo aonde? – gritou o bandido que ficou no carro.


- Peraê. – respondeu o outro.


Ouvi dois disparos e senti como se duas brasas atravessassem meu corpo, era uma sensação estranha. Havia dor obviamente, mas não era exatamente como eu imaginava que seria, sentia algo mais como uma queimadura. Era estranho mesmo.


- Pra quê mantar ele? – berrou enfurecido o que estava no carro.


Eu meio que já havia aceitado isto desde que entrei no porta-malas, então fiquei em um silêncio apático. O sangue quente que saia de mim encharcava minhas roupas, e junto com ele um frio febril tomava conta do meu corpo. Ouvi os passos se afastarem, a porta bater novamente. Vi as luzes do carro se afastando até não conseguir ver mais nada.


conto escrito por

JF Martignoni
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 07 - O Assassinato de Estevão Molina

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Capítulo 07 de 09
"O Assassinato de Estevão Molina"
Hikaru


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Gilberto Molina pisa o asfalto quente e caminha sem pressa. Avista adiante um caminho de pedras em meio a um gramado mal cuidado e também alguns bancos de pedra. Mais ao longe, um coreto se ergue com falsa imponência. Uma barraca simples se situa a poucos metros.

Detrás do balcão da barraca, uma pessoa de meia-idade observa.

- Pensei que não o veria tão cedo.

Gilberto se aproxima e debruça sobre o balcão. Pega uma garrafa.

- Me dê uma dessa.

O atendente se vira e estica o braço, pegando a bebida.

- O que traz você aqui?

- Negócios.

- Steve foi morto uns dias atrás...

Gilberto olha bem fundo nos olhos do atendente.

- Não sou tão descuidado, Guido.

- Mas é prudente?

Gilberto continua encarando Guido enquanto leva a garrafa outra vez à boca. Em seguida, tira uma nota do bolso e deixa sobre o balcão.

- Você fala demais.

O homem atravessa o gramado, indo em direção a um dos bancos de pedra. Ao se acercar do assento, porém, seu olhar é atraído por uma visão no outro lado da praça.

Uma menina, de no máximo quinze anos, vem devagar, cabisbaixa, carregando uma mochila nas costas. Ela se dirige para o mesmo banco de Gilberto, mas, ao notar a presença do homem, desvia-se rapidamente.

Gilberto não a conhece, mas, por algum motivo, decide prestar atenção nela.

Ele vê quando a menina se senta em outro banco, próximo ao asfalto, e descansa a mochila no chão. Ela evita olhar para frente e brinca com os fios de cabelos loiros. Vez por outra, ajeita os óculos.

Gilberto dá de ombros. Provavelmente mais uma dessas jovens problemáticas que resolveu sair de casa. Acende um cigarro. Neste instante, escuta um ronco de motor.

Um veículo desce a toda velocidade. Gilberto olha para a barraca, e nota a reação preocupada de Guido. A menina continua olhando para o chão. De repente, o carro freia ao lado dela. A porta lateral se abre e dois braços fortes se projetam dali, agarrando a menina e a puxando para dentro do carro. Em seguida, o veículo arranca, mais rápido do que quando viera.

Gilberto e Guido se entreolham por um instante e, no instante seguinte, Gilberto está correndo em direção ao seu carro.

- Gilberto! Não seja idiota, volte aqui!

O homem não dá ouvidos. Agarrando o volante com força, dá a partida e dispara.

O carro de Gilberto é um modelo antigo. Por isso, mesmo que acelere tudo que possa, é impossível alcançar o carro da frente.

- Que droga! Eu já devia ter trocado essa lata velha!

O homem engata a marcha e pisa fundo, mas a distância entre os dois veículos não se altera. Gilberto suspira e olha para fora.

Montanhas, árvores e postes passam um atrás do outro com grande rapidez, em sentido contrário, e pessoas de bicicleta parecem estar pedalando para trás. As casas começam a rarear e a dar lugar a pastagens.

Gilberto conhece aquele lugar. Sorrindo, vira o volante e conduz o carro para uma dessas pastagens, entrando numa estradinha de terra que passaria despercebida ao motorista menos atento.

Kuroda olha pelo retrovisor.

- E aí, cadê o cara?

- Sumiu.

Ramalho olha para o vidro de trás, preocupado.

- Me deu a impressão de ser o Molina.

- Molina?

O homem meneia a cabeça. Kuroda engole em seco e faz menção de pisar o pedal do acelerador. Ramalho o detém.

- Não precisa se preocupar. Ele não tem provas.

No banco de trás, calada, Júlia escuta a conversa dos bandidos. Não faz ideia do que estão falando e não demonstra nenhum interesse. Ao seu lado, Gomes a mantém sob a mira de uma arma.

- O que faremos com essa franguinha aqui?

Ramalho se vira novamente e passa os olhos sobre Júlia.

- Não sei. Pensei que a gente podia se divertir um pouquinho.

Kuroda entende e arregala os olhos. Júlia também. Ela olha para Gomes e depois para Ramalho, a princípio sem dizer nada, mas por fim, fala num fio de voz:

- A polícia vai vir atrás de vocês ...

Gomes explode numa gargalhada e, depois, tira um distintivo do bolso.

- Está bom pra você?

Júlia volta a se calar, enquanto Gomes e Ramalho continuam rindo. Apenas Kuroda não participa da zombaria, continuando a dirigir, apreensivo.

O veículo sai da estrada principal e envereda por uma trilha no mato, até parar numa espécie de clareira. Ao longe, ouve-se o murmúrio ritmado de águas batendo nas pedras.

Júlia se encolhe no interior do veículo.

- Calma, garota, nós não vamos lhe fazer nenhum mal. - diz Gomes. – Ainda.

Ele coloca a pistola no rosto de Júlia e pressiona o cano na pele dela. Julia comprime os olhos, esperando o tiro.

- Para com isso, Gomes.

- Quê que há, Kuroda? Tá gostando dela?

- Eu acho que é isso – zomba Ramalho, abrindo a porta do carro. – Tá apaixonado pela franguinha.

Kuroda não responde. Gomes guarda a pistola e também sai do carro. Ele dá a volta e abre o porta-malas, de onde tira uma mochila de viagem.

- Eu e o Ramalho vamos lá negociar com o cara. Fique aqui com a garota.

Kuroda novamente não diz nada, apenas observa os comparsas se afastarem para fora da clareira, sem pressa. O motorista tira a chave da ignição e bota no bolso.

Julia também está quieta.

- Qual é o seu nome, menina?

Ela vira o rosto.

- Eu não concordo com o que eles estão fazendo. Estou aqui a contragosto.

Ela permanece sem encará-lo. Kuroda suspira.

- O Capitão Gomes está me chantageando. Eu ... – reluta. – Eu matei um homem sem querer.

Julia dá uma olhada de canto de olho para ele e, por fim, pergunta:

- Sem querer?

- Sim. Eu sou padeiro. Um bandido entrou no meu comércio atirando e eu tentei desarmá-lo tacando uma faca. Só que eu errei e atingi outro cara na barriga. O capitão Gomes viu tudo.

- E quem era esse outro cara?

Kuroda demora um pouco pra falar.

- Estevão Molina.

Júlia franze a sobrancelha.

- Não conheço.

- Era um dos chefões do crime organizado. Rival do Gomes e do Ramalho. Era cliente da padaria, não mexia comigo. Ia sempre lá de manhã tomar um café e bater papo. Um cara maneiro.

- Vocês eram amigos?

- Não, amigos não. Mas definitivamente não era meu inimigo.

Júlia esquece um pouco a situação em que se encontra e se debruça sobre o encosto do banco da frente.

- Pensando bem, você não parece mau.

Kuroda sente o rosto queimar.

- Obrigado.

- Me deixa ir embora.

O homem abaixa a cabeça.

- Eu deixaria se pudesse.

- Eles vão me matar, não vão?

Kuroda não responde.

- Eles vão se aproveitar de mim e, depois, vão me matar. É isso?

- Sim – o homem parece contrariado.

- Você não é bandido, Kuroda. Não se envolva em mais um crime. Deixa eu sair.

- Não posso. Você viu o nosso rosto, escutou o que viemos fazer. Se você sair, vai nos denunciar!

- Eu juro que não conto pra ninguém!

Kuroda dá uma risada nervosa.

- Por que a gente não foge junto, então?

- O que? – o homem olha para a menina, incrédulo.

- Minha mãe me expulsou de casa. Eu não tenho pra onde ir. Por isso eu estava naquela praça, com a mochila. Ninguém vai dar a minha falta.

- Está falando sério?

- Sim! Eles nunca vão nos encontrar! Mas temos que sair agora, Kuroda. Antes que eles voltem.

Kuroda parece gostar da ideia.

- Tá certo. – ele tira a chave do bolso e recoloca na ignição. Porém, antes que o carro se desloque, um cano de revólver é apontado para a cabeça dele.

- Vai a algum lugar, Masami Kuroda?

Gomes e Ramalho chegam num local próximo à praia. Está deserto, a não ser pela presença de quatro homens de preto. Um deles segura uma maleta.

- Demoraram!

Gomes deu de ombros. Ramalho apanha a mochila e a coloca no chão, diante deles.

- Podem verificar.

Um dos homens se aproxima e abre a mochila. Neste momento, porém, policiais saem do mato, gritando:

- Pegamos, Coronel!

Na mesma hora, Gomes aponta a sua arma para Ramalho.

- O que é isso, cara?

- Foi mal. É você ou eu. – e atira.

Os homens de terno, entendendo a manobra, atiram em Gomes, mas o capitão se esquiva e atinge um deles. O da maleta corre, mas é acertado pelo Coronel. Só restam dois, que se rendem.

O Coronel se aproxima.

- O que faz aqui, Gomes?

- O mesmo que o senhor, Coronel. No meu caso, eu me infiltrei na quadrilha para apanhá-los.

Os bandidos que sobraram se entreolham, confusos. O Coronel faz um movimento e eles são algemados. Gomes olha para o corpo de Ramalho.

- Bem, preciso ir. Minha missão acabou.

O Coronel o detém por um instante.

- Saiba que estou de olho em você, capitão.

Gomes o encara.

- Tudo bem. É o seu dever.

Os dois ficam parados, e, por fim, o Coronel o deixa ir. Os policiais permanecem no local, averiguando.

Júlia e Kuroda estão paralisados.

- Não atire, por favor. Eu não queria matar o Estevão.

- Eu sei disso.

Kuroda olha para o homem armado.

- O que foi que disse?

Gilberto Molina se certifica de que não há ninguém por perto.

- Eu sei o que aconteceu. Meu irmão entrou na padaria no exato momento em que um bandido começou a atirar. Acredito eu que ele pretendia pará-lo. Mas você jogou a faca e acertou Steve.

Kuroda baixa a cabeça.

- O Capitão Gomes entrou em seguida e você se escondeu atrás do balcão, com medo de ele ter visto a cena. Gomes trocou tiros com o bandido, o matou e, aproveitando a oportunidade ... – Gilberto cerra o punho – deu o tiro de misericórdia no meu irmão.

Kuroda parece surpreso.

- Não acredito! Como você sabe de tudo isso?

Gilberto suspira.

- Eu tenho minhas fontes.

Kuroda sente uma mistura de alívio e preocupação.

- Então, o que pretende fazer?

- Não é óbvio? – Molina sacode a pistola. – E você vai me ajudar.

- Não, não, me tira dessa – protesta o padeiro. – Eu não quero ser cúmplice da morte de ninguém!

Gilberto o empurra. Júlia se manifesta.

- Deixa a gente ir embora primeiro.

- Ninguém vai embora até que eu ponha as mãos naquele safado. Mas fica tranquila. Ele é quem vai pagar, não vocês.

Neste instante, ouvem passos.

- É ele. Está voltando!

- Eu vou pra trás do carro. Não tentem nenhuma gracinha.

Gomes chega.

- Vamos, Kuroda. Estou precisando relaxar.

Kuroda não esboça reação.

- Kuroda! Estou falando com você, imbecil!

- Eu não sou imbecil.

Gomes estranha.

- O que é que você tem?

- Onde está o Ramalho?

O capitão hesita um instante antes de falar:

- Deu ruim lá. A polícia chegou, houve troca de tiros. Você não ouviu?

- Sim, de longe. – Kuroda está calmo.

Gomes, desconfiado, olha ao redor.

- Tem mais alguém aqui?

- Tem.

Na mesma hora, Gilberto Molina sai de trás do carro com a pistola em punho. Gomes dá uma risada de desdém.

- Ora, ora, o que temos aqui. Uma conspiração.

- Não vamos perder tempo, capitão.

Um novo tiroteio se inicia. Molina atira, mas o policial desvia. Kuroda também dispara, e novamente Gomes se safa. Este atira de volta e acerta a cabeça do padeiro. Júlia dá um grito. Kuroda cai no chão, morto.

- Não! Kuroda, Kuroda!

Gomes se aproveita da situação e agarra a menina.

- Largue a arma, Molina. Senão, ela morre.

- Eu não a conheço, não me importo.

- O quê? Estou falando sério, Molina!

- Eu também – e engatilha.

Júlia fecha os olhos e espera a bala atravessar o seu corpo. Porém, no último instante, Gomes a joga no chão e sai correndo. Gilberto mira e atira. Gomes se choca contra uma árvore e fica ali, imóvel.

Molina caminha devagar até o corpo do policial e o examina de longe. Gomes não esboça nenhuma reação. O irmão de Estevão Molina saboreia a sua vingança com prazer, mas também com certo enfado. Fora muito fácil. Esperava mais adrenalina.

- Pois é, capitão. O mundo dá voltas. Dias atrás, era você na minha situação, com Steve agonizando no chão. Agora sou eu. Mas não sou covarde como você. Não vou te dar o tiro de misericórdia.

Ele se volta para Júlia, que permanece no chão, cabeça baixa, aguardando o desfecho do caso. Molina passa por ela, sem se importar e entra no seu carro. Em seguida, pensando melhor, a chama.

- Quer uma carona?

- Não.

O homem balança a cabeça e dá a partida. O carro se afasta. Júlia, então, engatinha até o cadáver de Kuroda e segura a mão dele.

- Eu não tive a chance de agradecer, Kuroda. Obrigado por tentar me salvar. – e, fechando os olhos, com raiva, promete em tom solene: - Eu vou vingar você.

Em seguida, ela pega um pedaço do vidro do carro, que se estilhaçara no tiroteio, vai até Gomes e finca nas costas do policial. Ele, que estivera se fingindo de morto, é pego de surpresa e se ergue violentamente. Júlia toma um susto.

- Meu Deus!

Gomes urra de dor e tenta apanhar o seu revólver, que está caído ali perto. Porém, com o sangue escorrendo pelo ferimento, ele começa a perder as forças e a ter a vista turva.

- Des... graça... da...

Júlia corre e taca uma pedra em Gomes. Ele continua andando na direção do revólver. Júlia taca outra.

-Eu... vou...

Júlia salta e taca uma terceira pedra. Esta acerta na testa do homem, como Davi e Golias. Já amortecido pelo vidro em suas costas, a consciência apagando, Gomes cambaleia mais alguns passos, braços estendidos a esmo e por fim, cai, pesadamente. Júlia apanha o revólver e termina o serviço.

Nesta mesma hora, uma viatura da polícia passa e, vendo a cena, estanca. As luzes dos holofotes batem na menina de quinze anos com a arma na mão, expressão assustada, incrédula do que acabara de fazer.

- Parada aí, mocinha! Não faça um movimento!

Num instinto, Júlia dispara contra a viatura. O tiro quebra o vidro dianteiro, mas não atinge ninguém. Sem perder tempo, ela corre pra dentro do mato e os policiais descem do carro, prontos para persegui-la. Porém, o Coronel, sem nenhuma razão aparente, faz sinal para todos voltarem.

De dentro do mato, Júlia Olsson observa a viatura dar meia volta e desaparecer. Ela respira, um misto de alívio e medo.

No dia seguinte, com grande pompa e salva de tiros, o corpo do capitão José Gomes é conduzido pelo cemitério. Numa grande passeata, oficiais, amigos e familiares, se reúnem para dar o último adeus ao capitão, amigo da vizinhança, morto em combate com marginais enquanto desbaratava um imenso esquema de contrabando no cais do porto.

Em outro ponto, numa cerimônia mais modesta, um pequeno punhado de pessoas assiste a um funcionário baixar o caixão de Masami Kuroda.

Um rapaz agarrado à sua mãe chora bastante.

- Porque o pai, mãe? Com tanta gente ruim pra morrer, matam logo o pai – lamentava-se o rapaz, soluçando.

- Deus sabe o que faz, filho. Chegou a hora dele.

- Que Deus é esse, que determina um jeito tão cruel de uma pessoa morrer?

A mãe não responde, nem faz questão. Está abalada demais para questões dessa natureza. Uma mulher, porém, intervém.

- Pode ter certeza, menino, que Deus não tem responsabilidade nenhuma nisso. O homem gosta de botar a culpa em Deus em tudo. Mas o que realmente acontece é que as pessoas escolhem seus próprios caminhos, sem refletir no que vai dar.

A esposa de Kuroda olha para a mulher, depois para o filho e não diz nada. O rapaz também não. Apenas continua chorando.

Escondida entre os túmulos, uma menina de quinze anos observa a cena e escuta a conversa. Concorda mentalmente. A mulher conclui:

- A memória de seu pai não foi apagada.

O rapaz a abraça, assentindo com a cabeça. A mãe continua calada. O caixão é depositado na cova. Salva de tiros, não por Kuroda, mas por Gomes. Ouve-se, de longe, o discurso de uma alta patente, louvando os feitos do capitão.

Júlia sente vontade de falar com a família de Kuroda, mas se refreia. Provavelmente, seria reconhecida. Seu retrato falado já deve estar circulando pelas redes sociais. De repente, ela olha e vê um rosto conhecido.

Gilberto Molina!

Júlia sente o ódio reacender dentro dela.

- Foi por sua causa que o Kuroda morreu – pensa a menina, fechando os olhos. – se você tivesse nos deixado sair, hoje essa família não estaria chorando!

Gilberto não vê Júlia entre os túmulos. Ele está de longe, de roupa escura, numa posição que permite ver o enterro tanto de Gomes quanto de Kuroda. A Ramalho não enterraram; parece que seu corpo ainda está no Instituto Médico Legal.

Para Júlia, perdeu o interesse ver o enterro do padeiro. Agora, suas atenções se voltam para Gilberto Molina. Está com a ideia fixa de vingança. Quer acertar as contas com ele, fazê-lo pagar pela morte do homem que poderia ter sido um grande amigo.

Gilberto, alheio aos olhares da menina, dá de costas e começa a descer as escadarias. Outra salva de tiros. Júlia se desloca, sempre atrás das tumbas, e vai seguindo Gilberto até que o vê entrando no carro dele. Atendendo a uma ideia de súbito, pega o celular e focaliza a placa do carro.

O veículo arranca e se mistura aos outros veículos que perambulam pela cidade.

Guido está no balcão, como de costume.

- Então, deu cabo do Gomes?

Gilberto, sem se preocupar com os outros clientes, faz que sim com a cabeça. Toma uma golada generosa de cerveja.

- E a menina?

- Que menina?

Guido não responde. Gilberto olha para cima, como se consultasse a própria mente.

- Ah, sim, aquela novinha. Não sei que fim levou. Recusou a minha carona.

- Ela pode te dedurar pra polícia.

- Pode. – e toma mais um gole. – Mas não faz mal. Eles já estão atrás de mim, mesmo.

Guido acha graça.

- Então, o que faz aqui, dando sopa, à luz do dia?

Molina o encara com os seus olhos penetrantes.

- Eles precisam me pegar. Não adianta só saber onde eu estou.

Um dos clientes olha espantado para Gilberto e sai de perto. Guido ri. Molina, não. Devolve o copo ao balcão e se afasta, postura altiva, peito aberto, ombros pra trás.

Ao se curvar para abrir a porta do carro, é surpreendido por um cano de revólver em suas costas.

- Agora é a sua vez, desgraçado.

Molina reconhece a voz.

- O que pretende fazer, menina? Sabe mexer nesse negócio?

- Não foi você que matou o Gomes – responde Júlia, engatilhando. - Fui eu.

Gilberto Molina tenta se virar, mas a menina pressiona a arma ainda mais em suas costas. Na rua, a multidão começa a juntar. Guido desce correndo.

- Ele já pagou pela morte do Kuroda. Falta você.

- Menina, eu não atirei no padeiro. Foi o Gomes. Você viu.

- Mas foi você que meteu a gente nisso! - grita Júlia, chorando. Seu dedo começa a tremer no gatilho do revólver. Molina tenta manter a calma.

- Olha, eu sinto muito pelo seu amigo. Eu sei o que você está sentindo. O Gomes matou o meu irmão! Mas o fato de ele ter morrido não trouxe o Steve de volta. - Gilberto sente que Júlia afrouxa a pressão da arma. - Me matar não vai trazer o Kuroda de volta.

Sirenes de polícia se aproximam da praça.

- Larga essa arma, garota! - grita Guido – Você vai se complicar ainda mais!

Júlia sacode a cabeça e, num impulso, empurra Molina de encontro ao carro. Este tenta tomar-lhe a arma e segura o braço dela. Guido sai do meio da multidão e a agarra por trás.

- Me larga!

Gilberto Molina dá um tapa no rosto de Júlia e finalmente toma o revólver. Ela cai no asfalto e se encolhe. Molina engatilha, mas Guido o impede.

- Pára, Gilberto! Não precisa disso.

- Precisa sim – e aponta as pessoas ao redor. - Todo mundo precisa saber o que acontece com quem desafia Gilberto Molina!

As pessoas se desesperam e começam uma algazarra. Uma execução à luz do dia, na frente de todo mundo! Júlia, chorando, fecha os olhos e novamente espera a bala atravessar o seu corpo.

Dois disparos.

Molina arregala os olhos, surpreso, e coloca a mão nas costas. Está ensanguentada. Guido bota a mão na boca e apara o corpo do irmão. Júlia abre os olhos, também surpresa. Mais uma vez, saiu ilesa. A multidão se volta pra direção de onde viera os tiros.

O Coronel aparece de pistola empunhada. Atrás deles, meia dúzia de policiais também armados, abrem caminho entre as pessoas. Molina, nos braços do irmão, olha espantado, sem entender o que aconteceu.

- Não se preocupe, Molina. Vamos te levar ao hospital e, com um pouco de sorte, você vai sobreviver. Homens, levem-no.

Quase inconsciente, Gilberto se deixa levar pelos policiais até uma ambulância. Guido fica ali, com Júlia. A multidão se dispersa. As viaturas vão embora.

Júlia olha para Guido.

- Obrigado por tentar me salvar.

- Não precisa agradecer. Meu irmão não é má pessoa, só tem pouco juízo. Eu cansei de avisar a ele pra não entrar nessa vida.

Júlia abaixa a cabeça.

- Eu só queria que o Kuroda estivesse vivo.

Guido coloca a mão no ombro dela.

- Tem coisas que a gente não pode mudar. - e se afasta.

Júlia se levanta e observa o dono do bar voltar para o estabelecimento. Ela pensa em como seria a sua vida se Kuroda não tivesse morrido. Balança a cabeça. Não tem como saber. Frustrada por não ter dado cabo do Molina, a menina sobe a rua em direção à sua casa, até que se lembra que sua mãe a expulsara de lá.

Decide sentar na praça. Depois de escapar da morte várias vezes, é hora de pensar em seguir a vida.



conto escrito por

Hikaru

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 08 - Sombra do Medo

    0:00 min       VIOLÊNCIA URBANA     ANTOLOGIA LITERÁRIA
10:00 min    


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CONTOS CONTEMPORÂNEOS DA VIOLÊNCIA URBANA


Antologia de
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Capítulo 08 de 09
"A Sombra do Medo"
Gabo Olsen


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Este conto foi inspirado em fatos reais.
O olhar esconde grandes segredos, opressões, medo. Eu sofria calada na minha infância. Quem poderia imaginar que dentro da sua própria casa moraria o perigo? Eu me chamo Júlia, tenho 17 anos e estou terminando o terceiro ano do ensino médio. Nunca conheci meu pai, ele foi vítima de um assalto e, ao se defender o bandido não pensou duas vezes e atirou no meu pai. Já a minha mãe, conheceu o Antônio, um frentista que se apaixonou por ela e aceitou cuidar de mim. Na infância, por volta dos meus 11 anos, enquanto a minha mãe trabalhava como faxineira na vizinhança, o Antônio consertava aparelhos eletrônicos em casa e a noite trabalhava no posto. De vez em quando, ele entrava no meu quarto, me observava e brincava comigo. Ele me pegava no colo e me acariciava, eu achava normal, mas um dia ele me pediu para tirar o vestido, eu recusei e sem repetir a pergunta, o Antônio ergueu o meu vestido a força, baixou a calça dele:

- Hoje você vai virar mocinha.
- Como assim? O que você vai fazer? - eu respondi, apreensiva.
- Você já vai saber.

Ele se aproximou de mim, retirou o resto da minha roupa e a pior sensação da minha vida aconteceu. Eu gritava, e ele falava para eu calar a boca, se não ele iria me dar uma surra.

- Escuta aqui, menina, se você contar o que aconteceu para a sua mãe, eu te mato. Você entendeu?

Eu estava em choque, não conseguia responder. Ele deu um tapa no meu rosto.

- Você entendeu, Júlia?
- Sim, entendi. Eu não vou falar nada.
- Muito bem. Agora vá tomar banho e volte a brincar.

Durante o banho eu chorava sem entender o que estava acontecendo. A partir deste dia o medo passou a fazer parte da minha vida. Ficar em casa na presença do meu padrasto passou a ser um pesadelo. Quando minha mãe chegava do trabalho, o Antônio sempre me observava para ver se eu falaria algo. Eu estava perdida, sozinha, sem poder pedir ajuda para alguém. Minha fuga foi gritar no travesseiro, desta maneira ninguém me escutava. Ao levantar eu alcancei meu diário e resolvi desabafar, coloquei no papel tudo o que eu estava sentindo.

Certo dia, na sala de aula, a professora passou uma lição e pediu que cada aluno lesse individualmente um texto. Ao passar pelas carteiras para conferir a atividade, ela parou na minha frente e viu uma marca no meu braço, eu rapidamente escondi com a blusa de frio.

- O que é isso Júlia?
- Não é nada, professora.
- Eu vi a marca. Não tem nada que você queira me dizer?

Eu fiquei em silêncio por um instante. A voz do Antônio me ameaçando ecoava em minha mente:

“Se você contar para alguém eu te mato, menina”.

O meu pensamento foi invadido com a voz da professora.

- Júlia, você não vai me responder?
- Anteontem acabou energia lá em casa e eu bati na cômoda. - respondi, nervosa.
- Certeza que foi isso? - perguntou desconfiada.
- Sim, professora.

Ela me encarou e seguiu seu rumo. Respirei fundo, abaixei a cabeça.

- Essa foi por pouco.

Durante o intervalo a Cidinha sentou do meu lado e entreguei um pedaço do meu lanche à ela.

- Obrigada por dividir o lanche comigo. Ontem eu nem jantei.

Enquanto comíamos o lanche, eu observava as crianças se divertindo. Fechei os meus olhos e a imagem do Antônio abusando de mim veio como um pesadelo. Eu dei um grito e a Cidinha se assustou.

- O que foi, Júlia?
- Não foi nada.

Por um descuido eu puxei a blusa e ela viu a marca.

- De novo essas marcas, Júlia? Alguém te bateu?

Eu fiquei sem reação. Minha vontade era desabafar, gritar, colocar pra fora, só que o medo do Antônio era maior.

- Júlia?

Uma lágrima escorreu do meu rosto. Eu tentei controlar o choro, porém foi impossível.

- Eu não aguento mais.
- O que houve? - Cidinha perguntou preocupada.
- Eu não posso falar, me desculpe.

Eu saí correndo. A Cidinha veio atrás.

- Júlia, confia em mim. Me fala o que aconteceu.
- Você precisa me prometer que não vai contar a ninguém.
- Eu prometo.

Sem saída e precisando colocar tudo pra fora, eu contei pra minha melhor amiga. Ela ficou horrorizada. No dia seguinte o meu mundo desabou. Fui surpreendida com a mãe da Cidinha e a professora me interrogando. Eu chorei e falei pra Cidinha que nunca mais falaria com ela. A professora chamou minha mãe e o meu padrasto. Ele negou todas as acusações.

- Essa menina é louca. Eu nem chego perto dela.

Minha mãe me olhava com ar de reprovação. Eu fechei meus olhos e todas as palavras que o Antônio soltava eu sentia medo do que aconteceria depois e, assim se concretizou. Ele me bateu no rosto, nos braços, nas pernas, eu chorava, gritava e sem forças, cai no chão. O Antônio me puxou com força do chão, rasgou a minha roupa e novamente eu fui abusada. Tive que ficar com blusa comprida para esconder todas as marcas. Depois desse dia eu fui surpreendida com uma arma, com a qual ele me ameaçou.

- Sua filha da puta, que merda foi aquela na escola? Você acha que vai escapar de mim?

Permaneci em silêncio.

- Nunca. Você ouviu? Você nunca vai escapar das minhas mãos. - gritou

Ele me chutou.

- Você será minha e de mais ninguém. Se você abrir essa boca, essa arma vai direto na tua cabeça. Você só sai dessa casa direto pro caixão.

Essas palavras doeram tanto, minha vontade era morrer, só assim todo esse sofrimento acabaria.

Os anos se passaram e minha mãe nunca acreditou em mim. Sem esperanças de mudar de vida, tentei fugir, fui encontrada, esse ogro sentia prazer em me fazer sofrer; Minha vontade de viver já não existia mais. Ficava deitada na cama, nem passava pela minha cabeça que eu estava com depressão, causada pelos abusos sofridos pelo meu padrasto. O único local que eu tinha confiança era quando eu desabafava no meu diário.

Aos 18 anos, cansada de sofrer, eu bolei um plano. Falei pro Antônio que eu precisava levar o Doug ao veterinário. Ele aceitou ir comigo. Na clínica, eu fiz o check-in e pedi para o Antônio ficar com o Doug na sala de espera enquanto eu ia ao banheiro. Na recepção, eu entreguei uma carta às recepcionistas. Elas perceberam que eu estava com as mãos trêmulas. Rapidamente eu saí do local e voltei à sala de espera. Quando as recepcionistas leram a carta elas perceberam o perigo:

“Chame a polícia, eu sofro abuso há mais de 5 anos e não aguento mais. O meu padrasto está com uma arma. Por favor me ajudem.”

As recepcionistas entraram em ação. Os minutos pareciam horas e o meu receio de tudo dar errado era grande. Um tempo depois, os policiais chegaram e foram até à sala e intimaram o meu padrasto. Ao erguer a camiseta dele encontraram a arma. Ele olhou em meus olhos e aquele olhar fez com que um filme passasse em minha mente mostrando tudo o que eu sofri. Em seguida, ele saiu da sala, nesse instante eu chorei, ergui minha blusa e mostrei os machucados para os policiais, abri a bolsa e entreguei o meu diário. Tudo o que eu sofri estava escrito naquelas folhas que me acompanharam nesse período.

Novamente, o tempo passou, as sequelas ficaram, à noite eu tenho medo dele aparecer a qualquer instante. Já não moro mais com minha mãe, to bem distante, sem endereço, sem rumo, deixei para trás tudo o que me fez sofrer, não será fácil me reerguer, no momento nem quero pensar nisso, só quero tentar fugir do medo que me persegue a todo instante, será que eu vou conseguir? Acho difícil. No fim lembro que eu consegui ajuda, então pode ser que um dia eu consiga construir minha família e levar a vida, porque a paz eu nunca vou encontrar. A imagem daquele ser nunca vai sair da minha mente. Esse será o pesadelo que vou carregar para sempre. O Antônio será a sombra do medo.



conto escrito por
Gabo Olsen


produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.