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ASSIM EU OUVI



Conto de
Maria Cristina dos Santos Lima




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A noite estava fechada, em modo assombrosa, já orvalhada e serenada, pois, naquela casa, a noite orvalhava antes do dia e o dia tinha aquele sereno estéril e inútil, quase vingativo, que regelava os músculos recém acordados. Olhando à frente via-se, na sombra, através da luz do pilar, parte do potreiro e da casa velha que ficavam a uns metros da varanda em que estavam, em espaços distintos, e marrons, dando sensação de sujeira e enodoamento. As cercas do balcão deitavam já nas amostras da idade, sem inclemência, nem correções obrigatórias que qualquer sujeito podia fazer, apenas consertar já bastava. Naquele mundinho nem sebes gemendo e chorando mexiam com os brios de alguns, pois assim todos se mantinham sentados em torno do avô, para as caçoadas do dia e da noite, e quem sabe, algum resto do troco da compra ou elogio arrancado à força do velho.

Tempos difíceis para aquela gente. Tragam o chimarrão e acendam o pito do vô que ele já espera e pigarreia. Olhando mais perto, logo atrás do cercado, via-se o saldo de uma horta, velha e perebenta, provavelmente sobra de um tempo melhor que aquele, em que as pernas e as mentes não estavam tão preguiçosas e despeitadas. Pequenas touceiras de possíveis vegetais e leguminosas extintas de sua beleza e despregadas de seus talos, uivavam, entre si, lamentos de coisas antes já cheias de bonitezas. Ali, naquela varanda, oprimindo o assoalho, estavam encravados ao chão alguns móveis de vime velhos, contando ao todo, cinco cadeiras côncavas confortáveis e uma mesinha de centro desbotada. O avô era um velho de ares sujo e repugnante, seja como quiser, sem o menor trato e tarimba nenhuma. Era ele quem ocupava a cadeira central e a qual continha almofadas para o conforto do orgulhoso idoso, e era também ali, que o velho escondia sabe-se lá o quê, podendo ser mufunfa, grana ou resto de traques para a diversão de ver pessoas gritando de susto ao passar por ele. Se alguém quisesse grana pegava da mão do diacho de oitenta e nove anos, mão esta suada e remelenta, o dinheiro passado do dia para a noite, embaixo das suas nádegas. Podia-se notar em algumas feições, ali, neste espaço do terraço, o pensamento encaracolando na cabeça de quem tentava matutar quando este tal quase nonagenário se daria por cansado deste desterro e livraria o resto de mais e mais penosos puxa-saquismos. Urgia, também, saber quanto a besta em forma de gente guardava no banco municipal. Os despistes eram diversos, atrelados a escolha de quando começaria o falatório, onde o velho sem a menor vergonha na cara, contava as gabolices de juventude e então lembrava a todos de quanto poderia ser a receita de sorte de quem garantisse a servidão para ele. Uns olhavam para a direita, onde nasceu o maior eucalipto das redondezas, cheio de folhas e folhinhas, perfumando tudo e balançando ao vento como uma rede velha e maldita. Outros preferiam mirar a esquerda onde o velho construiu por pura maldade uma privada exterior, fedida, mal feita e nauseabunda, que aguardava a visita com ares de chacota e malignidade. Como desforra foi escolhida a localização da dita bem ao lado da pereira. Era para quem tivesse estômago mesmo. Então nas proximidades se avizinhavam os leitões, porcos mesmos, que adoçavam a vida com peras saborosas e deleitosas, sem igual e sem nenhum escrúpulo. Cansados das laterais, as faces voltavam-se para o dito cujo, pois não existia mais anuência nem sabedoria do que podia ser feito, além disso. Levantar da cadeira podia ser uma má escolha, entre má e má mesmo. Um acinte para o quase presunto que poderia, se tornar, o destronamento etéreo daquele que saísse, bem como o direcionamento da raivosidade intensa da figura mais graúda da família. O ambiente geral era difícil, pois além da figura graúda figurava, para ser bem repetitivo, a figuratividade do ódio. Ódio entre todos, de todos para todos e entre eles. Era assim mesmo. O desejo de cuspir no sapato do outro e melecar tudo era grande também.

Foi num momento destes que cheguei à casa, em plena semana de halloween, convidado por um deles, não lembro qual, para conversar e participar da conferência. Antes mesmo de me sentar, e, terminadas as mesuras, já senti aquele cheiro acre vindo de um lado que sabe se lá qual. Aí tive a impressão que tudo fedia. Enquanto tamborilava os dedos na cadeirona e esperava o que se ia realizar, de normal, naquela pasmaceira, matutava se tinha um lugar mais feio e sujo que aquele. Também naquele ambiente ninguém dava as costas para ninguém de medo da faca. Era prevenção daquelas, de todos com todos. Ninguém limpava para não dar o gosto ao outro de estar num ambiente aprazível. Servidos os bolinhos da graxa, oferecidos a mim com finura, delicadamente recusei alegando um mal-estar advindo de outrora. É claro que, de modo algum, deixei pressentir que o nojo se deu assim que atravessei o limiar do solário.

Logo deu início o falatório do dono da casa e eu, Genório Tavares, me calei aguardando o ruído vocal do rei do chiqueiro. O que vou contar aqui não é mentira minha, são palavras, talvez enganadoras, de quem conta. Não foi escolha minha. De qualquer forma o assunto beira o incoerente, o curioso, o diverso pelo menos. Assim eu ouvi. Assim vou contar.

Há tempos atrás, começou a aparecer, em outras paragens, antiga morada do velho, animais mortos, na verdade, trucidados, sem a menor clemência, parecendo coisa monstruosa, de malfeito mesmo. Todo o povo começou a estrebuchar pavor e, como se estivessem em uma pandemia, passaram a se trancar em casa. Janelas e portas na trava. Mulheres, meninas e crianças já não saiam mais. O avô, em assembleia na venda do lugarejo, com seus conhecidos, discutiam o que poderia estar acontecendo, quem ou o quê podia ser o desalmado. Se fazia necessário, urgente mesmo, uma caçada. E assim, passou a ser marcada todas as noites, às vinte e duas horas, na venda, uma reunião para discutir as ações, os procedimentos, para ir à batida e acabar de vez com a danação.

O velho tinha entre eles um grande amigo, José Batista, em quem punha suas considerações, pois José era alto, forte, sabido, destemido, bom de tiro e certamente valoroso para a lide em questão. O problema era que, José, nem sempre estava disposto para o expediente em pauta, e às vezes, faltava ao ofício, deixando o nosso locutor da narrativa agastado.

Em determinado dia, logo cedo, apareceu o ferreiro e a mulher, aos gritos, no centro da praça, desesperados, pois a filha estava sumida e dois novilhos mortos e despedaçados no campo. Não tinham ouvido nada, nem um barulho sequer, nem uma pá de vento. Quando acordaram, de imediato, perceberam a porta dos fundos aberta, completamente escancarada, de onde se sentia um vento forte se agitando para dentro da cozinha, e a filha não se encontrava no quarto, onde comumente, dormia até tarde. A donzela só levantava da cama quando já bem tarde e completamente repousada. Diziam que a pobre moça era anêmica, doentia. Vivia sorumbática, sem amigos, numa triste vida. Às vezes sumia na floresta e lá ficava fazendo sabe lá o que. Curiosidades que entravam na mente dos rapazes, interessados em puxar uma conversa com ela, pois a danada era pra lá de bonita. Buscaram a jovem por tudo, dentro e fora da casa, nos fundos, próximo ao riacho, no galinheiro, no milharal e no campo, onde encontraram as reses mortas. O avô, atinou no seu íntimo, que aquela história ia dar mais pano para manga do que fiava e uma ideia começou a rastejar em sua cabeça, primeiro devagar, no rastejo mesmo, depois mais depressa, até virar um desassossego daqueles. Granjeou dois rapazes novos e fortes que estavam por ali e foi atrás do Pacheco, um velho conhecido, respeitado e bom de arma, e era o único jeito, já que José estando de corpo mole, nem tinha aparecido na noite anterior na venda.

Pacheco considerou a história toda e achou por bem, ajuizando de forma categórica, que o melhor era ir atrás de José, contar também com sua assistência, formando assim um grupo mais exitoso e, daí sim, iniciar as buscas devidas. E assim foi feito e o grupo partiu, armado, para a casa do citado.

Um dos rapazes avistou de cima do morro, ao longe, a casa de José, já ponderando, que possivelmente a porta da casa se encontrava escancarada e o cachorro endoidecido lá fora a latir. Realmente, Tigre, o cão, estava girando e alucinando, deitando baba de tão nervoso. Logo que Pacheco avançou para a porta da casa fez um trejeito de nojo, medo e um apavoramento subiu por sua espinha, gelificando o corpo. Mirou as botas e viu que pisava em sangue fresco e a poça do líquido estava distribuída por toda a entrada, na cozinha e corria para dentro, nos cômodos íntimos. O grupo seguiu em frente, aos poucos, em fila indiana, com as armas em seta, prevenido para o que os esperava. O velho foi o primeiro que entrou no quarto de José, e, balançado pelo pavor, viu o que não esperava. A moça bonita e doentia, filha do ferreiro, estava sentada na cama, coberta de sangue. Quando os viu abriu um sorriso satisfeito, que mostrava fiapos de tecido enfiados entre dentes. Deitado ao seu lado, de costas, estava José, com o dorso já em adiantado estado de avaria, carcomido e sangrento. A camisa rasgada a dentes, já, toda vermelha. Um dos rapazes, sem pensar duas vezes, descarregou a pistola na moça. Para maior ebulição do clima geral, a gaiata deu, de um salto só, para fora da cama, e em disparada, passou por todos e fugiu levando junto com ela, não se sabe como, os cinco tiros. Nunca mais foi vista. Não se sabe se morreu ou se viveu. Também não se soube mais que fim levou sua gente.

Quando dei por mim, estava estático na poltrona de vime, comendo bolinhos da graxa e bebendo a cachaça do copo do moço sentado ao meu lado. A história me impressionou muito e nunca consegui saber se era verdade ou mentira, nem identifiquei o povoado. Saí como entrei, pelo portão da frente, encucado, olhando em volta, pensando que aquilo só podia ser coisa de bruxa, já preocupado se encontro a tal moça no caminho.

FIM

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