Duas Estatuetas e Marina de Pancetti
de Pedro Franco
Manoel, que dia é hoje?
Raquel, dois de agosto, terça-feira.
Cinco minutos depois;
Manoel, que dia é hoje?
Raquel, dois de agosto, terça=feira;
Minutos depois. Manoel está lendo o jornal, para e, como das outras vezes, responde.
Raquel, dois de agosto, terça-feira.
E o dia transcorre com perguntas repetidas, idem respostas
Só quem teve a oportunidade de participar, sabe o infortúnio que é conviver vinte quatro horas e todos os dias com alguém que, perdendo a memória recente, passa o dia fazendo as mesmas perguntas, ou repetindo pequenos comentários sobre o passado. Sabe-se que está com a Doença de Alzheimer, demência senil, ou que outra etiqueta diagnóstica a Medicina tenha colocado no coitado.
Que dia é hoje? _ Sexta-feira, quinze de março.
Cinco minutos depois. Que dia é hoje? _ Sexta-feira, quinze de março.
Em seguida a mesma pergunta e ouve sexta-feira, quinze de março. Se julgar que, quem escreve, poderia ter posto apenas uma pergunta e a respectiva resposta, para não cansar o'leitor, peço que se lembre da posição de quem, tendo amor, ou amizade, pelo enfermo, fica respondendo e respondendo, procurando não perder a paciência e sem esquecer a ternura, até porque mesmo a noite continua a pantomima.
Você já telefonou para Raquel? Telefonei, ela está bem e mandou beijo para você.
Você já telefonou para Raquel? Telefonei, ela está bem e mandou um beijo para você.
Raquel é a maior amiga de Ester e mora com o marido em Houston no Texas. Manoel foi lá fora ver se a Veja já chegara e, ao voltar, ouviu. Você já telefonou para Raquel? _ Já, ela está bem e mandou um beijo para você. Manoel e Ester estão aposentados e passam juntos às vinte e quatro horas do dia, pois, se há saídas da casa, vão os dois. Corda e caçamba diriam os antigos.
Que dia é hoje? Não vamos almoçar? _ Já almoçamos.
Não vamos almoçar? _ Já almoçamos. Você já telefonou para Raquel?
Se Manoel liga a televisão para ver a novela, Ester não consegue se lembrar da cena anterior e desanda a perguntar sobre o enredo, sobre os personagens e Manoel, sem querer, perde o fio da sequência e fica difícil entender o que decorre. É comum ir ver jogos do Botafogo com eles. Ester pergunta. Que jogo é este? Botafogo e Flamengo. O Botafogo é o de vermelho. O Botafogo é o de preto e branco. Que jogo é este? O Botafogo é vermelho? Revezamos, respondendo as perguntas e o jogo perde um pouco da graça, porque outras e outras perguntas são feitas.
Quando saem de casa, Raquel só tem prazer, faz compras e sempre quer os mesmo objetos. Sua graça é comprar e já tem oitenta e três guarda-chuvas e trinta e sete capas. Há uma semana Manoel e eu contamos suas coleções de peças durante sua breve sesta. Compadre, adoro comprar. Todas as mulheres gostam de comprar, inclusive sua mulher, que também adora guarda-chuvas. E são objetos úteis, ainda mais para quem mora na cidade, onde parece que chove todos os dias. Você e Manoel riem, porque não parecem saber que todas as mulheres gostam de comprar. Fica muito zangada se é contrariada e recorre a termos que nunca usaria antes.
_ Manoel pare o carro, naquela vitrine vi uma capa. Estão na Avenida Quinze de Novembro e não há possibilidade de estacionar. Que mania você tem de não parar logo. Agora vamos ter que andar. O dinheiro não é o maior problema para Manoel. Diga-se que há muitos e muitos anos convivo com os dois e também sofro o bombardeio de perguntas. Sempre me dei bem com Ester e, quando enviuvei, tive muito apoio dos dois. Só que Ester não é mais Ester. Quando a doença descrita por Alois Alzheimer a atacou, a vida dos dois mudou completamente e os que tinham vida animada, passaram a viver da forma restrita.
A casa está com ares de decadência, porque meu amigo está cansado e vai deixando a vida correr. E o campo de interesse de Raquel minguou completamente ela no momento se comporta agora como criança, só que muito mimada. Mimada por Manoel, que nem pensa em contrariá-la. Os dois se casaram cedo e Manoel é meu amigo desde os seis anos. Fomos companheiros do jardim da infância ao vestibular. Fui à Advocacia e ele à Engenharia civil. Manoel e Ester foram meus padrinhos de casamento e, ao ficar viúvo, ainda mais os acompanhei. Não houve tempo para termos filhos. Minha mulher morreu em acidente de trânsito, três meses após o casamento. Já meus amigos não tiveram filhos, pois Ester é estéril apesar dos tratamentos feitos e na época em que eram jovens não havia inseminações artificiais, ou métodos de fazer ter filhos à força. Com a aposentadoria, para melhor poder cuidar de Ester, vieram morar em Petrópolis numa pequena casa no Valparaíso.
Como de costume fui visitá-los no sábado pela manhã e só não dormi em Petrópolis, porque tinha solenidade na OAB-RJ de noite no Rio. Desci a serra por volta das dezoito horas. Julho, frio e a viagem, que faço na direção de automóvel desde os tempos de rapaz, foi feita sob o ruço. Estava com ânimo pesado, quando deixei os dois, estado de espírito que muito acontece, quando os deixo. Manoel tentara tudo para melhorar o estado de saúde mental de Ester e ficou muito zangado quando um psiquiatra sugeriu a internação, para dar-lhe um pouco de paz. Fui explicar-lhe a intenção do médico e quase que a zanga se volta contra mim. Confesso que durante o evento na OAB, pensei muito na vida que Manoel e Ester estavam levando na velhice.
No domingo de manhã fui acordado e dormira mal, pelo telefonema de Manoel, que me disse chorando que Ester tinha morrido dormindo e que chamara a ambulância do SAMU em urgência. Este serviço tinha sede no Valparaíso e o médico constatara a morte de Ester. Tomei correndo uma xícara de café e subi a serra o mais rápido que pude. Chegando lá, já encontrei a polícia técnica, pois o médico, que atendera Ester, suspeitou de envenenamento por cianureto. Manoel foi acusado de envenenamento e o mínimo que se disse foi que fizera uma eutanásia caridosa. Apresentei-me logo como seu advogado, porque tinha certeza, até por conversas anteriores, que ele nunca iria cometer qualquer tipo de ação lesiva à saúde de Ester. Nunca vi amor e paciência como os dele. Manoel estava transtornado. Infelizmente a imprensa em época de poucas notícias deu destaque ao caso, que chamou de “A morte de Ester”. Foi notoriedade desusada e indesejada. E apareceram logo três vertentes na mídia e suscitaram argumentos de peso. A primeira foi a tal eutanásia caridosa, a segunda eutanásia por esgotamento pessoal e a terceira, a que me aferrei como seu defensor, foi de assalto por elemento externo.
A polícia técnica trouxe fatos contra Manoel e outros a favor da minha tese. Resumindo, a morte ocorrera entre 21 e 22 horas, não havia sinais de arrombamento na casa e ninguém tinha chaves da casa, exceto as que estavam de posse do Manoel. Ele admitia que fechara toda a casa, depois que saí e passado até a tranca na porta da cozinha. Não recebera qualquer visita. Estas escasseiam, se há doentes com Alzheimer e afins. A porta da frente tinha a antiga chave MSN e também uma fechadura mais moderna, tipo Papaiz. Na casa foram encontradas as impressões digitais do casal, da empregada, as minhas e de um elemento desconhecido. Deste elemento não se encontrou a identidade nos bancos de impressões do país.
Na caneca de Ester foram encontrados vestígios de cianureto, na do Manoel de Flunitrazepam e o casal, sempre antes de deitar-se, tomava chá de camomila, cada um em caneca própria e com as iniciais de cada nome, E e M. Nas fechaduras da porta da frente foram encontrados vestígios, como se chaves novas tivessem sido introduzidas. A empregada, que estava em estado de choque, que saia nas sextas à tarde e só voltava na segunda-feira às dez horas, chamada pela polícia no próprio domingo, notou que na sala faltavam duas pequenas e valiosas estatuetas e um quadro de pequena dimensão, uma marina de Pancetti. A empregada disse ainda que na sexta limpara as duas estatuetas e, ao sair na sexta, colocou-as na sala no lugar de sempre. Enfim, todos os dados podiam inocentar Manoel, ou culpá-lo e dependeria da minha defesa o resultado do julgamento. A impressão digital de desconhecido era muito importante para mim. Contava também o brilho da promotoria. Só que tinha absoluta certeza de que Manoel nunca recorreria à eutanásia e no sábado antes de descer para a solenidade, tínhamos conversado sobre a evolução da doença de Ester e Manoel contara que ainda ia tentar mais um tratamento, aprazado para aquela semana, preconizado por médico com consultório em Areal. Suas esperanças só não eram maiores que sua paciência, em repetir e repetir respostas.
Com a pressão da mídia o julgamento foi acelerado e tive a oportunidade de fazer a melhor defesa de minha vida, levando três jurados às lágrimas. Quando um advogado tarimbado tem certeza da inocência do cliente, pode de fato operar defesa de mérito. Parece que a verdade cria empatia do advogado com jurados, acontecimento que sempre beneficia o réu. Consegui com os dados que tinha e com a pormenorizada descrição da vida dos dois chegar à absolvição. A promotoria bateu na tecla, se não foi o marido, quem foi. E a resposta de fato não havia. E a impressão digital nada vale e os vestígios de chave nova foram anulados? Fui também ainda que de forma sub-reptícia na usada “in dubio pro reo”. Manoel viveu mais dois anos e meio, depois que foi julgado inocente. Permaneceu muito triste, só que em relativa tranquilidade.
Vale dizer que a história daquela noite macabra está guardada em cofre de banco, a ser aberto após minha morte. Neste cofre estão ainda duas estatuetas, uma pequena marina de Pancetti, uma luva com impressões digitais, adquirida em viagem que fiz à Índia um ano antes da morte de Ester, um vidro com pó obtido em serralheria, uma caixa de Flunitrazepam de 2 mg, onde faltam dois comprimidos e um vidro com um resto de cianureto.
Produção Four Elements
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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