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TELEFONEMA DO ALÉM



Conto de
Jober Rocha




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Na ocasião em que os fatos mencionados a seguir ocorreram, eu residia na cidade de Belém, no Estado do Pará, para onde havia me transferido há poucos meses, a serviço da organização bancária em que já trabalhava durante alguns anos. Eu era gerente administrativo da instituição e tinha que organizar aquela agência, totalmente desorganizada pelo anterior gerente.

Casado há cerca de um ano, alugara confortável casa em bairro tradicional da cidade onde vivia tranquilamente. Frequentando, junto com minha esposa, um clube local ao qual me associara, acabei por travar conhecimento com jovem casal, também residindo há pouco tempo naquela cidade e sem filhos como nós.

O novo amigo era piloto em uma das muitas empresas de táxi aéreo da região e sua esposa, médica, possuía um pequeno consultório no centro da cidade. Eram pessoas cordiais, educadas, inteligentes. Resumindo, eram muito parecidas com nós mesmos, daí a razão da fácil amizade surgida entre nós.

Com o evoluir da nossa amizade passamos a sair juntos e a frequentar a casa do outro. Como não tínhamos nenhum parente por aquelas bandas, nós nos apoiávamos como fazem, frequentemente, dois irmãos unidos. Costumávamos fazer churrascos, ora em minha residência ora na dele, quando, então, nestas ocasiões, tínhamos a oportunidade de conhecer em maior profundidade os nossos pontos de vista sobre a vida, por vezes distintos, mas, quase sempre, coincidentes, sobre as coisas e sobre as instituições.

Como ambos não professássemos nenhuma religião, embora acreditássemos na existência de um Criador, em muitas ocasiões filosofávamos acerca da origem da vida, sobre o papel do destino e se haveria ou não vida do outro lado da existência humana; isto é, no território que separava a vida da morte. Nestas ocasiões, embora cada um de nós expusesse o seu ponto de vista particular sobre o assunto, não chegávamos a nenhuma conclusão, haja vista a complexidade do tema.

Meu amigo era de opinião que existia vida após a morte e, ainda mais - segundo ele - aqueles que tivessem penetrado no Território do Além poderiam, caso desejassem, comunicar-se com os que estavam do lado de cá.

Meu ponto de vista era o tradicional da religião católica: - temos apenas uma existência e, após a morte, não poderíamos mais nos comunicar com nossos familiares e amigos.

Deixando de lado estes assuntos, entretanto, logo passávamos a conversar sobre a vida profissional de cada um de nós.

Eu dizia-lhe que o trabalho bancário, embora não parecesse, era desgastante e causa de muito estresse entre os bancários, além de doenças do sistema nervoso; tudo isto, motivado pela constante pressão sobre metas a serem alcançadas e a grande responsabilidade sobre eventuais erros com relação a valores, cifras, etc.

Nestas ocasiões, comentava com ele que o trabalho de piloto era muito mais tranquilo e gratificante. Enquanto o bancário vivia preso em uma sala durante o dia todo, o aviador tinha a liberdade de poder estar em vários lugares naquele mesmo período, desbravar os ares e tentar chegar aos horizontes.

Meu novo amigo garantia que as coisas não eram como eu pensava. Disse-me ele que desde pequeno se interessara pelas coisas da aviação. Tentara inicialmente a aviação militar; porém, não tendo sido aprovado no concurso público para a Academia da Força Aérea, ingressara em um curso de aviação civil, onde se formara piloto privado e, mais tarde, piloto comercial. Naquela ocasião já possuía milhares de horas de voo sobre o território nacional.

Disse que já havia passado por situações de grande perigo, seja durante temporais, seja por panes em um ou em dois dos motores, etc. Garantia que os voos eram seguros; mas que, por vezes, “a bruxa” estava dentro da aeronave, em espreita e pronta para ceifar a vida daqueles pilotos desatentos. Certa feita havia caído sobre umas copas de algumas grandes árvores e ali passado quase quatro dias, bebendo água da chuva, até ser resgatado por helicópteros da Força Aérea.

A região em que ele voava compreendia, basicamente, a Região Norte do país; muito embora, ocasionalmente, efetuasse voos para o Nordeste e para o Centro-Oeste. Seus passageiros eram, quase sempre, empresários, homens de negócio e empregados de alto nível de empresas estatais, que tinham pressa em chegar até pontos isolados daquelas regiões, não servidos pelas empresas aéreas de grande porte. Pilotava um bimotor Cessna 310 e conhecia o território sobre o qual voava como a palma de sua mão. Pousava em campos de pouso abertos no meio da mata, em pastagens, em ruas de pequenas cidades perdidas, em pistas improvisadas de garimpos, etc.

Em um domingo, durante um dos churrascos em minha casa, enquanto saboreávamos uma caipirinha e comíamos camarões fritos, ele comentou que na véspera dois empresários o procuraram para combinar um voo até o município de Tarauacá, localizado a noroeste do Estado do Acre, na fronteira com a Colômbia.

Disse que embora o voo tivesse sido combinado para a segunda-feira de manhã, tivera um estranho pressentimento naquela ocasião. Não sabia dizer a razão de tal sensação, pois já havia efetuado inúmeros voos em direção ao Acre e a previsão do tempo para a manhã de segunda-feira era de tempo bom, com boa visibilidade. Julgava que talvez tivesse sido a aparência daqueles dois empresários: trajes muito caros, faces muito pálidas e olhos muito profundos. Os olhares daqueles dois – a ele pareceu na ocasião - penetraram no mais íntimo do seu Ser. Era como se eles soubessem a sua resposta antes mesmo dele responder qualquer coisa. Algumas vezes, percebeu que eles lhe perguntavam algo, mas que as suas bocas não se abriam, embora ele entendesse perfeitamente o que eles queriam saber.

Os empresários pagaram adiantado aquele voo que fariam e foram-se embora, sem mesmo se despedir. Fato inusitado, segundo me contou, é que eles saíram andando e pouco depois, como que sumiram no ar, pois deixou de avistá-los em uma rua plana e com tempo claro.

Enquanto meu amigo falava, notei que os pelos de seu braço ficaram todos arrepiados. Ao brincar com ele sobre o fato, confessou-me que um calafrio percorrera seu corpo, por inteiro, ao lembrar-se daquela viagem que teria de fazer no dia seguinte. Pouco depois, com a chegada de nossas esposas, o assunto foi esquecido e fomos jogar uma partida de cartas e tomar um cálice de Calvados.

Na segunda-feira dirigi-me, conforme sempre fazia, para a sede do banco; lugar em que uma vastidão de pequenos e grandes problemas burocráticos me aguardavam: as máquinas automáticas de caixa haviam dado defeito; o sistema todo havia caído; alguns empregados haviam faltado e ainda não havíamos descoberto, na contabilidade, onde foram parar alguns milhares de reais daquela diferença apresentada no caixa.

Por volta do meio-dia, o telefone da minha mesa tocou. Ao atendê-lo fui surpreendido pela voz, longínqua, do meu amigo pedindo socorro. Ele pronunciou meu nome claramente e, em seguida, pediu que o socorresse. Ao solicitar-lhe maiores informações, a ligação caiu. Ainda esperei alguns minutos para que ela retornasse, porém, como tal não aconteceu, coloquei o paletó, peguei meu carro no estacionamento do banco e dirigi-me para o aeroporto, em busca do hangar da companhia de táxi aéreo na qual ele trabalhava.

Lá chegando, constatei que o ambiente era de total desolação. Caminhões de bombeiros, carros de polícia, jornalistas e o público, em geral, se aglomeravam nas imediações do aeroporto. Na sede da empresa Informaram-me que sua aeronave havia decolado, conforme previsto, às oito horas da manhã, com dois empresários e, em razão de uma pane de decolagem em ambos os motores, havia colidido com árvores logo após o final da pista e explodido. O corpo do piloto fora encontrado pelas equipes de socorro, pouco após o acidente, morto, com várias queimaduras e bastante mutilado; porém, os corpos dos dois passageiros que transportava, não tinham sido localizados até aquele momento, por mais que procurassem.

O acidente, portanto, tinha ocorrido apenas alguns minutos após a hora confirmada da decolagem; isto é, às oito horas da manhã e eu recebera a ligação por volta do meio-dia, quando já me preparava para ir almoçar em casa. Alguma coisa de muito estranha e inusitada ocorrera naquele dia: eu recebera uma ligação telefônica do meu amigo, algumas horas depois de ele haver falecido. Ao pensar no fato, lembrei-me daquela conversa que tivéramos no fim de semana anterior, quando ele demonstrara certo receio daquele voo na segunda-feira e que afirmara acreditar na vida depois da morte.

Fui ao seu enterro, na tarde do dia seguinte, com minha esposa. A cerimônia foi breve. No cemitério achavam-se presentes apenas poucas pessoas: nós dois, a esposa dele, alguns funcionários da empresa de táxi aéreo e um padre, que encomendou o corpo a pedido do proprietário da empresa aérea. Ao voltarmos para casa vínhamos contristados no automóvel, tanto com o acontecimento, em si, quanto com a cena patética de sua esposa chorando à beira do túmulo.

Poucos minutos depois de entrarmos em casa, tendo minha esposa subido ao quarto para descansar daquele dia cheio de atribulações, onde chorara muito ao consolar a viúva, dirigi-me ao bar da casa para tomar um copo cheio de uísque, em uma derradeira homenagem ao meu amigo que se fora definitivamente.

Enquanto servia a dose, derramando o uísque por sobre várias pedras de gelo, o telefone tocou. Ao atender, ouvi a voz do meu amigo chamando-me pelo nome e, novamente, pedindo socorro. Em seguida a ligação caiu novamente.

Desliguei o telefone e, com um sorriso nos lábios, peguei o copo de uísque e bebi todo o seu conteúdo, de uma única vez. Soltando, então, uma pequena gargalhada, exclamei baixinho, para mim mesmo: - Então é verdade, existe mesmo vida no território da morte!

Ainda sorria eufórico, quando me dei conta de que, tendo ele, finalmente, penetrado naquela região desconhecida, estava era me ligando para pedir por socorro...


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