Soledade, 1986
de Luiz F. Haiml
Como se sabe, o entardecer, no verão, não se dá
rápido. E pelos interiores, em tal estação, parece decorrer ainda mais devagar, do que nos centros urbanos.
Num cantinho rural da região de Soledade, no Rio Grande do Sul, no sítio em que viviam, e do qual tiravam seu sustento, a família Silva
aproveitava um desses arrastados momentos.
João e
Rosa tomavam seu chimarrão no alpendre da casa, uma habitação simples, de
madeira, ampliada fazia
pouco para dar um quarto só aos meninos. Após a morte dos pais, João morava ali sozinho, até
conhecer Rosa. Sete anos mais velha do que ele, Rosa, antes da última cria-lhe dera Salete, e
antes dessa, Miguel, que dali
a alguns dias completaria cinco anos.
Enquanto a bebê, de apenas alguns meses, dormia
numa cestinha perto dos pais, os três manos mais velhos – frutos do primeiro
casamento de Rosa – corriam e gritavam ao redor da habitação. Salete seguia
junto naquela algazarra, assim como dois incansáveis e barulhentos guaipecas.
Um dos meninos, sempre ao passar pela vaca Gertrudes, plácida a ruminar num
capãozinho próximo, a espezinhava com caretas e pulos. Só Miguel não estava
ali, entre eles.
Rosa tentava não pensar no estranhamento do
pequeno Miguel, no dia anterior. Não havia comentado o assunto com o marido,
esse já andava agitado por culpa de umas dívidas cada vez mais difíceis de
sanar. “Além disso” ela pensava “deve ser coisa de criança, logo passa”, “não
as levarei mais à missa, pelo menos os mais pequenos, devem ter se
impressionado com o jeito daquele novo padre, gritão e falando o tempo todo que
o mundo vai acabar”.
João enchia a cuia quando percebeu o pequeno
Miguel a ir-se já lá pelo meio da estreita trilha de saibro que se iniciava um
pouco a frente da casa e seguia por uns vinte metros até a cancela que dava
entrada ao lugar.
– Miguel!
– Miguel!
O menino voltou-se, calmamente, e sem pressa encaminhou-se a
quem o chamara. O pai sorriu. Gorduchinho, a cabeleira toda em caracóis e molinhas,
Miguel lembrava aqueles anjinhos das pinturas antigas. O menino chegou diante
de João.
– Onde tu ia, meu pequeno?
– Pro céu.
– Tu tá brincando de voar, é? – João largou o
chimarrão no porta-cuia, botou Miguel em seus joelhos. O garoto sorriu.
– Vou ir
pro céu... é lá. – e apontou em direção a uma grande rocha. Dentro do terreno,
ficava ela há poucos passos da cancela.
Tal rocha
já estava lá desde que o lugar tinha sido comprado pelo pai de João. Moldada em
saliências irregulares, de um cinzento que em algumas partes se adensava, era
de não muito vasta largura. Em altura, compreendia duas vezes o tamanho de uma
pessoa adulta. Não passaria de mais uma imensa pedra qualquer, se não fosse pelo formato – quase
perfeitamente retangular – e por intrigar os moradores a questão de ninguém
saber como ela tinha ido parar ali, a erguer-se sozinha e única em meio ao que
só eram campos e matos por quilômetros ao redor, ficando a pedreira mais
próxima em outro município. Decidiram, por isso, não removê-la, deixando-a
fixada em seu lugar como uma espécie de monumento.
Tendo crescido à sombra de tal enigmático
pedregulho, de uns tempos para cá, João dera a acreditar que, pelas arestas
desse, estaria a se esconder um determinado desenho, uma figura que, por mais
que João tentasse, forçando os olhos sobre a superfície irregular e áspera,
nunca lhe vinha nítida.
– Vai brincar com teus irmãos então... .
João devolveu o filho ao chão e estremeceu ao
perceber que o sorriso do menino se transformara num olhar sem vida. Miguel
afastou-se, cabisbaixo, para o lado da casa.
Rosa chegara à porta, tinha entrado para
esquentar mais água:
– João, esse menino está estranho. Não te falei
nada antes, pois tu já andas muito preocupado
***
No dia
anterior, na hora do almoço, tendo deixado João na lavoura pra ir tratar as
crianças – a bebê ficara com uma vizinha – Rosa estranhara que Miguel não
estava a esperá-la; o pequeno sempre a aguardava ansioso, pois ainda gostava de
mamar no peito. E como a Rosa tinha leite de sobra, não se importava com isso.
– Onde está Miguelzinho? – perguntou a mãe
ansiosa?
– Está no quarto, nem saiu de lá hoje -
respondeu Carlos, o mais velho dos irmãos.
– Miguel!...Miguel!...
Sem resposta, ela se apurou ao quarto dos meninos. A
inquietação lhe espinhando mais fundo ao ver o que se passava: as roupas de
Miguel estavam todas sobre a cama, o menino ao lado delas.
– O que é isso, filho, porque tuas roupas estão
assim?
– Não preciso mais delas.
– Por que não?
– Por que logo vou ir pro céu – respondeu Miguel
olhando Rosa – lá é bom mãe.
Ela encostou o queixo na testa do menino para
ver se estava com febre. Nada. Normal.
– Tá com fome, amor? Não posso demorar muito.
Teu pai tá me esperando.
– Não preciso mais comer – o garoto se calou,
abaixou a cabeça, sentia-se culpado por atrapalhar a mãe.
Rosa impacientou-se.
– Tudo bem, então. Mas, quando eu voltar quero
esta roupa toda no armário!
Rosa não viu remédio, tentou se acalmar, tinha
que ir e ajudar o marido; ergueu-se apressada e tropeçou num pequeno vulto
desequilibrando-se e quase o derrubando. Era Salete.
– Filha! – Rosa apoiou-se na porta para não cair
- Cuidado! – e aí percebeu a pequena maleta.
– Vou junto com ele – diz a menina, antes mesmo
que a mãe conseguisse se por totalmente de pé.
– O que é isso, meu Deus? A família está
endoidando!
Do quarto atrás de si, a voz de Miguel:
– Não se preocupe, mãe. Não se preocupe... .
Perdendo de vez a paciência, Rosa gritou:
– Está bem, coma quem quiser, deixei tudo na
mesa! Preciso voltar!
***
Um dos filhos passou correndo – a cuia estava caída diante de João – as outras
crianças iam
surgindo de todos os lados. O mate e a água quente formavam uma massa indefinida aos pés de Rosa. A
bebê despertou,
começou um choro
intenso. Gertrudes iniciou
um mugido ininterrupto, melancólico, olhos arregalados, injetados de sangue.
João e a mulher, sem movimentos, viram os filhos se
fecharem ao redor de uma pequena forma, tombada essa, bem junto à grande rocha.
Não podiam ver,
porém, as sombras, que das raízes do grande monólito afloravam, e, se entremeando ao
corpo de Miguel, iam
lhe desfazendo os traços.
Então, o grito.
– Pai, ele tá morto!
Naquele mesmo instante, naquele especifico ponto
da pétrea superfície que tanto o instigava, revelou-se a João, uma imagem. Por entre as duras,
rugosas arestas, surgiu
um rosto. E João o reconheceu.
Soube logo de quem era aquela face
profundamente tomada por um sofrimento silencioso mesclado a uma indizível
bondade. Num dos vitrais da sua igreja, com um olhar de imensurável ternura, o
mesmo homem, cujo rosto João naquele
momento via
em traços bem claros, segurou
uma ovelha em seu colo. Por um momento, o coração do pai ganhou conforto.
A família mudou-se. “Culpa das dívidas”, alegou o casal.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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