A Misteriosa Loja do Sr. Mendes
de Eric Camargos
Quando a loja foi inaugurada, três
dias antes de Mirian Ferreira visitá-la, não se falava de outra coisa. Dezenas
de crianças se deslocavam até o bairro Rosário, na pacata cidade de Carmo, para
conferir a novidade. Ao que parecia, o sr. Mendes havia chegado em um bom
momento, sobretudo levando em conta que o dia das bruxas seria em poucos dias e
comemoração com crianças pedindo doces nas ruas, fantasiadas era uma novidade
naquela cidade.
Faltava uma semana para o “grande
dia” e para Mirian era mesmo um dia grande, do tipo que demorava passar e toda
aquela animação a fazia se sentir doente. Ela era possivelmente a única pessoa
de 12 anos que, por motivos pessoais, não gostava de eventos como aqueles. E
para sua infelicidade, fazia dias, que a pequena cidade já estava naquele clima de festejo, com as
decorações já postas: casa ornamentadas por teias e abóboras com rostos
malignos, esqueletos e fantasmas que brilhavam no escuro e réplicas de
personagens saídos de algum conto de Edgar Alan Poe.
Ela admitia que até gostava da
decoração em si. O que ela não gostava, além dos gatilhos mentais, era da
mentalidade colonizadora por detrás da coisa, em seu sentido cultural mesmo. A própria ideia de
apropriação de elementos da cultura celta e a distorção de alguns conceitos lhe
pareciam problemáticas.
Na manhã em que Mirian fora à loja
gostara bastante do ambiente. Na loja havia de tudo relacionado ao dia das
bruxas, desde doces, fantasias, artigos até livros de autores conhecidos, como
Stephen King e Érico Veríssimo. Ela comprou um livro chamado “O Vilarejo” de
Raphael Montes e após pagar no caixa a um homem corcunda com dentes amarelos,
saiu da loja.
Do lado de fora, Mirian notou algo
curioso: havia, rente às vitrines, uma boneca de madeira falante, convidando
todos para entrar. Pessoas entravam e saiam da loja, sem perceber que uma
menina tentava conversar com uma boneca. De repente, ela sentiu um forte aperto
no pulso e, sobressaltada, percebeu que era a boneca e a mesma olhava
diretamente nos seus olhos.
- Não se aproxime daqui no dia 31!
Todos correm perigo – a boneca falou em um tom de assombro.
Paralisada pelo susto, Mirian
desviou os olhos da boneca e para a vitrine e viu pares de mãos se projetando
na superfície do vidro como se os seus donos estivessem presos por ele. Foi apenas um
lampejo, segundos que se enraizariam em sua memória.
- Bom dia, criança – uma voz grave
fez Mirian recobrar a sensibilidade, no mesmo instante em que a boneca soltava
seu pulso. O sr. Mendes estava na porta
de loja e examinava a garota atentamente, o rosto tomado por uma expressão
cordial que não a fazia se sentir melhor.
Mirian não respondeu. Enquanto se afastava, espiou por cima do ombro e o sr. Mendes ainda estava lá na porta, a encarando com avidez.
Os dias que se passaram foram os
mais difíceis da vida de Mirian. Além dos pesadelos envolvendo bonecas de
madeira e o sr. Mendes, ela tinha que lidar também com as visões de mãos no seu
espelho, além de variações macabras em seu próprio reflexo; o seu próprio rosto
com um aspecto doentio e um sorriso megalomaníaco.
As coisas pioraram quando correu
pela cidade a notícia de que de que Paulo Linhares, o cdf do nono ano, considerado
um exemplo de aluno, havia sido detido após espancar gravemente um casal de
meia idade com uma barra de ferro. Mirian não sabia como explicar, mas quando pensava no
assunto acabava involuntariamente associando o incidente ao sr. Mendes.
Pelo restante da semana, ela dormiu
e comeu mal. Por vezes seus pais a flagraram aos berros por causa dos
pesadelos. Mirian fazia de tudo para não preocupá-los e para que o seu
terapeuta não tivesse que aumentar a dose dos seu remédios; ainda assim, sonhos
e pequenas manifestações de caráter sonâmbulo eram coisas sobre os quais ela
não tinha controle.
Finalmente o dia das bruxas chegou e
junto com ele duas notícias peculiares: uma era o comunicado de que o sr Mendes, no intervalo
entre 18:00 e 20:00 distribuiria doces de graça na sua própria loja e que
depois desse horário, as portas se fechariam; a outra era que Robson, um dos
amigos de Mirian havia sido detido também, por tentar colocar fogo, sem
sucesso, na Igreja São Francisco. A semelhança desse curioso ato com o caso do
Paulo era que ambos os garotos sempre tiveram excelente conduta e de agora em
diante estaria sob rígida vigília.
Mirian, com a ajuda de sua
imaginação, conseguiu estabelecer uma relação não muito óbvia entre esses
eventos e essa compreensão lhe renovou os ânimos. Ela ligou para seus outros
dois amigos e eles chegaram à sua casa em poucos minutos. Estavam no quarto
dela quando Mirian iniciou:
- Alguma notícia nova do Robson?
- Não – William respondeu – Eu
passei na casa dele mais cedo, mas a mãe dele nem me deixou entrar. Parece que
ele pirou.
- Será que é alguma virose que ataca
o cérebro? - perguntou
Roger, o outro garoto.
- Tipo raiva?
- Eu tenho outra tese. - Mirian
disse – Eu acho que isso tem a ver com essa loja nova e aquele sr. Mendes. Eu
não sei como, mas tem algo macabro com aquele lugar.
Mirian relatou com poucas palavras o
seu incidente com a boneca falante, as mãos na vitrine e sobre como tudo isso
vinha a atormentando desde então. Quando terminou, os dois garotos se
entreolharam, em um misto de divertimento e incredulidade.
- Você também tá louca. - William
disse – E pode ser contagioso. Tá todo mundo pirando.
Ele estremeceu diante da ideia.
- Pense o que você quiser. - Mirian
rebateu, impaciente – Tá acontecendo alguma coisa e eu acho que não vai parar
por hoje.
-Você acha que o sr. Mendes tá tipo,
hipnotizando as pessoas pra elas virarem criminosas? - Roger indagou.
- Não sei. Vamos descobrir hoje na
hora que formos pedir doces na loja dele.
Mirian já esperava que seus pais estranhassem
a sua repentina decisão de participar do recolhimento de doces com seus colegas, mas não
fizeram nenhuma objeção. Por volta das 18:30 ela já estava pronta: vestira uma
capa preta, um chapéu pontudo da mesma cor e dez minutos depois estava pelas
ruas da cidade, repletas de crianças, acompanhadas e desacompanhadas, entoando
“travessuras ou gostosuras” nas portas das casas.
A loja, como era o esperado, estava
um caos. Havia multidões de crianças na porta e dentro da loja, e multidões
saindo da loja com suas cestas
cheias de doces. Mirian tentou se manter alerta, apenas observando, na
tentativa de captar algum comportamento anormal, o que era absolutamente inapropriado,
uma vez que na noite de halloween, o comportamento anormal era esperado em suas
diversas facetas, de modo que captar condutas estranhas específicas seria
extremamente difícil.
Mirian, Roger e William decidiram se
revezar para entrarem. Ela foi a primeira, enquanto os outros aguardariam
sentados nos bancos de cimento. Dentro da loja, a menina viu muitos rostos
conhecidos, em sua maioria gente da escola. Viu também, sobre a prateleira de
maria mole, a boneca de madeira que, apesar de não estar falando naquela noite,
parecia olhar diretamente para ela. O sr. Mendes estava no caixa, enchendo os
sacos e cestas, no rosto um sorriso estranho. Ele usava uma capa preta sobre um
fato vitoriano e uma cartola que fez Mirian se lembrar de um tal Zé do Caixão,
que aterrorizava pela televisão crianças nascidas nos anos 90.
Mirian se pôs na fila, no intuito de
não ser notada e correu os olhos pelo salão caótico. Logo percebeu uma outra
fila, aos fundos da loja. Ela era monitorada pelo único funcionário que o sr.
Mendes tinha, o careca corcunda com um sorriso estranho. Mirian dedicou sua
total atenção a aquilo e percebeu que os meninos daquela fila entravam e saíam
por uma porta em intervalo de segundos.
- Doçuras e doçuras! - ela ouviu a
voz do sr Mendes bem próximo e percebeu que era a sua vez de ser atendida -
Como você está, Mirian?
Mais tarde ela se daria conta do
sutil fato de que nunca contara o seu nome para ele. No momento, se esforçou para esboçar
um sorriso nada convincente, um murmúrio de obrigada, o que só entregava a sua
tensão. Ela saiu da loja com alguns doces a mais na cesta, e enquanto
atravessava a porta, estava ciente dos olhos incômodos do sr. Mendes a
observando, como da última vez.
- É o ajudante. - ela disse para os
dois garotos ainda sentados no mesmo banco da praça em frente à loja. - Ele leva as
pessoas pro fundo da loja e faz a lavagem cerebral ali mesmo.
- Eu ainda acho que você tá pirando
– William disse, jogado uma bala pra cima e falhando ao tentar apará-la com a
boca.
E eles ficaram ali pelo restante do
tempo, enquanto o número de pessoas na loja ia diminuindo até que às 20 horas
em ponto, não havia mais ninguém e as luzes foram apagadas.
- Vamos dar uma espiada. - William
disse.
Foi com certa relutância que os
outros dois concordaram e os três começaram a caminhar lentamente em direção à
loja. Mirian não tinha em mente exatamente o que fazer, embora àquela altura sua cabeça
imaginasse uma série de coisas que poderiam ocorrer nos confins daquela loja,
assim que as portas se fechavam. Em última instância, se algumas de suas suspeitas se
confirmassem deviam chamar a polícia.
Entrementes, mal haviam dado dez
passos, quando a porta da loja se abriu. O sr. Mendes se projetou para fora em
uma postura de ameaça e quando
o seu rosto foi parcialmente banhado pela luz do poste, os garotos
estancaram, diante daquela expressão diabólica. E quando ele gritou, a sua voz
pareceu se duplicar, como
se fossem duas pessoas usando
a sua boca.
- Eu disse até 20 horas!
De repente as luzes dos postes
oscilaram e a escuridão tomou conta da praça. Uma forma escura com presas à mostra
saiu de dentro da loja. Levou alguns instantes para que os garotos
discernissem, em meio à cegueira, um enorme cão negro, quase do tamanho de um
urso. Ele vinha se
aproximando lentamente, até que o seu latido causou um estrondo e ele disparou.
Os garotos dispersaram. Mirian,
tomada pelo pânico, correu rapidamente para debaixo de um dos bancos, em tempo
de ver William e Roger correndo aos berros com a monstruosidade em seu encalço.
Ela levou as mãos a boca para conter os gritos, ciente de que eles não
conseguiriam escapar. Então, do seu esconderijo, ela pensou ter ouvido passos
apressados antes de a sombra se projetar sobre e sob o banco e a mão
horripilante e comprida do ajudante do sr. Mendes a forçar sair dali.
De volta ao interior da loja, o sr. Mendes
ainda mantinha no rosto aquela expressão maníaca, apesar de não haver a menor
cintilação de ameaça em sua postura. Ainda assim, Mirian sentia o seu coração
bater descompassado, menos preocupada consigo mesma do que com William e Roger.
- Eu fico feliz que você esteja
aqui, Mirian. - o sr. Mendes disse.
-O que é você? - ela perguntou sem
muita certeza se queria saber.
- Eu sou apenas alguém que vê dos
dois lados. Nisso somos muito parecidos.
Ela não fazia ideia do que aquilo
significava, mas fosse o que fosse, aquela coisa estava absolutamente enganada.
- Eu sei o que você quer aqui,
criança, e eu estou disposto a lhe conceder esse desejo. No final da loja há uma porta.
Vou lhe apresentar duas opções: na primeira você vai embora e vê tudo da janela
da sua casa, ninguém a tocará, mas o resto da cidade vai presenciar o
verdadeiro sentido do dia das bruxas. Na segunda opção, no final da loja há uma porta,
você poderá atravessá-la e ter a resposta à pergunta que tanto te aflige.
- O que tem lá? - Mirian perguntou,
misto de curiosidade de medo.
- Essa é a sua escolha? - o sr.
Mendes rebateu com indiferença.
Havia algo de muito errado. Tava
tudo muito fácil, ainda assim, uma intuição não muito agradável, mas
convincente o suficiente pra fazê-la dizer sim, a convenceu a caminhar em
direção à porta. Seu coração batia descompassado e assim que alcançou uma
distância em que podia tocá-la, ela hesitou. Por fim prendeu a respiração e
girou a maçaneta. Agora com passos quase que involuntários ele avançou por um
corredor escuro, mas que não tardou a exibir uma luminosidade fria.
Ela penetrou no cômodo de onde a luz
vinha. Era um salão de loja idêntico ao qual tinha saído, exceto pelas cores.
Não havia toda aquele colorido de decorações dos dias das bruxas com lanternas
dentro de abóboras, mas a decoração estava ali, mórbida, sem atrativos, banhada
pelo azulado proveniente das lâmpadas. A sensação era acentuada pelo forte odor
de panos úmidos abafados em uma caixa de madeira por semanas, mesclado ao odor
pungente e ferroso de sangue animal.
Ela foi andando lentamente até sair
da loja e o exterior também era similar à cidade, com notáveis divergências.
Não havia estrelas no céu e nem folhas nas árvores. A pracinha era iluminada
por uma entonação vermelho sangue da lua que de fato parecia sangrar. Um trio
de senhoras de aspecto cadavérico, olheiras, vestidos negros e coques ocupavam
um banco, todas segurando xícaras que continham algo que Mirian não queria
saber. Próximo delas estava um senhor de boina e barbas brancas, o rosto com a
mesma expressão, ou talvez falta de expressão fosse mais apropriado. Havia também, em outras partes da
praça e na rua, crianças, muitas delas, algumas arrancando nacos de carne crua
de suas cestas e comendo com o mesmo prazer com que os amigos de Mirian comiam
doces.
Mirian, horrorizada, incapaz de dar
mais um passo que fosse, vislumbrou uma menina sentada na calçada, na frente da
loja. Ela estava vestida com capa preta e chapéu pontudo e quando se pôs de pé, Mirian
percebeu que o rosto dela era quase igual ao seu; o mesmo rosto que ela vinha vendo nos últimos dias
no espelho. A menina começou a dizer, a voz mórbida e sem vida:
-Esse é o reino onde os fragmentos
renegados de todas as almas tomam forma. Nascidos da repressão, da negação e da
vergonha. O reino da sombra coletiva.
Ela se aproximou de Mirian que
parecia grudada ao chão e continuou:
- Queremos liberdade, o direito de
existir. Por eras fomos reprimidos, tratados como uma doença, e você foi
tratada como uma doente, dopada e sedada desde que descobriram que você podia
se comunicar com os outros planos. Agora você está aqui e a sua luz é maior do
que a dos outros e consequentemente, o meu poder é grande.
Então Mirian entendeu, no auge da
sua vertigem, o que estava acontecendo. Não era hipnose, não era lavagem
cerebral, era apenas o mal reprimido, tomando forma e se deslocando entre os
dois mundos. Era os desejos escondidos, o desejo de destruir, de aterrorizar,
de matar. E algumas manifestações, estavam do outro lado, tomando o lugar de
Robson, Paulo e mais outras dezenas. E ela se lembrou dos seus pais, do
ressentimento que sempre nutrira por eles, pela forma fria e pouco empática
como sempre trataram o seu problema, do tipo “tudo se resolve com comprimidos e
orações” e de como aquilo ajudara a criar aquela menina que estava à sua frente
e que tinha o seu rosto, sua voz.
A menina sombra se voltou para a porta, onde o sr. Mendes esperava, com aquele sorriso demoníaco e ela, Mirian queria gritar. Precisava impedi-los, e por alguma razão, não conseguia se mover, como se estivesse presa em uma paralisia do sono do qual ela precisava acordar, mas continuou paralisada enquanto eles sumiam pela porta, em direção à loja e ao mundo da luz.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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