Anunciação
de Luiz F. Haiml
“Elevo os
olhos para os montes, de onde me virá o
socorro?”
Salmos 121:1.2
Sábado, após a janta, Dona Teresinha se botou a
separar o arroz que cozinharia no outro dia.
Dona
Teresinha já fora casada duas vezes. Agora, há quase vinte anos, vivia sozinha na
pequena casa negociada da última separação. O lugar, no intercurso entre as
cidades de Taquara e Santo Antônio da Patrulha, era próximo a um posto de
pedágio e à beira da RS 474.
Tinha
ela duas filhas, única herança do primeiro casamento. Essas, quando a
visitavam, preferiam ir em dias diferentes. Raro outro parente aparecia. Algum
dos poucos vizinhos, já tudo de idade como ela, às vezes ia bater papo, tomar
um chimarrão ou ver se não estava “precisada de nada”. Se alternavam eles na
extensão sem asfalto, que iniciava ao lado do terreno de dona Terezinha e, quase
um quilômetro depois, achava a 474 novamente.
Enquanto separava o arroz – coisa que até em
casa alheia se oferecia para fazer – dona Teresinha pensava na festa de Zenaide. Seria na tarde do outro dia, domingo.
Ela tinha vontade de ir, mas ainda se recuperava de um AVC, tinha que ter
certos cuidados. E a casa de Zenaide, além do posto de pedágio, dava uma boa
caminhada. Teria que recorrer a uma carona.
Zenaide
completaria dez anos. Como a data cairia numa terça-feira, combinaram de
comemorar antes, no domingo. Dizem que dá mau agouro festejar antes da data.
Pode ser até que vá mais gente, na segunda
tem o feriado, Finados. Esperançava a menina.
O
domingo veio, a festa se deu. Mas não foi um evento feliz. Os pais de Zenaide brigaram
logo pela manhã. O pai nem almoçou em casa. Se arrumou, se perfumou, saiu. A
mãe até que tentou, mas foi impossível disfarçar a tristeza, aos poucos que apareceram.
Acho que não gostam mais da gente pensou Zenaide. Não foi festa, foi velório. Nem dona Teresinha veio.
O pai chegou,
já estavam todos deitados. Os irmãos dormiam, ela e a mãe não. Zenaide ouviu os
barulhos do embriagado, seus resmungos, a mãe levantando, sob ameaças, para
preparar algo. O silêncio só veio, enfim, quando o pai desabou na cama.
No
outro dia, por causa do feriado, poderiam ficar dormindo um pouco mais, mas Zenaide,
que sempre acordava sem ninguém chamar, levantou-se, pôs os chinelos e vestiu-se
o mais silenciosamente possível. Olhou por uma fresta entre as madeiras da
parede de seu quarto, nada viu lá fora a não ser uma densa névoa ainda a cobrir
tudo. A menina foi então à porta do quarto dos pais, espiou, sabia que não
acordariam. O pai, pelo efeito da bebida, a mãe, pelo cansaço. Então ela foi,
pé ante pé, até a cômoda, abriu-a e tirou dela uma caixinha.
Sempre
cuidando para não fazer barulho, na cozinha pegou uma sacola plástica e enfiou
nela algumas fatias de pão, uns doces sobrados da festa, um pedaço de salame e
saiu. Do lado de fora, abriu a caixinha. Nela havia um cordão em ouro com uma
medalhinha de Nossa Senhora. Zenaide a pôs no pescoço. Era da mãe, estava na família
desde a bisavó de Zenaide. O corpinho franzino e espichado de Zenaide estremeceu.
Ela fechou o casaco. Guardou a caixinha na sacola. Percorreu o curto caminho do
terreno que desembocava numa estrada de chão e aí virou à esquerda.
Andou por
cerca de alguns minutos até encontrar uma cerca de arame farpado. Com cuidadosa
prática atravessou-a entrando nas terras de seu Almiro. Havia uma porteira mais
adiante, mas ficava longe e a afastava do trajeto que ainda teria pela frente,
sendo mais fácil cortar caminho por ali. Seu Almiro – que todos falavam ser
meio esquisito – gostava de Zenaide como se fosse um tio querido e tinha ido
com dona Nilce, sua esposa, a festa dela.
A
névoa se dissipava. Sons de bugios se misturavam aos de vários pássaros. O pai
vivia dizendo que já tinha matado muitos bugios, mas ela nunca tinha visto
nenhum. Não muito depois da cerca, a menina chegava frente a uma trilha que
embrenhava por um capão comprido de árvores fechadas. Antes de seguir por tal
caminho, porém, ela pegou algumas coisas da sacola, agachou-se e se pôs a
comer. Mastigava um pedaço de pão com salame, quando sentiu uma dolorida fisgada
num dos dedos dos pés. Olhou rápido para baixo, por pouco não parara sobre uma
longa trilha de formigas. Umas voltavam sem nada carregar e outras, que iam
rumo contrário, levavam pequeninos restos. Curiosa, voltou-se para ver de onde
buscavam o alimento. Perto dela, barriga para cima, um grande sabiá. As formigas
saiam e entravam das tripas do bicho, arrancando-as pedacinho por pedacinho. Zenaide,
enojada, quase cuspiu o que tinha na boca. Afastando-se, conseguiu terminar de
comer. A seguir, voltou e esfarelou pelo chão os restos do que trouxera.
Talvez deixem um pouco o pobre bicho.
Então ela
entrou pela trilha estreita, que em certas partes quase desaparecia. O lugar
era escuro e úmido, a todo instante ela tinha que se desviar de galhos ou passar
por baixo deles e, num desses momentos, sentiu que a correntinha se prendera. Passou
a mão ao pescoço e percebeu que o fininho cordão de ouro não estava mais ali. A
aflição tomou seu rosto magriço e sardento e ligeiro ela se abaixou a procurar ansiosa.
Finalmente, a angústia que aumentava cada vez mais – enquanto os dedinhos, longos
e finos, reviravam nervosos o denso mato em torno de si - parou. Um reflexo
chamara-lhe a atenção.
A medalha de Nossa Senhora!
Mais um
pouco de caminhada e a luz, até então quase bloqueada pela proximidade
entrelaçada de galhos e copas, começou a descer por entre as árvores, que escasseavam
cada vez mais e, quando terminaram, abriu-se, diante de Zenaide, o seu destino:
um volumoso, amplo e plácido açude. A menina estivera pela primeira vez ali,
quando as coisas ainda iam bem. O pai a trouxera, e ao irmão mais velho –
Zenaide era a do meio – para pescarem. Ela achara a paisagem que tinha diante
de si tão bonita, tão calma, que tal lugar passou a ser o seu refúgio, quando percebia
que as brigas iam começar a ficar feias em casa.
Zenaide
sentou-se num banco artesanal feito de troncos que seu Almiro fizera, o açude ficava
nas terras dele. À direita, daquela grande porção de água onde seu Almiro criava
peixe, após uma longa plantação de arroz, estava a casa dele, pequenina,
encolhida pela distância. À esquerda, via-se um longo trecho da movimentada
faixa, lugar de tantos acidentes, e reto a Zenaide, atrás do açude, um alto
morro se erguia e se estendia tapando uma boa parte do horizonte. A menina tinha
uma vontade danada de um dia conhecer o que havia depois dele.
Não
muito depois de terem ido àquela pescaria, o pai começara a ficar diferente, dava
menos atenção a família, por qualquer coisa se irritava, criava caso, e passava
muito tempo fora de casa. Surgiram rumores, e nas redondezas cochichavam que ele
estava de caso com a “alemoa” da venda, que andava apaixonado por ela. Teve uma
grande discussão entre ele e a mãe. Essa
queria separar-se, ir embora, mas nem tinha para onde. Ele não queria dar a
separação, disse que se ela fosse a acharia e a mataria. E assim estavam sendo
as coisas há uns três anos. Quando o marido da “alemoa” enfim decidiu morar na
cidade, e levou a mulher junto, o pai a substituiu não por outra, mas outras, e
as bebedeiras passaram a acontecer quase todos os dias. No atelier em que ele trabalhava
algumas moças lucravam com suas fraquezas, e, gananciosas, o apresentavam a
novas companhias.
Devagarinho
foi crescendo uma raiva em Zenaide, queria que o pai se fosse, sumisse
totalmente. Ao vê-lo tonar-se mais e mais distante e cruel, seu desejo só aumentava.
Sabia que não era certo, mas há muito rezava para que ele mudasse, se curasse, e
como não estava sendo atendida, mesmo com um peso no coração, começou a pedir a
Deus que a ajudasse, então, de outra forma. Sentada no banco esculpido por seu
Almiro, naquela paisagem agora iluminada e tranquila, pensava ela sobre toda a
situação, quando um forte calor, inesperado, a tomou por inteira. Assolando de
modo intenso a alma e o corpo de Zenaide, ele a fez perder os sentidos.
Ao
voltar a si, sem saber quanto tempo ficara desacordada, a menina viu-se caída
na relva. Devagar ela foi voltando ao banco, meio entontecida, a vista turva. Enfim,
tudo ficando nítido, percebeu que as águas do açude, normalmente paradas, se agitavam.
Com uma estranha sensação, Zenaide foi elevando o olhar acima delas, e o que
viu, era semelhante ao que vira em figuras, nas aulas de catecismo. Maravilhou-se
a menina, mas, ao mesmo tempo, encheu-se de um estranho temor.
Entre
as alturas, que de belamente claras e azuladas, haviam se coberto com um forte
cinza escuro, pairava um ser imenso. De tamanho parecia três vezes maior que um
adulto. Tinha ele uma vasta cabeleira, e embora não houvesse vento, os longos cabelos cor de neve moviam-se
sem parar, como serpentes. As asas eram enormes e não se mexiam, mas partia delas
uma luz que, como os raios do sol, variava de tamanho, parecendo viva. Seus pés
e mãos eram como chamas de fogo. Uma túnica vestia seu corpo, no entanto, parecia
ser ela o corpo dele. Na verdade, nem dava para dizer se realmente tinha corpo.
Não havia pelos em seu rosto – sobrancelhas, barba. Não
tinha lábios. Nariz e boca eram apenas finos traços como linhas desenhadas na
pele. No lugar dos olhos, apenas um intenso brilho amarelo e nada mais. Mesmo
assim, a certeza de que aqueles dois buracos luminosos olhavam direto para ela,
fez aumentar o medo de Zenaide.
Ave Maria, rogai por nós pecadores.... .
Então se
fechou o anjo, ou seja,
lá o que fosse aquilo, em suas grandes asas, e ao abri-las novamente, surgiu ele,
a uma Zenaide apavorada, banhado em sangue do pescoço aos pés.
Cordeiro de Deus que tirai os pecados... .
Dona
Teresinha lavava a louça do almoço, pensando se faria ou não um bolo, afinal era
feriado, quem sabe uma das filhas aparecesse, ou alguma outra visita, quando
ouviu os gritos que diziam seu nome. Reconheceu a voz de Zenaide. Assustada, pois
já estava a par da tragédia, mas com um certo alívio - pois todos procuravam por
Zenaide, que havia sumido há cerca de 12 horas - Dona Teresinha abriu a porta. A
menina jogou-se em seus braços, soluçando.
A boa senhora pensou, se a coitadinha já sabia
que a mãe tinha matado o pai a facadas, naquela manhã.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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