WEBTVPLAY ORIGINAL APRESENTA

 A SUCESSORA


CONTO ESCRITO POR

Samuel Brito

 

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1920. Rio de Janeiro.



Quando o conheci me apaixonei. Belos ombros, semblante sério e misterioso, bastava um olhar dele para arrancar mil suspiros meus. Roberto era a idealização de um homem servil e maduro, apesar de nunca ter ouvido ele falando sobre política, ele era um homem socialmente bem-quisto. -Não é para o seu bico. -Disse Adélia, claramente interessada nele. Ainda bem que nunca desisti dos meus ideais e entre olhares e olhares, fui assediada pelo destino e acertada pela flecha do cupido. Sim! Roberto pediu a minha mão. Ali eu vi tudo o que sonhei sendo concretizado, mas não era o lado financeiro que me interessava, apenas o amor verdadeiro de Roberto era capaz de saciar tudo o que idealizei a vida inteira.

Após uma cerimônia sem muita gala, por insistência do próprio, conheci o lado mais genuíno dele. Apesar de ser um dos mais ricos do Rio de Janeiro, Roberto era um homem simples e por mais simples que as coisas fossem estariam do seu agrado.

-O trate bem, filha. Ele é aquele tipo raro de homem. - afirmou minha mãe ao conhecê-lo e ela estava certa, talvez o mais raro. Por mais que pensassem que eu o idolatrava, jamais insinuei dizer em palavras tudo o que pensava sobre ele e isso o intrigava, eu tenho convicção disso. - Vamos, querida? - Disse ele, enquanto abria a porta do carro para mim. Essa postura cavalheira era a cereja do bolo, por mais que houvessem o chofer e trilhões de funcionários, ele permanecia abrindo as portas para que eu entrasse e eu, claro, entrava, porque minha confiança já estava nele. Até que eu entrei pela porta mais cruel que ele abriu, a porta da sua mansão, porta essa que eu jamais entraria novamente. Havia um fantasma vivo lá.

***

O ruim de se casar com um viúvo são os olhares que lhe passam, pois todos querem que sejas como ou superior a finada e eu não passei ilesa pelos olhares dos que o rodeavam, mas de todos os que me viram, a pior foi Juliana, governanta da mansão. Seus olhos percorreram meu corpo com desprezo, mas eu estava cega demais para julgá-la, confrontá-la desencadearia uma avalanche de conflitos com Roberto, ela a servia desde os tempos floridos, era mais presente na vida dele do que eu, talvez até mais que a finada.

-Fique à vontade, madame. -Disse ela com os dentes cerrados, demonstrando todo seu rancor. -Agradecida. - respondi com um sorriso discreto. Uma resposta tão insossa que gerou ainda mais repúdio, contudo a minha única preocupação era agradar meu esposo e ele estava feliz, pelo menos aparentava estar.

Todos os dias, todas as noites, as comparações com Alice eram constantes. Não bastava a figura antológica dela na pintura da sala de estar, ainda comentavam sobre ela em todas as conversas possíveis. Ninguém escondia a fascinação por Alice. Ela era inesquecível! Desde que cheguei ouvi mais essa palavra do que a palavra Deus e olha que a minha família era extremamente religiosa. Eles a idolatravam e em tudo a encaixavam. O andar de Alice era fantástico, o olhar penetrante de Alice, o perfume indescritível de Alice, a perfeição de Alice em tudo era incômodo, estava exausta em me deparar com uma mulher que sequer pedi para conhecer. Eu percebia que aquilo incomodava o Roberto também, mas no fundo ele queria manter a memória viva, ele jamais questionava os comentários, apenas sorria de canto ou se fechava para fingir para mim que não estava satisfeito. Não conseguia entender tamanho fascínio, até que numa bela manhã de Outono eu mesma vi Alice. Sim, eu a vi.

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Seu olhar profundo me observava e me consumia, era como se a própria renegava minha relação com Roberto e eu na minha ingenuidade decidi me afastar do meu próprio esposo. A tal lucidez fugiu por instantes e eu só quis fugir daquela sombra que me perseguia. A casa tinha seu perfume, sua cor, sua decoração, suas flores ainda estavam no jardim, seus empregados me serviam, a alma dela inquietada me infernizava. Era uma força do mal! Eu sentia a energia daquela mulher, eu sentia seus trejeitos, eu conseguia ouvir seus passos finos desfilando por todos os cômodos e mesmo sem tê-la conhecido eu já sentia sua presença. Sua voz doce e insalubre era audível.

Pelo menos depois desse dia eu jamais me sentia sozinha, ela andava ao meu lado, me encarando, observando se eu agia com a ética que ela tinha, e mesmo deitada eu sentia a pressão de descansar com a elegância dela. Ela me oprimia, porque estava viva. O cemitério de Alice era aquela mansão e ela vagava por ali como se tudo aquilo lhe pertencesse, e num mundo paralelo parecia que as pessoas sabiam da existência dela e não se assustavam. Mesmo morta, eles necessitavam senti-la e faziam questão de prestar culto à que não merecia morrer.

**

- Não quero ser inconveniente, esposo, mas pensei bem e decidi regressar à casa de meus pais. Já não consigo viver aqui. -Disse eu à Roberto sentado em sua cadeira de balanço. Ele levantou a sobrancelha e decaiu o semblante. -O que fiz? -Disse ele decepcionado.

- Alice!

-Ela está morta!

-Não! Estás enganado, Roberto. Eu a vejo em todos os lugares dessa mansão e como se não bastasse a vejo até em seus olhos.

-Estás louca! Não há hipótese. Se quiseres mando queimar imediatamente o quadro da sala. -Naquele momento eu não aguentei e caí aos pés dele. Roberto me abraçou e acariciou meus cabelos.

Por um instante pensei que talvez fosse aquele quadro à la Françoise Carter que estava me fazendo mal e sem pestanejar concordei com a cabeça, de imediato vi seus pés caminhando em direção a sala. Ao longe ouvi a voz de Juliana em prantos, ela não aceitava perder a madame que sempre amou e num ato pretensioso, a fogueira inativa voltou a clarear, suas faíscas eram tão latentes que as sentia mesmo estando no segundo andar.

TOC! TOC! TOC! Juliana apavorada entrou abruptamente e se jogou no chão.

-Eu faço tudo, senhora. Tudo! Contudo não permita que o Senhor Roberto destrua a única lembrança de vista que temos da madame Alice. Eu te imploro!

-Sinto muito, mas estou de acordo. Essa casa agora é minha, não aceito conviver com as lembranças da antiga senhora Steen, espero que entenda. - Naquele momento, Juliana se levantou com a sobrancelha franzida e olhou para mim: -Terás o mesmo destino da madame Steen. Aguarde! - Ali, me arrepiei por completa, afinal ninguém jamais havia detalhado sobre os motivos que levaram a morte de Alice. Seria uma profecia ou blefe? Teria Juliana algum envolvimento na morte de Alice? Curiosa como sou fui ao cemitério, em lápides luxuosas esculpiam as circunstâncias que levaram a vítima ao óbito, porém ao chegar tive uma surpresa! O túmulo estava vazio.

***

-Mas como pode, senhor? Ela supostamente estava enterrada nesse cemitério, os jornais noticiaram isso. -Indaguei ao coveiro, enquanto ele me observava friamente. - Não sei, senhora. -Disse ele temeroso.

Naquele dia fui encucada para mansão de Roberto, todos os meus pensamentos norteavam Alice e por alguns instantes estive à sombra dela, tal qual os tantos outros admiradores. Roberto, inteligente, se apercebeu e foi logo questionar minha ansiedade, até quis mentir para ele, mas jurei-lhe lealdade diante do altar e quis manter minha lealdade até diante daquele fato. Ele, nervoso, andou frenético. Eu a observava.

-Peço perdão, esposo.

- Pedes agora, mas sempre voltas atrás. Falavas tanto que Alice a incomodava, mas sempre fazes questão de atrair a presença dela.

-Prometo não retomar essa conversa. Abolirei esse nome de nossa vida.

-Não! Agora me acompanhe e a levarei até o túmulo de Alice. -Ali, eu entrei num misto de medo e esperança de esquecer totalmente a existência daquela mulher, mas Roberto foi subindo as escadas e aquilo me paralisou. - Não íamos ao túmulo? -indaguei ele, crendo que ele havia por alguma circunstância ter esquecido. -Apenas me siga. Siga! - Disse ele convicto. Cada passo nos degraus eram sentidos, minhas pernas bambas trazia à tona minha intensa compulsão em entender o que estava acontecendo, contudo jamais conseguiria imaginar nem em meus piores pesadelos com o que iria me deparar.

-Veja! Aqui está o corpo de Alice. - Disse Roberto, momentos antes da minha vista escurecer.

***

Ao abrir os olhos na minha cama deitada, Doutor Moretti me encarando abriu um largo sorriso e Roberto a se lamentar ao pé da cama aproximou-se e me abraçou.

-Não te levarei lá novamente, meu amor. Eu prometo!

-O que houve comigo?

-Um leve desmaio. Se descansares bem, logo se recuperarás.

À partir daquele dia em diante os desmaios foram constantes, bastava-me lembrar do cadáver de Alice no sótão para que minha visão turbasse. Preocupado com minha saúde, Roberto me levou a fazenda de meus pais e por incrível que pareça me afeiçoei a Adélia, afeiçoamos tanto ao ponto de sermos confidente uma da outra.

-O que viste naquele sótão, Marina?

-Não quero falar sobre isso. Dá vertigem!

-O que é tão sombrio que te amedronta tanto?

-Imagina um corpo podre dentro de um caixão.

-Eles não fizeram isso. Fizeram?

-Disseram para os jornais que a enterrariam, mas preservaram o corpo dela. Eles a amam demais! Não há espaço pra mim naquela mansão, não desejo mais voltar.

-E o Roberto? O deixará?

-Esquecer será melhor. - O que eu não imaginava era que eu guardava uma lembrança eterna de Roberto em mim. Meses após todos os acontecidos descobri uma gestação, sim, estava gerando um filho de Roberto. Ao noticiar a ele, reatamos a união, mas custei em voltar a mansão. -Amas tanto a simplicidade, quero que nosso herdeiro seja criado no mais simples possível. -Ele acatou minha decisão e veio passar uns dias na fazenda, mas eu percebia o incômodo diante da simplória vida de fazendeiro. Roberto era um diplomata, um homem da cidade, ainda que quisesse me agradar, ele estava triste e eu decidi voltar a mansão com ele, e bastou pôr os dois pés ali para que eu pudesse sentir as dores do parto. O que era um movimento mútuo de felicidade para ambos rapidamente se tornou um desesperador pesadelo. Ao pegar a criança em meu colo para amamentar o observei fixamente e não o vi, ele era Alice, juro que era ela. Ela encarnou em meu filho. Eu pari Alice. Peguei ela em meus braços, por isso a matei. Não a queria. Vim fugir dela aqui, aqui eu consigo viver longe de tudo aquilo que me lembre ela, mas às vezes me olho no espelho e me sinto a própria Alice, e talvez eu seja ela. Qualquer um pode ser ela.



CONFISSÕES DE MARINA STEIN ANTES DE SER LEVADA PARA O SANATÓRIO DA DOCE PAZ NO INTERIOR DO RIO DE JANEIRO, 1925.

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