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 O FIEL SEGUIDOR


CONTO ESCRITO POR

Pedro Montanaro

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I: O seguidor:

 

Já não era a primeira vez que Leandro conectava-se, durante a madrugada, para stalkear gente aleatória pelo Facebook. Isso vinha se repetindo desde as mortes de Monalisa e Arthur (Turzinho, de coração), esposa e filho, em julho do ano passado, ou quase isso. Um acidente de carro que, segundo o delegado Sandro Coelho, teria sido absolutamente evitável não fora a negligência, a gasolina de procedência duvidosa e a falta de manutenção no carro velho. 

Não precisaram gastar com o enterro ou cremação, pois o acidente já havia se encarregado de tão árdua tarefa. Restos mortais de Monalisa. Arthur havia sido comido.

Culpava-se, o Leandro. Todo e qualquer tipo de pensamento intrusivo de ódio próprio e tentação de promover-se a cadáver lhe possuía a alma e comia-lhe a carne. Para dopar-se do inferno, tendo em vista a delicadeza da situação, invadia as intimidades alheias expostas em redes de forma tão social e dissecava cada atualização, interpretava cada legenda, entusiasmava-se com cada desgraça e masturbava-se com cada família. Em olhos de ressaca, a antropofagia, ele. Eram os cliques, a inveja, o ódio e a cobiça. Pelo menos, não era mais a culpa.

 

II: O autor:

 

E eram alguns textos, também. Leandro era professor, autor e diretor de teatro. Dramaturgo com tudo dentro, portanto. Escrevia, desde a época do acidente, lá em Piracicaba, peças, monólogos e tantos outros autos que imitavam cenas familiares. Desde discussões de relacionamento, passando por uma volta pelo supermercado em um domingo depressivo, até cenas de morte, velório, morgue, enterro, exumação e um Pai Nosso. Era, se você quiser ver desta forma, um tipo de descarrego psicológico que ocorria entre a psique de Leandro e o palco.

Antes das desgraças todas, escrevia baseado nos livros e peças que lera pela vida afora. Não tinha, pelo menos conscientemente falando, as tintas de sua existência nas letras e construções frasais de seus textos. Depois de tudo, porém, voltou-se para si e escavou-se às redações, pontuações, orações, vírgulas, peças, cenas, intenções, atores e atrizes. Jogou-se, de corpo, alma e mente em tudo que fazia, desde então. Queria livrar-se daquele trauma, o Leandro. Queria um abraço apertado garantindo a morte como uma terrível ilusão. Queria poder chorar quieto e afogar-se no seu próprio resto. Ele queria muita coisa. Pena, porém, que esse tipo de abraço não existe no mundo real, o mundo frio, sujo e desconfortável, o Leandro. 

Quase que de repente, a Páscoa tornou-se sua data santa favorita. De todo coração, participou da direção da Paixão de Cristo deste ano aqui. De alguma forma, Leandro virava Maria. Chorava a morte do Filho por três dias até Ele, o Cordeiro de Deus, Pai e Espírito Santo, ressuscitar. Ao passo que Monalisa e Arthur tornavam-se o próprio Cordeiro, o filho de Deus que veio pagar pelos pecados de Leandro e dos homens, também. Havia ali, portanto, algum grau de transferência. Porém, infelizmente, aquela mimese textual já não alimentava a solidão de Leandro. Ele queria a matéria, o toque e a realidade.

 

III: Vivo e interessado:

 

Foi num dia desses, em uma madrugada chuvosa com tudo que se tem direito, que Leandro resolveu conhecer o purgatório por conta própria. Tinha a corda, as técnicas, uma banqueta e seu pescoço. Faltava-lhe apenas saltar de sua vida insignificante para a eternidade. Fez todo o procedimento. Tomou um copo americano de café com alguns remédios, para acalmar os ânimos. Na contagem regressiva, quase indo pro “três, dois e um”, seu celular apitou, indicando uma notificação. Um apito fino que, seja o destino ou a covardia diante da morte, o fez descer de seu drama particular para espiar as novidades da tela: “Você tem uma nova solicitação de amizade: Théo S. Rodrigues”.

Leandro não se lembrava de nenhum Théo. Ué?! Fez então o que o destino faz de melhor: mudou o rumo da própria história só para ver os contornos dramáticos que teria a ganhar. A banqueta, a corda e o pescoço podiam esperar, né?! “Théo? Quem será esse cara? Será que é algum imbecil lá da firma?”. Interessado, questionou a origem do desconhecido pela tela. Aceitou a solicitação. Fuxicou: “Theofilo Souza Rodrigues, aquele meu primo”. Sorriu sem saber o porquê. Os olhos suicidas de Leandro tornaram-se duas bolas vivas e interessadas, olhos que tudo vêem, naquele homem e em sua esposa grávida. Naquelas vidas.

Eram os cliques, a inveja, o ódio e a cobiça. Era o novo passatempo e masturbação de Leandro, o Théo. Sentou-se no banquinho, acendeu um cigarrinho, comeu um lanchinho e maratonou a vida do novo viciozinho. Descobriu um mundo novo ali. Ele, o Théo, junto da Lizbete, sua esposa, largou tudo e foi viajar mundo afora. De motorhome. Da confortável Europa, passando pelo gorduroso Estados Unidos, até descobrirem o mundo na África, Ásia e América Latina. Os olhos de Leandro não piscavam nem durante as propagandas obrigatórias do YouTube. Eles, vivos e interessados, gozaram dopamina em seus miolos, o Leandro, homem em êxtase!

 

IV: Fidelidade:

 

Leandro passou a acompanhar Théo e Lizbete diariamente por segundo ao quadrado. Descobriu que o casalzinho moderninho parou a andança para o menine nascer. Cristal ou Joshua. Como eram veganos de vida e adeptos aos costumes New Age de ser, não queriam descobrir o sexo da criança antes de seu nascimento. As boas vibrações deveriam emanar do bebê e não de antigas estruturas do patriarcado que se autoreproduzem pela vida toda. Leandro não entendia nada daquele mato queimado, mas acompanhava mais que atentamente, seus cotidianos bem fotografados.

Eles eram a novela de Leandro, que os seguia de todas as formas possíveis pela internet. Mas, como dito antes, ele queria o toque! Sendo assim, foi parar na Vila Madalena, bairro descolado de São Paulo, seguindo e fazendo triangulações com Theo, seus vlogs e posts de Instagram. Em poucos meses, já morava por lá. Seguia o casalzinho moderninho incessantemente, mas sempre com a moderação necessária para não ser descoberto ou levantar suspeitas. Era uma sombra opaca aos finais de tarde: conseguia se misturar aos cenários e ocasiões sem perder sua novelinha e nem quebrar a quarta parede, o mais importante!

 

V: Pigmalião:

 

Tá, mas e o toque? Pois Leandro ressuscitou Monalisa: montou um perfil fake no Facebook para interagir com Lizbete. Monalisa virou Gioconda. Seu filho, Santiago. E seu marido, cigarros. Criação difícil e solo. Storytelling, FanFic. Em questão de alguns dias e cliques, Gioconda tornou-se amiga de Lizbete. Mais algumas semanas, quase parindo, trocavam confidências e desejos estranhos de grávidas. Lizbete falava tudo a Gioconda, que recebia as devolutivas em conselhos bem escritos e roteirizados por Leandro. 

Ele, o Leandro, virou autor da vida alheia. As falas e ideias de Gioconda ditavam, de uma forma direta ou suave, as decisões do casalzinho moderninho; das compras, passando pelas músicas e rádios, até chegar aos restaurantes bem reservados e opiniões políticas bem sujas, tudo de acordo com o script. Lizbete passou a amar a receita de coq au vin de Gioconda. Coq au vin sem frango, sabem? O Leandro já não era um simples perseguidor ou telespectador. Não! Ele, mesmo que de forma micro, virou um deus cheio de arbítrios e poderes de “sim”, “não” e “talvez”. O homem não é o lobo do homem, mas sim, o deus e criador de suas histórias, vidas e desgraças. Cada passo daquele casalzinho era escrito, dirigido e produzido por ele, a Gioconda.

 

VI: O infiel:

 

Mas e quando o destino se faz de surpresa pelas vidas todas? Foi isso, o destino em tapa, que causou insônia e ódio em Leandro: Théo traiu Lizbete. Com quem? Com Gioconda. Sim, Théo traiu Lizbete com Gioconda, a conta de Facebook fake criada por Leandro. Ele, a Gioconda, empolgou-se em pele e arrepios quando passou a ter conversas eróticas e, veja só você, sinceras com Theo sobre a vida e seus descontentamentos. Gioconda adorou o Théo e seus nudes! Leandro, muito pelo contrário, reprovou-se veementemente em beijinhos de bochechas…

Não podia crer naquela realidade do computador. Não queria crer no caso de Gioconda e Théo. Não queria crer que empolgou-se com Théo bem excitado. Não queria crer no que ocorreu lá na internet. Precisava do toque, cuja finalidade, pelo menos naquele caos todo, era a garantia que aquele Quid pro quo do Facebook e aquela safadeza não passavam de uma ilusão virtual de internet discada! Já que precisava do mundo real para provar a si mesma que o virtual era mentira, marcou um encontro secreto e café com Théo, a Gioconda, bem no dia da cesárea de Lizbete. Aquele duo afinadíssimo não poderia ser verdade.  

Leandro foi de preto, estilo gola rolê e óculos escuros, enquanto Theo foi de tesão e shorts bem marcado. Leandro ficou de suquinho de climão numa cadeirinha afastada na cafeteria da sereia verde, sabe? Só observando o ambiente, o Leandro, que acompanhou Théo procurar por Gioconda sem sucesso. Ninguém tomou café e Théo não comeu ninguém. Respiração profunda! O Leandro jurava (ou queria jurar), que aquele casalzinho moderninho que estava a roteirizar era perfeitinho e muito bem escrito. Uma falha de caráter em um deles, os personagens, significava uma falha de caráter intrínseca em Leandro, o autor. 

Não admitia que ela, sua alter ego, o fizera deslizar da posição de autor para a de personagem, arrebentando a quarta parede. Quando Deus vira personagem de seu próprio teatro, a piada perde a graça, né?! Irritação por Théo trair Lizbete? Sim! Irritação por Gioconda trocar juras de amor e sacanagem com Théo? Sim! Irritação por Leandro perder o controle da narrativa? Sim! Irritação por Gioconda poder demonstrar seu amor e desejo por Théo, ao passo que Leandro escondia-se em si mesmo de forma enrustida e armário? Sim, também! Irritação, na verdade, por tudo num único sentimento: ódio insone.

 

VII: O Grand Finale:

 

Noite. Beethoven no repeat da JBL, vinho barato na garrafa e mesa bem suja. Queijo tipo roquefort, torradas, ketchup sabor bacon e velas de sétimo dia. Guisado de cordeiro com batatas. Sabor estranho. Luz penetrante da rua, parede amarelada de persiana em sombra e Leandro no cigarro eletrônico com bastante fumaça. Cena bucólica. Gioconda morreu. Leandro suicidou-a das contas todas e redes sociais. Matou-se a ficção. Mas e o toque? Estava na hora de decidir os finalmentes de Théo, Lizbete e Joshua. Que venha o Grand Finale! Fez um café bem forte para poder pensar. Depois do cafezinho, o banheiro sempre se torna o celeiro de boas idéias.

Não queria um final tosco para o casalzinho. Não! Queria ele, o Leandro, um final apoteótico. Que ficasse para sempre nas páginas dos jornais, livros e revistas. Queria o sucesso, coisa que nunca teve em aplausos e orgulho. Passou a escrever, portanto, vários finais pro casalzinho. Retornou à sua cidade natal. Meteu-se na escola de teatro onde dava aulas e criou cenas, esquetes, peças e representações que simbolizassem, de alguma forma, os finalmentes deles, o casalzinho.

Como deveria ser o final de Théo e Lizbete? Josh deveria morrer ou viver? O que é pior, a morte ou o luto? Cada pensamento de Leandro virava fala, intenção e cena. Cena, cena, cena, muita cena! Até o dia que realizou a melhor delas, mais de um ano depois. Comprimidas em uma única peça, elas, as cenas, estavam prontas. Vai ser uma morte bárbara! Duas, na verdade.

 

VIII: Madrugada chuvosa e tudo que se tem direito…

 

Josh nasceu com uma condição rara nos pulmões, que dificultava sua respiração de forma autoimune e sufocava Théo e Lizbete por tabela, claramente. Cilindros de oxigênio e tosse com sangue acorrentariam o pequeno Josh e vida para sempre caso o tratamento adequado não fosse iniciado até os dois anos de vida. Porém, o remédio, o tratamento, a internação e toda a assistência médica eram caríssimos. Lizbete estava a trabalhar como doméstica, ao passo que Théo, entre uma corrida e outra de Uber, se oferecia a preços tabelados. Ambos os esforços, apesar de doloridos no osso e alma, não davam esperança a longo prazo a Josh e seus pulmões.

Foi num dia desses, de madrugada chuvosa e tudo que se tem direito, que Théo resolveu assassinar sua família e conhecer o purgatório por conta própria. Tinha a arma, as balas, os remédios para dopar Lizbete e Joshua, e um silenciador. Faltava-lhe apenas a coragem, o desespero e a adrenalina. Pensou no plano de papel, caneta e rascunhos. Tomou café com alguns remédios para acalmar os ânimos. Na contagem regressiva para sair de sua paralisia e fazer o que tinha que ser feito, quase indo pro “três, dois e um”, seu celular lhe apitou uma notificação. Um apito fino que, seja o destino ou a covardia diante da morte, o fez descarregar-se de seu drama particular para espiar as novidades da tela: “Você tem uma nova mensagem: Leandro Tavares de Souza Rodrigues”. Leandro, quem?

 

IX: Leandro, quem?

 

Théo não sabia quem era o Leandro. Parou, pensou, foi ao banheiro e realizou: “Ah, o Leandro!”. Lembravam eles, o Théo e neurônios, que há um ano e pouco, mandou-lhe uma solicitação de amizade. Foi sem querer, é verdade, mas muito bem-vindo e convidativo o acaso, absolutamente! O destino, essa força estranha cultuada como deus, sol ou força de vontade, trabalhou muito bem para unir aquela distância de primos tão separados, apesar do sangue. 

“Caro primo Théo, como vai? Ou melhor, como vão? Como andam Lizbete e Joshua? Ultimamente, tenho assistido ao seu canal do YouTube. Adoro suas viagens. A que mais curti foi sua visita à Moscou! Que cidade linda, não? O único país que visitei foi a Grécia e o Chipre. Na verdade, dois países mas com uma única história, se levarmos em conta seu povo e mitologia. 

Bem, lhe escrevo pois vocês não têm postado mais vídeos ou fotos no Instagram. O que está acontecendo? Posso ajudar em alguma coisa? Por favor, se precisarem de qualquer coisa, cá estou, ok? Apesar da distância, temos o mesmo sangue!

 

Att, Leandro”

 

Théo leu e releu aquela mensagem. Antes de pensar em qualquer coisa, passou vultos de Gioconda em sua cabeça, “Ela, a Gioconda, escrevia dessa forma aqui. Tão… De forma tão…”, não terminou o raciocínio pois Josh começou a chorar. Chuva forte. Tudo o que lhe ocorrera até então, instalou-se em seu subconsciente e fermentou-lhe a incerteza e o medo que só os vivos têm. Fechou o esfíncter, o soluço e o choro. Foi ser pai, o Théo.

 

X: Oferta irrecusável:

 

Lizbete ficou ressabiada com a mensagem de Leandro por dois motivos: primeiramente, por causa daquela gramática corretamente estranha de construções frasais perfeitas e bem pontuadas, apesar das considerações historiográficas sem nexo; e em segundo lugar, mais grave e terrivelmente inquietante que o primeiro, por saber que sua família era assistida de forma tão assídua. 

Não que a audiência do canal do YouTube não lhe agradasse ou que lhe fosse alguma surpresa sua família ser considerada um programa de televisão em potencial. Agradava-lhe, e muito, a audiência. Porém, aquela mensagem com ares de neoplasia vinda de um alguém-parente tão distante, bizarro e de letra tão difícil sem os devidos porquês, era motivo de sobra para desfibrilar seu coração de mãe e mulher. 

Théo, apesar da negativa da esposa, insistiu em falar com Leandro. Os pulmões de Josh eram sua carta de mestre com capacidade de desestabilizar qualquer incerteza cardíaca de Lizbete. O tratamento, cuja finalidade é prolongar o casamento dos dois, assim como garantir alguma qualidade de vida a Josh, precisava ser realizado o quanto antes. Cronos não perdoa ninguém ao mesmo tempo que devora a todos!

 

XI: Boas novas

 

Quase dois meses depois do primeiro contato imediato com Théo, Leandro era só o pó. A ansiedade por uma resposta lhe consumia a alma de forma cruel. Ele, apesar da loucura já instalada em seu caráter, sofria como alguém que espera a resposta de um exame que nunca chega. Pois bem. Voltando à vida real e engolindo o choro, ia bem cedo para a escola de teatro onde trabalhava, e saia bem tarde. Gostava de ficar encarando o palco vazio como se o espetáculo estivesse prestes a iniciar. Prestes é quase nunca! 

E toda noite era isso: olhos abertos, auditório em eco escuro, palco vazio e preenchido por um holofote. Toda noite até o dia em que a energia de seu bairro caiu, graças a uma chuva intensa, recheada de raios e trovões. Leandro resolve, portanto, tendo em vista a delicadeza da situação, realmente promover-se a cadáver. Era o banco, a corda e o pescoço. Foi o empurrão. Leandro caiu de pescoço esticado e falta de ar alucinante. A gravidade, aos que não crêem, é forte, potente e implacável; perdendo apenas para o luto, orgulho ferido e ódio da vida. Depois de alguns minutos, Leandro desacordou-se. Será seu fim?

 

XII: Não, não foi…

 

Não, não foi o fim de Théo e família. Lizbete queria ir pra Minas Gerais mais Josh, voltar para a casa de sua mãe, Dona Irene. Desesperado por estar a perder todos que amava, Théo resolve ligar para Leandro. Era noite, carro, luz do porta-luvas e aquele tipo de remédio que te mata mais de dor do que de parada cardíaca. Foi, graças a Deus, ao invés de cicuta, vergonha na cara que Theo tomou ao ligar pro primo, cuja voz o respondeu de timbre afoito e sem muito ar. Tosse de garganta amarrada.

Os primos, sem saberem, estavam a dançar a ciranda da morte simultaneamente. Aquelas duas vozes que choravam-se pelo telefone, tentavam se acariciar de alguma forma. Ele, a corda; o outro, veneno. Por um lapso de tempo ou espaço, Leandro pensou em desistir de seu plano. Era Gioconda que falava? Ou a memória de Monalisa? Ou ainda, os desejos reprimidos de Leandro? Só sei que havia ali, naquele finíssimo fio de vida, um momento singular de choro mútuo, um pedido de ajuda quase infantil, coisa de primeira infância.  

Na verdade, pouco importava aquele momento em choro: o ódio de Leandro fez suas lágrimas secarem, quase de imediato, assim que realizou seus sentimentos. Desligou o telefone, apesar dos lamentos do primo. Contou dez segundos corridos e retornou a ligação de forma sóbria e menos afetada. Ambos, quinze minutos depois do primeiro “alô?”, já estavam conversando feito gente grande. Nem parecia que estavam na ciranda, cirandinha do caronte do destino, né?! O que ocorreu? O convite foi feito!

 

XIII: Convite? Qual convite?!

 

Um processo de separação nunca é algo fácil, que ocorre da noite pro dia. Não! Principalmente quando se tem uma criança no meio da equação. O final de semana era de Leandro e Arthur, segundo os acordos judiciais. Apesar da letra da lei, Monalisa também foi convidada. Almoço especial no sítio de Limeira, quase Cordeirópolis: “Se você quiser vir passar o dia aqui no sítio, amorzinho, pode vir! Vai ter feijoada e torresminho!”. Ele, um cínico que Monalisa engoliu à seco com farofa naquele sábado. 

Não aceitava a separação, o Leandro. Ciúmes doentios viraram rotina, brigas e tapas, cujos frutos deram nisso. Depois de ter se mudado para um flat alugado, seus ataques psicóticos passaram a ser controlados por remédios e terapia on-line. De ódio em ódio, vieram os processos, os finais de semana com o filho em assistência social e a desconfiança. Arturzinho se parecia muito com um tal ex-amigo do casal: mini réplica, o outro homem que não ele, o Leandro. Veio o exame de DNA em promoção na internet e a confirmação.

Carne de cordeiro com arroz Pilaf. Sabor estranho. Sandro Coelho já estava nas redondezas para fazer aquilo que deveria ser feito. Monalisa e Arthur estavam almoçando quando tudo ficou escuro. Leandro bateu com um taco de baseball na cabeça de Monalisa. Desacordada. Arthur foi abusado, torturado e cozido por Leandro e o delegado Sandro Coelho. Folie à deux. Leandro fez questão de acordar a ex-mamãe só para mostrar sua mais bela obra de arte, eram os gritos.

 

XIV: Carro velho e falta de manutenção:

 

29/11/2021, sítio de Limeira, quase Cordeirópolis.

 

Leandro recebeu Théo, Lizbete e o pequeno Josh. Alegria e felicidade. Estava tendo o toque, a sensação palpável de que precisava. Sua maior obra estava a caminho de concretizar-se: reeditar os melhores momentos da morte de Monalisa e Arthur, os gritos, em texto teatral com rubricas e marcações. Por que não?! Tomaram suco de jabuticaba, conversaram muito até desembocarem na morte de Monalisa: “Foi um acidente terrível. Eu me culpo todos os dias por ela. Absolutamente evitável se não fossem a negligência da Monalisa, a gasolina de procedência duvidosa e o carro velho e sua falta de manutenção, da Monalisa.”, terminou em choro de uma lágrima só. 

Sandro Coelho chegou. Estacionou o carro e apresentou-se à familinha moderninha como grande amigo de Leandro. Trouxe uma carne estranha cujas fibras tinham RG, CPF e um acentuado sabor suíno. Não sabiam, mas estavam prestes a cometer o pecado da antropofagia, eles. Todos comeram, divertiram-se, refrescaram-se em uma piscina improvisada de três mil litros e vinho pós-prandial. Estava tudo incrível, até o taco de baseball. Afinal, o grand finale! Os olhos de Leandro passaram pela dissimulação oblíqua das ciganas até chegarem à ressaca. Toda aquela desgraça lhe alimentava a alma e preenchia-lhe o corpo cavernoso. Era o toque que concretizava-se, dente por dente, de um riso sádico e completamente dissimulado. Uma pantomima sinistra!

 

XV: Coq au vin sem frango, sabem?

 

Quando acordaram, o casalzinho moderninho estava amarrado em ball gags e desespero. O horror, podem acreditar!  Sandro e Leandro passaram a preparar na frente deles, os moderninhos, um coq au vin sem frango, sabem? E onde está Josh? Rápidos e práticos, os amigos doentios abriram o corpo de Josh sob os olhos de Théo e Lizbete. Tiraram toda a carne, temperaram e fizeram toda a receita. O desespero, meu Deus! Lizbete, de tanto gritar, desmaiou. Théo quase afogou-se em seu próprio vômito. Sandro bateu em Lizbete para que acordasse, ao passo que Leandro fez Théo limpar o próprio vômito às linguadas.

Por minutos que duraram horas a fio, aquela cena marcou o sítio de Limeira quase Cordeirópolis. Eram o sadismo e o riso com a desgraça alheia. Era o puro suco do ser humano, aquilo. Porém, tal qual qualquer outro homem cujos circuitos cerebrais estivessem afetados pela paixão, mesmo que de forma involuntária, Leandro apiedou-se dos suplícios de Théo. Lizbete já estava desacordada ou quase a ponto de caixão. Já Théo, por mais traumatizante que aquilo tudo estivesse sendo, estava acordado ainda. 

Seu estado de vigília era sua maior desgraça, uma vez que testemunhar os horrores do homem (e ser um de seus personagens), era a pior maldição que podia abater-se-lhe. Pois foi isso, a vigília fazia de Théo testemunha do próprio destino rasgado e desgraçado. Apesar da tribulação, seus pedidos de choro e súplica penetraram nos ouvidos de Leandro, cujos sentimentos acabaram se misturando com os de Gioconda. E agora? O que restava para ele, o Leandro, era discutir consigo mesmo e ver até onde todo aquele lodo ia. E foi bem longe, meu amores.

 

XVI: Gioconda, Mon Amour:

 

Discutiu-se, ele e Gioconda. O amor dela estava relutante com toda aquela situação de merda. Leandro ainda sentia ódio e raiva. De onde? Quem sabe de seu amor proibido por Théo que, por obra do acaso, floresceu em Gioconda. Eles começaram uma discussão de um homem só. A sombra de Leandro era o espelho de Gioconda, cuja força de vontade impedia Leandro de agir, tipo uma doença autoimune. Basta saber, na perspectiva da equação, quem era a doença, né? Imaginem vocês, queridos amigos, um homem branco, alto, com um taco de baseball em mãos gritando consigo mesmo. 

Todos ficaram assustados. Théo, que respirava o sangue de seus ferimentos, olhava involuntariamente para Sandro, cujas feições tentavam desvendar toda aquela coisa inominável que abatia-lhe a retina, o Leandro. Os homens partiram para uma briga pesada. Sandro espancou Leandro, que tentava a todo custo proteger-se a Gioconda e o Théo, o subconsciente. Ele, o Théo, atônito ao ver aquela cena composta de Lizbete e Joshua mortos, Leandro e Sandro iguais gorilas agitados pela testosterona e psicose, foi desfalecendo aos poucos, em esperança pelo fim. Théo não morreu, apenas desmaiou. Coma induzido. 

 

XVII: Labirinto:

 

“Theófilo Rodrigues foi achado desacordado em uma violenta cena de crime. Sua esposa e filho foram brutalmente assassinados, com requintes de crueldade, canibalismo e abuso sexual. Segundo a vítima, considerada inocente graças à perícia, o culpado por tudo foi um primo seu, cujo contato se deu por uma rede social, que também foi periciada. A alegação é infundada, uma vez que este seu primo morreu junto à família num acidente de carro próximo à cidade de Piracicaba. Segundo as investigações, a principal suspeita é uma mulher cujo codinome é Gioconda. Sem maiores informações vindas da investigação propriamente dita. A psicóloga Dra. Ariadne Sofia está acompanhando o caso junto à vítima, e tem algumas considerações.”

 

Dr. Renato Tavares, Advogado Criminalista.

 

“O Théo é um homem muito doce. Ele sofre muito com tudo o que lhe ocorreu. Como parte de nossa terapia — multidisciplinar, eu destaco —, ele tem se dedicado às artes plásticas como forma de expressar-se. O que ele mais tem feito, com esperança de recriar tudo aquilo que há em sua alma, é pintar e repintar tudo o que ocorreu-lhe naquele dia. Para ele, apesar das perícias e investigações do Dr. Renato, dos delegados Coelho, Martins e Xavier, o crime ocorreu graças a Leandro. 

Investigo se há algum tipo de processo de transferência entre eles. Na última consulta, Théo estava desesperado! Vendeu uma de suas obras. O comprador, segundo ele, foi Gioconda, que, na verdade, é Leandro em carta. Há uma relação estranha entre Théo e Leandro. Nem Josh, seu filho falecido, lhe desperta tanto. Estamos apenas no início do tratamento. Espero que eu consiga ajudar Théo a sair do labirinto mental em que se encontra”.

 

Dra. Ariadne Sofia, Psicóloga com especialização em Estresse Pós-traumático.

 

XVIII: O Fiel Seguidor:

 

Théo conseguiu vender alguns de seus quadros. Muito suor em cada pincelada. Dos quase vinte quadros que fez, uns dez foram comprados por ela, a Gioconda. Foi fazendo triangulações com suas cartas até chegar, de ponto em ponto, em mapa mental e aplicativo de celular, a uma chácara na região rural de Capitólio, Minas Gerais. Demorou uns meses até organizar as informações e segui-las de forma correta, reta e lógica. Chegou lá e viu ele junto de sua esposa e seu filho. 

O Théo, que jogava bola, chutou-a para longe. Força desmedida, coisa de criança. Théo foi buscar, entregando-a ao xará ao mesmo tempo que encheu seus pulmões em recado, questionando: “Ele, o Leandro, é o seu pai?”. A cabeça de Théo diz que sim e os olhos querendo continuar a jogar bola. A mulher chama por ele, o Théo: “O almoço, meu amor! Vem logo!”. 

Théo arremata: “Fala pra ele que o Turzinho mandou um beijo. Ou melhor…”, beija o garoto nas bochechas, “Fala pra ele que o Turzinho mandou beijinhos de bochechas pra ele, o seu pai!”, ri com os olhos de raiva doentia. Théo agarrou sua bola de capotão com medo e força. Correu. Gritou pelos pais. Disse o que lhe ocorrera há pouco em bochechas e tudo.

 

XIX: Olhos que tudo vêem:

 

Leandro sai armado da chácara. Olha para os lados, nada encontra. Fecha-se em portão e tudo mais. Todavia, ele ainda está lá, seguindo todos os passos, movimentos, palavras, olhares… De Théo, nada se esconde. E ele, o Leandro, mesmo em tocaia, ele sabe disso…

 

FIM

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