A Montanha Mágica
de Gustavo de Andrade
Em
uma rua suja, vagava sanguinolento, um espécime vagabundo noturno e doente. Trôpego,
pálido e frio, após mais um dia de esbórnia, mal podia conter sua ânsia
imortal. O sol poderia incinerar aquele corpo maltrapilho com o calor de sua
divindade, mas a sarjeta levava a podridão sob a tração das ratazanas
descomunais que também buscavam a sombra.
Devassidão,
luxúria e, ainda que aparentemente imune a doenças humanas, carregava um
coração podre, que doía sem bater. Todas as noites, de todos os dias, como um
infravermelho o calor o atraía e, como um espelho ao maior dos narcisistas, no
fundo dos olhos mais límpidos e amorosos não encontrava seu próprio reflexo.
Em
uma busca amaldiçoada, perambulava por vielas escuras atrás de prazeres e
libertinagem. Podia sentir o perfume da noite em seus caninos, mas seus olhos
turvos, eclipsados pela nicotina de mil anos, não podiam enxergar. No escuro
estendia as mãos em busca de um toque, mas somente sabia reconhecer a pele que
carregava sob as unhas e os vultos inférteis de sua imaginação.
Ser
aquele animal era pungente e amargo. A felicidade nem mesmo era a felicidade de
tão entorpecida e deturpada; o prazer sequer se estendia ao primeiro segundo
após a intenção; a mão já não podia parar de tremer, tamanho a mania de se viciar em
coisas que já não existem em doses suficientes. Era como se afogar de tanta sede.
Um paradoxo existencial.
Existia
uma força maligna que tomava sua posse, como se fosse possível encontrar
refúgio dentro do mais profundo segredo. Quanto mais escuro era o sentimento,
mais seguro era possível se sentir. Bastava fugir da luz, negar a solidão e
permanecer selvagem, em mergulhos instintivos de fuga e luta.
Alguns
anos moldaram a rotina infernal daquele ser desiludido. As máscaras haviam
caído, pois já não faziam sentido, em total escuridão. Aquela monstruosidade
estava quase de joelhos, encastelada em seu ninho cercado de olhos a espreitar
seu corpo inerte e pútrido. No entanto restava um ato último de misericórdia,
ainda que inconsciente. Um salto sem a vergonha e o medo, mortal e revigorante.
O
que poderia curar uma entidade invulnerável das trevas?
Não
cabia naquela alma um deslize de amor-próprio e, naquele sangue empedrado, nada
era fluido o bastante para que pudesse conter injeções de dopamina. Já não era
possível sequer absorver o êxtase, nem lágrimas brotariam de rugas desérticas
há eras. O próprio arrependimento soava amargo e bolorento, mas o embrulho no
estômago era melhor do que a gastrite alcoólica.
Um
esforço de sorriso quase puro, um esboço produzido por sua arma mais lancinante.
Era como segurar a espada por sua lâmina e em cada estocada sentir deslizar o
fio cortante por suas mãos. Estas mãos cujo poder e destreza arrancariam um
coração sem derramar uma gota de sangue. Estava perdendo a cabeça e lesionando
seus próprios atributos de subjugo.
A
desintoxicação é severa com o hospedeiro. Quando os olhos são marcados pela
luz, a imagem permanece incrustada, como uma pérola que aos poucos perde o
brilho, até cair no esquecimento. Não importa o quanto queime, a ânsia pela luz
atrairá como vagalumes e haverá a esperança de que a luz perdure ao cerrar os
olhos. Como um cigarro aceso na escuridão abissal, no mais profundo dos oceanos.
Para
quem já não dormia, sonhar é um começo.
A
noite caiu e a lareira iluminava os quadros no entorno daquela sala quase
reconfortante. A chuva orquestrava as goteiras, refletindo um certo grau de
relaxamento. Era um ambiente até acolhedor. Então a dor deu lugar ao alívio,
como se houvesse uma vaga de sentimento, onde poderia ser alocada qualquer
memória. Porém já não existia memória alguma, como um livro em branco de uma
tonelada e capa dura como uma rocha.
Levantou-se,
foi até o jarro e derramou sobre os lábios; sentiu a água sob a língua e a
escorrer por sua garganta. Então, novamente, como em um segundo beijo, o
líquido encharcou seu corpo. Um segundo beijo! Pela primeira vez, sem que
houvesse notado. Por descuido, deixou derramar sobre o seu peito, causando calafrios
até o seu umbigo, assustando seu corpo, como em um choque, e prontamente
repeliu aquela invasão de sentidos impertinentes.
Enquanto
a água corria por seu ventre, causando desconforto e uma sensação de nudez, percebeu
que aquela experiência chegava a ser, de certa forma, prazerosa. Aos poucos
começava a entender o que faltava para encaixar as peças em seu caminho tantas
vezes tortuoso.
Com
um novo pensamento surgindo em sua cabeça, retirou suas roupas molhadas e se
enrolou confortavelmente em um cobertor, junto à lareira. Olhava fixamente para
um dos quadros, onde via uma montanha encobrindo os últimos raios de sol. Pegou
um papel e uma caneta e se pôs a registrar seus pensamentos, talvez em forma de
poema, escreveu:
“A
vida é como um punhado de terra e devemos abrir mão para viver. Não podemos
cerrar os punhos, para ao final descobrirmos que não carregamos nada. É preciso
dar as mãos, semear e deixar que o vento espalhe nossas vidas; devemos
compartilhar, e nossas mãos restarão unidas, não nos deixando cair”
Adormeceu,
com a acolhida de algo magnífico e indescritível! Naquele dia se tornou um
receptáculo viável para os pequenos milagres que passam despercebidos pelo
cotidiano. Existem infinitos presentes divinos em cada compasso, em cada
respiração, mas a inconsciência é um mal que pune a mente absorta, deixando
escapar os grãos preciosos de vida por entre os dedos. É preciso um grande
corte na linha da vida para que o punho cerrado consinta em renunciar aos seus
maiores pecados.
Um
novo dia, ou melhor, uma nova era! O período das sombras parecia ter ficado
para trás. A chuva ainda caía, mas era fina, acompanhada por um céu quase claro
e o sol. Mais que o sol! Enxergava as cores, como um daltônico pela primeira
vez, como um milagre! E ouvia os pássaros, com a atenção de um surdo que jamais
ouvira sua voz, mas que agora era capaz de ouvir as batidas de seu próprio
coração.
Saiu
pela rua sem temer o dia e o que viria a encontrar em sua nova jornada. Não era
o céu da madrugada, nem mesmo as nuvens que ainda pairavam eram escuras. E as
frutas, todas maduras, exalando aromas. Como as flores, antes de fechado botão,
agora abertas e convidativas, como o seio que carregava em plena expansão.
E
na esquina, na primeira esquina, já vira um cão, coçando-se graciosamente, como quem pede um
carinho, sem jamais se perder no caminho, pois não há rua que leve à felicidade
pela contramão. E na segunda esquina? Não. Não havia nada, somente a
imaginação. Recém-saída de uma prisão quase perpétua e absolvida no dia marcado
para a execução.
Então
seus passos, descendo as ruas de paralelepípedo, sem qualquer tropeço, seguiam
rumo ao rio que dividia a cidade. Passou pela praça central, acenou para o
padre, que mal lembrava de seu rosto. Todas as pessoas sorriam naquele dia, não
sabia o motivo. Tudo bem, pensava, pois da própria felicidade que sentia não
sabia reconhecer a origem.
Chegou
ao passeio dos barcos, onde estava – um barco – o que mais? A esperar no cais.
Não sabia aonde iria, mas ao golpe de uma ventania, resolveu adentrar ao
flutuante retrato, sem mais.
Pegou
o jornal na entrada e sentou-se na proa inclinada, quase a ver todos os demais.
A ventania havia parado, então tentaria ler o diário em paz. Não podia ver o
caminho, mas via que não estava só, enquanto tentava ler àquela página e a sua
atenção desviava para qualquer movimento melhor.
Então
riu, ao perceber que nada lia, mas todo o entorno era poesia e nada poderia ser
mais perfeito. Enquanto os sorrisos vagavam, o barco seguia seu rumo. Seu velho
livro em branco se abria, e a vida talhava na capa um título inspirador. Talvez
escrevesse um conto, talvez um poema de amor, mas se deu conta que de nada
adiantaria, pois nem um verso de fato viria e nem sequer era escritor.
O
barco aos solavancos agitava, enquanto as pessoas ao susto gritavam, com graça
e até mesmo pavor, mas o caminho elas ainda trilhavam, com o mesmo destino
embarcavam, “para além do bojador”.
Era
somente o primeiro dia e tanta coisa acontecia. Nada incomum, mas ainda assim:
que dia! Pensava sem qualquer rubor. Toda pessoa deveria provar destas águas,
ao menos por uma vez, e acordar inteiramente coberta, de seja lá o que isso
for. Mas de tudo, ao abrir os olhos de forma tardia e perceber que nascituro
por todo tempo vivia era libertador.
Quanto
tempo havia perdido! Tudo por um vício, por uma trágica e ludibriante rotina de
uso abusivo da própria vida, com a mesquinhez de jamais partilhar o que
realmente importava. Talhava-se com um egoísmo sombrio, que esfriou seus olhos
até causar a cegueira, misturou mentiras, falsas esperanças, infidelidade, e a pior
das inverdades: a auto-enganação, dopando os sentidos, fazendo confundir os
gemidos com a razão.
Por
fim, o total isolamento e a busca pelo esquecimento, mas nada satisfaz. Não
importam os métodos, o corpo permanece sedento, até não restar nada por dentro
e a beleza se esvair. Por fora, tudo é perfeito, mas tem dias que nem a
tristeza quer vir. Nessas horas escuras, não há ninguém que procure, não há
palavra que cure, há somente aquela luz para ajudar a respirar. Um segundo
antes da loucura aquela mão que segura e faz ressuscitar.
É
preciso acreditar em si, é preciso ter força para ver o que realmente importa.
A cura para a imortalidade é a vida, não a morte, pois há tanta coisa que se
pode fazer para ser feliz. Tanta coisa que vale a pena.
O
longo passeio seguia, parando em cada ponto do caminho e cada pessoa que
entrava sentia alegria no ar. Uma aura distinta, que a todos dava a tinta para
o quadro que pudessem sonhar. Durante todo aquele tempo, somente nutria os
melhores sentimentos e não conseguia mais parar. Usou o jornal como assento e
não leu uma linha lá de dentro, somente agradeceu por seu lugar.
E
o barco reduziu a velocidade, retornando mais uma vez para a cidade, agora
ainda mais diferente. Todo aquele dia era novidade e assim também seriam os dias
dali para a frente. Também o seria para todos que dispusessem a provar, daquela
vida bem-dita, daquelas páginas ainda não escritas, daquele barco que levava a
qualquer lugar.
Seguiu o seu rumo ainda mais calmamente, como se ali nunca estivesse estado presente, com profunda admiração no olhar. Mais tarde, retornando ao castelo, com o sol já perdendo o amarelo, disse em voz alta para o mundo escutar: amanhã será ainda melhor, pode esperar!
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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