Sinopse: A realidade do natal nos tempos onde não existia tanta modernidade e conforto.
2x02 - O Natal de Antigamente
de Millo Rodrigues
Primavera de 1958, no tempo em
que o período de aulas ia até a terceira semana de dezembro.
A escola do primário era
simples, com piso de madeira que rangia todo quando caminhávamos pelo corredor.
Era um único corredor com
cinco salas de cada lado e uma diretoria ao final onde também se reuniam os
professores.
Éramos pobres, alguns alunos
quando chegavam à escola ao passarem pelo portão, lavavam os pés em uma
torneira no canto do jardim porque vinham descalços e eram obrigados a isso
para não sujarem o piso com o barro
entranhados nos pés.
Tínhamos os uniformes, só
ganhávamos outro quando ficavam pequenos ou se rasgassem muito que não
suportassem mais os remendos.
Eu consigo me lembrar de que
ficávamos em fila no pátio para cantarmos o Hino da Bandeira ou o Hino
Nacional, depois ganhávamos uma caneca de leite de soja e entrávamos em fila
para as classes.
Era a única coisa que tínhamos
de alimento até as 14 horas e éramos felizes.
Dona Aurora nossa professora
às vezes trazia meio bolo de fubá que dividia entre nós e uma única vez trouxe
um pedaço de bolo de chocolate. Aquele sim foi um dos dias mais felizes para
todos; humm; bolo de chocolate.
E teve aquele dia:
-Dona Aurora: Com o natal na
próxima semana, eu tenho uma tarefa diferente para cada um de vocês hoje.
-Todos: Qual professora?
-Dona Aurora: Vocês vão fazer
um desenho que lembre o natal e contar a história explicando o desenho, mas tem
que ser uma história verdadeira e não inventada.
Estão prontos?
-Todos: Sim senhora.
-Dona Aurora: Então cada um
pegue uma folha do próprio caderno e podem começar.
O entusiasmo foi grande e
todos ficaram muito quietos e compenetrados no desafio.
Dona Aurora pode até sair para
dar uma chegadinha na diretoria para contar ao inspetor a proposta colocada aos
alunos. Quando voltou a maioria já tinha terminado o seu desenho.
-Dona Aurora: Quem será o
primeiro?
-Eu professora respondeu Nico,
na verdade Nicolau.
-Dona Aurora: pois bem e qual
é o seu desenho?
-Nicolau: Esse aqui, mostrando
o desenho de um tico-tico.
Esse tico-tico eu ganhei faz
dois anos. Encontrei dentro de um saco de café que o Papai Noel deixou atrás do
monte de lenha perto do fogão.
Como eu já estou grande para brincar com
ele eu tenho certeza que meu pai vai dar para o meu irmão menor, e sabe por que
eu sei disso?
Eu vi meu pai chegar outro dia
com uma latinha de tinta vermelha, como ele é azul mudando de cor meu irmão vai
achar que é novo.
-Dona Aurora: E você, vai ganhar
o que?
-Nicolau: pode ser que nada,
mas vou me divertir bastante ensinando o meu irmão a andar.
-Dona Aurora: Belo exemplo
Nicolau, espero que se divirta mesmo.
Quem é o próximo?
-Maria: Eu, meu desenho é mais
simples é só essa peteca.
-Dona Aurora: Ele não é tão
simples se tiver uma boa história!
-Maria: Quando chega a véspera
do natal minha mãe prepara duas galinhas que o meu avô cria no terreiro, vem a
família do meu pai, que compra sempre aqueles guaranás de garrafa e deixa
gelando debaixo da pia para tomarmos no almoço do natal. A irmã dele minha tia
Diva pega as penas das galinhas junto com umas palhas de milho já secas, um
pouco de serragem da serraria do vizinho “seu” Gustavo e faz uma linda peteca
que embrulha com o mesmo papel azul que minha mãe guarda para usar no natal.
Ainda bem porque eu brinco
durante todo o ano que quando chega dezembro ela já está toda estourada.
-Dona Aurora: Bela história
Maria, agora é sua vez Paulo que está cochichando aí com a Fernanda?
-Paulo: Eu estava dizendo a
ela que vou emprestar meus lápis de cores para todo mundo poderem pintar os
seus desenhos.
Eles estão bem no fim mesmo e
o meu desenho é uma caixa nova que eu vou ganhar. Só que meu pai me prometeu
uma caixa com vinte e quatro cores, não sei como ele vai conseguir isso.
-Dona Aurora: Se ele prometeu
é porque sabe onde encontrar, talvez até já tenha comprado e está esperando o
dia para lhe dar.
Mas belo gesto o de deixar os
desenhos coloridos e mais bonitos.
Bom e você Fernanda, e o seu
desenho?
-Fernanda: O meu irmão começou
a trabalhar na lojinha do “seu” Benedito que fabrica as bolsas de palhas, só
que quando chega o natal ele faz carrinhos de bonecas e bonecas de palhas.
Meu irmão disse que vai pedir
como parte do pagamento um carrinho e duas bonecas para minhas irmãs. Eu brinco
com o carrinho levando as bonecas das minhas irmãs.
-Dona Aurora: E você Sueli?
Porque não fez desenho nenhum?
-Sueli: Porque o ano passado
eu não ganhei nada e esse ano não vai ser diferente. Meu pai continua sem
trabalho fixo, só faz alguns trabalhos que o dinheiro mal dá para comermos.
-Dona Aurora: Nossa, que
situação bem difícil, e você tem sonhado em ganhar alguma coisa?
-Sueli: Às vezes eu até tenho
sonhado, mas só fica no sonho.
-Paulo: Posso fazer uma coisa
professora?
-Dona Aurora: Lógico, e o que seria?
-Paulo: Sempre ganhei doze
lápis, agora que vou ganhar uma caixa com vinte e quatro, posso dar pelo menos
seis lápis para a Sueli.
-Fernanda: Eu posso pedir uma
das bonecas para minhas irmãs a gente brinca com o carrinho e uma boneca para
as duas, você aceita uma boneca Sueli?
-Sueli: Claro, vou cuidar dela
com bastante carinho.
-Maria: No almoço de natal
você pode ir almoçar em casa, vou combinar com minha mãe e ainda vou pedir para
a minha tia Diva para que faça duas petecas, afinal vão sobrar bastante penas.
-Nicolau: Eu infelizmente não
vou ter nada para lhe dar a não ser um abraço e quando se prepara para abraçar
Sueli percebe que todos se dirigem para fazer a mesma coisa.
O repartir dos presentes que
ganhariam significava muito para Sueli, mas aquele abraço de todos era muito
mais confortante que qualquer presente.
Dona Aurora não conseguiu esconder a emoção e deixou as lágrimas correrem pelo rosto.
Estava presenciando talvez pela primeira vez o verdadeiro espírito do natal.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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