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22 de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo carregava um semblante de completa apatia e desprezo pela vida quando voltou para a sua cidade após ter ficado afastado por quase seis semanas. Tempo, aliás, que não soube mensurar não fosse a ajuda de alguns calendários que encontrava nas cabines dos caminhões dos quais conseguiu as muitas caronas para completar o seu retorno; viagens, a propósito, que não possuía quase lembrança alguma.
Enquanto se aproximava cada vez mais da casa dos pais, Ronaldo experimentava um misto de sensações absurdas, conflitantes e tenebrosas que só faziam crescer a cada passo, tomando proporções exponenciais. Sensações que pareciam tão presentes e concretas em sua consciência, assim como também lhe davam a impressão de pertencer a outra pessoa, a um terceiro, a alguém que, de alguma forma, Ronaldo não conseguia distinguir...
Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente, Ronaldo ia repetindo, repetindo num murmúrio indistinto conforme mágoa, desespero, ansiedade, impotência e loucura, sim, até mesmo a impressão de estar desatinado, lhe dava a força necessária para seguir adiante, alimentando o que fosse preciso em seu coração, em seu cérebro e em seus membros para que não desistisse de sua empreitada, árdua, porém, necessária: finalmente libertar a irmã, a pequena Bruna, e só Deus para saber em que estado ele a encontraria. E, caso os dois algozes que o destino lhes deram como pais, tentassem impedi-lo, chegaria até as últimas consequências, independente do que fosse preciso fazer.
Cansado, extremamente cansado e com uma respiração ofegante difícil de controlar, Ronaldo passou de todo incólume pelas serpentinas, pelas Batalhas de Confetes, pelas marchinhas carnavalescas e pela alegria dos foliões até conseguir, por fim, completar o restante do seu caminho, estacando, meio cambaleante, à frente do pequeno portão de madeira, de onde vislumbrou a casa dos pais, rodeada pelo jardim cultivado e conservado com uma dedicação ímpar por sua mãe. Se Norma ao menos devotasse aos filhos dez porcento do carinho que tinha para com suas flores, sem dúvida Laura ainda estaria com eles.
Depois de puxar todo o ar que podia para dentro dos pulmões, Ronaldo abriu o pequeno portão com todo cuidado possível, como se estivesse lidando com um bibelô muito, muito frágil e, mantendo a mesma cautela, caminhou, como num campo minado, rumo à varanda, onde, ao chegar, permaneceu hesitante por um bom tempo antes de decidir se abaixar para apanhar uma cópia da chave da porta da sala que ficava escondida sob uma saliência discreta, num vaso de planta, à direita da entrada; isso se os pais não tivessem alterado aquele costume, o que graças aos céus não havia acontecido — solenizou com o pedaço de metal já em suas mãos.
Tão logo se pôs de pé, ato reflexo, se voltou na direção do portão de madeira e vislumbrou uma imagem, de início um tanto embaciada, de um homem vestido de negro, parado, braços cruzados. Semicerrando os olhos e esticando um pouco o pescoço para frente na tentativa de identificá-lo, Ronaldo não demorou a perceber, como se as lentes de uma câmera tivessem encontrado o foco sob os escassos raios solares daquele fim de tarde, que a tal figura, o tal homem, em verdade, era um jovem, vestindo uma batina, toda preta, colarinho branco, ostentando um cenho cerrado, carracudo; percepção, a propósito, seguida da impressão de que aquele jovem, lá, atrás do pequeno portão de madeira, encarando-o, mal-humorado, por incrível que pudesse parecer, era ele próprio, seu reflexo, seu eu duplicado. Todavia, utilizando uma visão mais assertiva, Ronaldo logo pôde constatar de que se tratava do sacerdote Lucas.
Mas o que ele estaria fazendo ali? Seus pais o teriam chamado, possivelmente... Mas para quê? Será que houve alguma coisa com Bruna? Ou será que o sacerdote o estava seguindo desde que chegara à cidade?
Ronaldo não teve tempo de pensar, refletir ou sequer fazer qualquer gesto direcionado ao jovem eclesiástico, se fosse o caso, pois a imagem, ou a suposta imagem, simplesmente desaparecera, como num passe de mágica, um estalar de dedos, lhe causando um leve calafrio que sentiu percorrer o coração... Estava cansado. Fraco. Fragilizado. Era isso. Deduziu de pronto depois de um dar de ombros, se virando para frente, para a porta da entrada da casa, a poucos centímetros de seu rosto, sendo então tomado de súbito, como se fosse um último aviso, pela impressão, pela estranha impressão de que alguma coisa dentro de si, sim, ele podia jurar, estava gritando para que se afastasse dali, para que não ousasse dar nem mais um passo. O curioso era que a voz que chegava aos seus ouvidos, ou que ele acreditava chegar, parecia ser uma voz feminina, mais especificamente de uma garota...
Ronaldo pensou em se voltar, de novo, na direção do pequeno portão de madeira; ficara impressionado, não ia mentir, entretanto, desistiu. A tensão o estava fazendo ver e ouvir coisas, fato. E apesar de tudo isso, não iria recuar da sua resolução, mesmo começando a sentir as pernas tremerem, mesmo sendo tomado pela vontade de correr, deixar tudo aquilo para trás e sumir de vez de Manhuaçu para nunca mais voltar.
Sentindo cada um dos seus músculos tomado pela expectativa, pelo medo, pela agonia, Ronaldo abriu a porta da sala e logo esticou o pescoço para olhar para dentro de modo a verificar o que ou quem poderia encontrar antes de dar o primeiro passo: um silêncio atroz tomava conta do lugar.
Onde eles estão, pelo amor de Deus?, Ronaldo questionou, já adentrando à sala após deduzir que os pais e Bruna, certamente, estariam fora, não deixando, claro, de observar o seu entorno, girando o corpo, diligente, para constatar se realmente estaria sozinho ou, quem podia saber — e seria uma grande dádiva —, a irmã também pudesse estar por ali...
— Ora, ora, ora. Então o ingrato resolveu voltar?
A voz grave e o tom imperativo sempre usado por Antoniel reverberou por toda a sala e pelos ouvidos e cérebro de Ronaldo, que, pego de surpresa, reuniu forças para se virar lentamente para trás até encontrar a figura do pai, um homem pesado, imponente, o rosto redondo crispado e vermelho, mirando-o do alto da escada que levava para o primeiro andar, de um modo genuinamente feroz, como uma besta prestes a atacar uma presa indefesa.
— Não conseguiu ir adiante, seu merdinha? — Antoniel arqueou uma das sobrancelhas antes de começar a descer cada um dos degraus, sem pressa — O mundo aí fora te mostrou que o lar, doce lar, é o melhor lugar para se estar, não é mesmo? — ele completou seguido de um sorriso cínico, débil, rasgando os lábios exageradamente.
27 de Julho, 2017, quinta-feira
Gabriela bate à porta da sala de Orlando e não demora a ser recebida pelo diretor que, por sinal, faz questão de ostentar uma solicitude exagerada, o que a deixa um tanto surpresa e cabreira, pois já tinha dado como certa uma acolhida nem um pouco amistosa. O clima de tensão e extremismo surgido na última conversa que tiveram, há dois dias, e o laudo do paciente Eve que ela lhe encaminhou por e-mail, na tarde anterior, laudo este que depois de mil e uma conjecturas fez questão de manter na íntegra, não deveriam ter deixado espaço para a simpatia e préstimo, características, não obstante, tão peculiares ao diretor. Ela, Gabriela, não teria a mesma hombridade, não depois de Sísifo e sua maldita rocha e sua maldita montanha terem entrado na história.
Orlando, cabeça altiva, sobrancelhas aparadas, um terno impecável, e, claro, a gravata combinando com a camisa social, desta vez na cor vinho, trata de sinalizar uma das duas cadeiras que estão à frente de sua mesa — uma antiguidade revestida em cavalho com puxadores corroídos à frente das gavetas —, para que a psiquiatra se acomode ao tempo que sem demora trata de ocupar o lugar que lhe compete. Ele se mantém imperturbável dentro de sua deferência, Gabriela não consegue deixar de observar enquanto se senta, empertigada. Mas os olhos nervosos do diretor o entregam, o que só ajuda a corroborar a certeza de que todos os movimentos, ações e reações polidas não passam de uma mise en scène muito bem orquestrada, e o ator convidado, o advogado do desembargador — Gabriela relanceia o entorno antes completar sua dedução —, a qualquer momento deverá fazer sua entrada triunfal.
— Ele já está a caminho — diz Orlando; mãos cumpridas e perfeitamente manicuradas postas sobre a mesa — Já fui informado que está acabando de passar pela portaria.
— Que seja!
Gabriela dá de ombros. Seca. A voz cortante. Não está de bom humor e não vai se esforçar em parecer o contrário. E o diretor percebe, mas finge ignorar, porém, não deixa de franzir o cenho de forma quase imperceptível.
— Li o laudo que me enviou — Orlando comunica ao tempo que termina de retirar de dentro de uma das gavetas uma pasta envelope preta, com estrutura reforçada, vinco e com a marca d’água do Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar, depositando-a sobre a mesa logo em seguida, mas sem abri-la — Um relatório eficiente, doutora. Completo, acessível e padronizado...
“Mas”... Gabriela aguarda o uso da conjunção indicando oposição ao que foi falado. Já sabe o que o diretor vai dizer e tem vontade de revirar os olhos, entretanto, se contém.
— Doutora — Orlando encara Gabriela com uma calma enlouquecedora — Possivelmente eu me expressei mal na última conversa que tivemos. Não tive a intenção de comparar o seu trabalho ao da doutora Júlia Mathias. Seria extremamente antiético. Contudo, é inevitável o confronto entre os dois laudos, o da nossa colega e o seu, e ao fazê-lo não restam dúvidas de que há dois pacientes distintos sendo tratados. E gostaria de prestar um adendo, antes de causar qualquer outro mal-entendido: o relatório da doutora Júlia, mesmo notificado como um reconhecimento inicial, não deixa de demonstrar a evolução do trauma que atingiu o paciente tão logo se deparou, infelizmente, com os corpos da esposa e do filho.
Gabriela não deixa de fitar o homem à sua frente um instante sequer. A fria e firme inteligência dele sendo desperdiçada ao impregnar mais uma tentativa canhestra de manipulação em cada uma de suas palavras, começa a irritá-la. Porque o diretor não diz logo o que tem a dizer? Simples assim. Uma decisão, para o bem ou para o mal, vai precisar ser tomada durante esta reunião, antes que o paciente Eve seja o maior prejudicado. Em verdade, ele, Eve, no final das contas, será, sim, prejudicado se os três, ela, o diretor e o ainda ausente advogado, não falarem a mesma língua. Então, se já há uma resolução tomada, deliberadamente sem a participação dela, é melhor que saiba logo.
Orlando segue destacando sua analogia em relação aos relatórios das duas psiquiatras: enquanto Júlia Mathias é categórica em afirmar a patologia emergencial que acomete o paciente com base em indícios consistentes como as ações e reações heteroagressivas, a fuga dissociativa, o transtorno de personalidade, os graus alarmantes de instabilidade emocional, concluindo, mesmo sendo um diagnóstico inicial — ele faz questão de ressaltar mais uma vez —, a psicose histérica com dupla identidade, ela, Gabriela, em contraponto, descreve um paciente inseguro, expressando sempre reações excessivamente passivas, constrangido, estagnado e, apesar de tudo, ansioso...
— Doutor Orlando — Gabriela se mexe, aflita, sobre a cadeira, pouco se importando em interromper o diretor, enquanto se sente arrastada por uma onda de cólera — Estamos andando em círculos. Sei muito bem o que está escrito no laudo da doutora Júlia, assim como conheço todo o conteúdo que compõe o dossiê do paciente. E quanto ao meu relatório, bem... — ela dá de ombros de novo — Entendo perfeitamente o seu papel como diretor e compreendo o peso da responsabilidade sobre este caso, mas ficar tentando descobrir um possível elo perdido que vá interligar a contraposição dos diagnósticos meu e da doutora Júlia, é, em definitivo, contraproducente e amador.
Orlando abre a boca para dizer algo, mas Gabriela levanta a mão para que a deixe continuar o seu raciocínio.
— O senhor me convidou para participar desta reunião, e agradeço, e é valido que eu esteja aqui. Faz parte do processo, faz parte do nosso objetivo comum neste momento, que é o paciente Eve — Gabriela tenta ignorar a sensação de combustão que está se formando dentro de si — Um assassinato, doutor Orlando, é algo terrível de se cometer, ainda que não se esteja bem da cabeça, e Eve deve estar sofrendo por causa desta acusação. E independente do que aconteça no decorrer do seu julgamento, independente do que seja provado, não podemos esquecer, e estou sendo redundante, sei muito bem, de que estamos lidando com um ser humano norteado pela existência de um transtorno mental, lutando para não encarar uma realidade mais que insuportável — ela completa num tom lamentoso, a respiração um tanto superficial.
— Doutora... — um sorriso discreto se forma nos lábios do diretor — A senhorita não está tentando ensinar a um sacerdote o ofício dele, está?
Súbito, Gabriela sente um medo intenso tomando conta de si. Uma força que por pouco não a paralisa. Uma força inexplicável que, a princípio, e considerando todos os raciocínios lógicos da realidade humana, não deveria estar ali. Cruzando e descruzando as pernas ela busca controlar o repentino desassossego ao passo que Orlando a observa, como se a estivesse avaliando, o que deixa Gabriela ainda mais irritada.
— Está tudo bem, doutora? — o diretor inclina-se um pouco para frente; o semblante, agora sério, lívido até, e, porque não, preocupado.
Por um tempo que não sabe calcular, Gabriela permanece tomada por esta angústia gradativa, deixando-a por completo incapaz, até que pensamentos começam a circular dentro e acima de sua cabeça, investindo sobre ela, mergulhando e encravando garras em sua mente. E todos, cada um destes pensamentos, em disparada, indo e vindo, escapando, implacáveis, sem exceção...
Gabriela admite, óbvio, que necessita com urgência organizar o caos em sua cabeça e daí volta a cruzar e descruzar as pernas à medida que toma nota mentalmente de que precisa decidir o rumo do seu relacionamento com Dorlan, custe o que custar, assim como também toma nota de que precisa se desculpar com o paciente Eve pelo comportamento invasivo para com ele, na última consulta, deixando-o ainda mais retraído...
“Tenho conhecimento, doutora, de que preciso montar esse quebra cabeça, mas por mais que eu acredite que irei suportar essa dor, algo me impede, me sufoca e me deixa apavorado e nada acontece e eu me sinto frustrado, impotente”...
“Por que Márcio Antônio, o professor de filosofia, não é isso? Por que ele tinha o número do seu celular?”.
Gabriela, de súbito, se vê novamente no pequeno escritório do seu apartamento, embrenhada na mesma sequência labiríntica de perguntas e observações de duas noites atrás.
Mas o que está acontecendo?
Ela se questiona, exasperada, esfregando os olhos, meneando a cabeça, inspirando e expirando. A frustração e o desespero, ambos acumulados nesses últimos meses, nessas últimas quarenta e oito horas, começando a borbulhar na superfície.
— Doutora, se preferir...
“Aqui estamos, mais uma vez, e você sempre que termina de relatar essa sequência de acontecimentos que ocorreram na chácara, naquela tarde de carnaval, acaba estacionando no mesmo ponto”...
“Sísifo foi condenado a rolar por toda a eternidade uma rocha montanha acima. E sua tarefa não terminava nunca, pois, uma vez colocada no alto da montanha, a pedra rolava novamente para a planície. Não há castigo mais terrível, doutora, do que um trabalho inútil e sem esperança”.
— Doutora...
“Sua função é tão somente provar a incapacidade mental do paciente, prescrever um tratamento e acompanhá-lo. Nada mais. O resto é com o advogado dele e com a Justiça”...
O conselho e a orientação que havia recebido de Júlia Mathias se destacam em meio ao caleidoscópio em que se transformou a sua mente conforme a sensação de combustão segue aumentando, aumentando...
— Doutora?
“Tudo o que precisa fazer é o seu trabalho e se possível com base no que está na pasta desse processo. Qualquer outra informação que não esteja aí, é porque, de fato, não é para estar, entendeu?”
— Doutora?
A voz do diretor se perde em meio à irrupção das palavras de Júlia Mathias que de alguma forma extraordinária começam a fazer sentido, uma verdade escondida que começa a vislumbrar a luz do dia.
“Sua função é tão somente provar a incapacidade mental do paciente... O resto é com o advogado dele e com a Justiça... Não confie em ninguém, caso descubra algo que não esteja registrado nos autos desse dossiê. Em ninguém”.
Gabriela se levanta e empurra a cadeira para trás, talvez impulsionada por este insight, por esta epifania, esta capacidade de discernimento que por certo deveria ter tido lá atrás, há quatro meses, quando ouviu essas palavras pela primeira vez.
Júlia Mathias... É claro que alguma coisa grave aconteceu para que abandonasse o caso. E ela percebeu rápido. Talvez pela sua vasta experiência profissional, seus olhos de águia, enquanto ela, Gabriela, vem sendo mantida, não, não, vem se permitindo ser mantida em banho-maria...
Sim, sim... Possivelmente Júlia Mathias foi pressionada, assim como ela está sendo agora, e não aceitou o jogo. Não aceitou jogar por terra sua credibilidade, sua distinção, tudo o que construiu dentro da psiquiatria.
Gabriela começa a andar de um lado para o outro, ignorando a existência de doutor Orlando; ignorando o efeito que esta sua intempestiva reação possa provocar...
Mas ela cedeu..., Gabriela segue adiante... Sim. Júlia Mathias cedeu de alguma maneira, e elaborou um laudo evasivo, com lacunas imperdoáveis, e buscou ressalvar esse desacerto com uma alegação pífia de que se tratava de um mero diagnóstico inicial antes de abdicar...
Gabriela continua seu ir e vir, remoendo, enfurecida, envergonhada...
Como pude ter sido tão estúpida e leviana ao focar num suposto desleixo da doutora Júlia? Minha soberba, meu afã em querer ser melhor que minha antecessora, em querer impressionar o diretor, em querer mostrar de que eu era capaz de fazer o impossível mesmo com tão pouco tempo de exercício da profissão me fez agir dessa maneira irresponsável e imatura... Júlia Mathias, sim, percebeu que havia algo de errado neste caso, no tratamento do paciente, do desembargador e ainda assim assinou este laudo esquivo... Então estou certa, os exames estão certos: o paciente Eve não é acometido pelo TDI... Alguma coisa neste quebra-cabeça...
Gabriela começa a respirar cada vez mais rapidamente...
“O resto é com o advogado dele e com a Justiça... O resto é com o advogado dele e com a Justiça...”.
A sensação de combustão... a angústia crescendo, crescendo... o absurdo de que tudo que esteja vivenciando seja uma mentira e que talvez esteja dentro de um jogo onde não passa de um mero peão em um tabuleiro de xadrez liderado por uma mão desconhecida...
Gabriela por um momento para de respirar.
Uma mise en scène. Tudo não passa de uma mise en scène muito bem orquestrada.
— Por que, e não me venha com meras suposições, polidez e escapismos, a doutora Júlia Mathias abandonou o tratamento do paciente Eve? — Gabriela estaca às costas da cadeira, voltando a ficar defronte ao diretor, encarando-o com um olhar ofensivo.
— É o que também, por um bom tempo, tentamos descobrir.
Gabriela se volta na direção da voz suave que se apodera subitamente da sala e encontra de pé, à porta, um homem alto, aparentando não ter mais do que quarenta e poucos anos, de nariz reto e cabelos castanhos levemente desgrenhados. Diferente de sua voz, não há suavidade em seu rosto.
— Doutora Gabriela, este é o doutor Claus, advogado do desembargador... Doutor Claus... — Orlando trata de apresentá-los de imediato.
22 de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo, com a respiração ofegante e um peso absurdo acima dos ombros, como se estivesse carregando o mundo sobre eles, permanecia imóvel, aguardando a aproximação do pai, que aconteceu bem, bem devagar enquanto Antoniel o observava de modo impertinente, assim como ele, Ronaldo, que durante aquele tempo que parecia transcorrer através da uma eternidade, teve tempo de medi-lo de cima a baixo, diversas vezes, e sempre, sempre com um sentimento irrefreável de aversão até que, finalmente, apenas alguns centímetros os separassem; o suficiente para Ronaldo sentir a mão pesada do pai lhe caindo sobre um dos lados da face; o suficiente para começar a sentir a adrenalina sendo liberada rapidamente por todo o seu corpo.
Não. Ronaldo não reagiu. Manteve-se em silêncio, inerte. Todavia, não demorou a erguer o rosto, decidido, para fitar o pai. Como havia prometido a si mesmo antes de voltar, estava disposto a pagar o preço que fosse, e aquele seu gesto de extrema coragem, na verdade, de uma emergencial coragem, estava incluso no pacote, por mais insignificante que pudesse parecer.
— Por onde você andou seu filho de uma puta, depois de todo esse tempo, para chegar aqui desse jeito, maltrapilho e cheirando a azedo?
Antoniel esbravejou ao mesmo tempo que empurrou Ronaldo com força, uma força quase sobre-humana, o que fez com que o adolescente, mesmo tentando se equilibrar, acabasse caindo sobre o sofá, batendo com as costas violentamente num dos apoios de braços.
— Eu, e sua mãe, pensamos que tu fosse desaparecer da face da terra, seu infeliz.
Outro tapa na cara foi o que Ronaldo recebeu e antes mesmo de conseguir colocar uma das mãos sobre o lado atingido das costas, antes mesmo de conseguir se colocar de pé. A energia que o pai depositara naquele gesto o projetou de forma truculenta por sobre o encosto do sofá e Ronaldo mal teve tempo de virar o rosto para que este não fosse usado como amortecedor em sua queda, se deparando, ato contínuo, com a imagem de Bruna, parada sob o batente da porta, à entrada da cozinha, tendo a mãe em seu encalço.
A pequena Bruna estava com o rosto inchado, nitidamente com marcas de choro, ainda trazendo os olhos vermelhos. Mas o que deixou Ronaldo transtornado, odiosamente transtornado, foi o fato de encontrá-la seminua e tentando esconder o corpo com as mãos e com os braços frágeis num desalento de partir o coração.
De pronto, Ronaldo sentiu uma pressão absurda se instalar em sua cabeça, nas suas articulações, deixando-o um pouco desnorteado. Respirou fundo, bem, bem fundo, fechando e abrindo os olhos, diversas vezes, buscando recobrar, com isso, o equílibrio, até o instante de se voltar para o pai, passando a confrontá-lo ao tempo que ensaiava um movimento para se colocar de pé.
— Quem te deu autorização para se levantar, moleque?
Antoniel perguntou, entredentes, despejando a mão sobre o peito do filho sem pestanejar, fazendo Ronaldo desmoronar deitado, dessa vez com o corpo inteiro sobre o sofá.
— Pelo jeito voltou mais impertinente do que quando foi embora...
O ódio entre pai e filho atingira um patamar inconcebível, e Antoniel, ao visualizar o semblante de Ronaldo, um misto de desprezo e cólera, a afronta estampando cada linha de seu rosto, saltou sobre ele sem qualquer aviso, sem qualquer menção, contudo, para sua surpresa, uma desagradável surpresa, o garoto resolvera reagir, o que deixou Antoniel ainda mais furioso, a ponto de descarregar boa parte de sua ira e frustrações sobre o corpo franzino do filho, que, infelizmente, não conseguiu sair vitorioso ante a fúria insana de seu genitor.
Em questão de segundos Ronaldo se viu indo ao encontro do chão, sentindo o peso, a queimação das fiveladas do cinto do pai ao mesmo tempo que tinha a impressão de estar sendo partido ao meio, não lhe restando qualquer outra opção a não ser a de juntar os braços e pernas, se fechando como uma concha à medida que se permitia ser surrado.
— Quem você pensa que é pra me desafiar, moleque?
Antoniel repetiu a pergunta uma, duas, três vezes, apertando o pescoço de Ronaldo até conseguir com que ele o encarasse para, então, desferir-lhe um soco, pesado, e com o punho cerrado.
Ronaldo sentiu o gosto de sangue e muco tomar conta de sua garganta, assim como também sentiu a pressão tomando conta progressivamente de sua cabeça...
Mais um soco.
Na boca.
Os músculos de Ronaldo se retesando mais e mais; um calor nas palmas das mãos...
Um grito agudo de Bruna.
Enquanto Ronaldo tentava a duras penas proteger o rosto, sem muito sucesso, Antoniel, entre os mais diversos impropérios, se colocou de pé, passando a agarrar-lhe os cabelos, forçando para que também se levantasse.
— Você está fedendo, moleque. Vá se lavar. Agora. E depois suba para o quarto. Vamos estar te esperando — Antoniel devolveu Ronaldo ao chão com a mesma brutalidade logo em seguida à sua determinação.
Ronaldo permaneceu caído por um bom tempo, sentindo a dor por todo o corpo, mas que por incrível que pudesse parecer, não se assemelhava à dor em sua cabeça, latejante, excruciante, a sensação de peso que não cedia de jeito nenhum. Possivelmente reações ao seu estado de nervosismo, impotência, o confronto inevitável com o maldito pai... Tinha de ser aquilo... tinha de ser... Não poderia, não poderia ser como das outras vezes. Ele não poderia terminar mergulhado num apagão sem qualquer traço de memória ao voltar à razão.
Bruna? Onde estava Bruna?
Ronaldo ouviu o som do silêncio ao redor e daí reuniu forças para se levantar. Não queria. De verdade não queria. Porém, não podia passar o resto da vida ali, alquebrado, com a dignidade posta abaixo dos pés... ELES TINHAM LEVADO BRUNA...
Uma música começou a ser cantarolada em sua mente enquanto apoiava as mãos no sofá, enquanto respirava fundo, com certa dificuldade, sentindo dores irradiando em suas costelas.
Eu comecei uma piada
A qual fez o mundo inteiro começar a chorar
11 de fevereiro, 2017, sábado
— Por que você tá fazendo isso, caralho? Tá parecendo até meu pai, cheio de autoridade, regras, de “disse-me-disse” — Lucas grita conforme a água gelada cai sobre seu corpo, grudando paulatinamente a roupa sobre a sua pele.
Márcio Antônio nada responde o que ajuda a fomentar ainda mais a frustração do adolescente, que, de imediato, começa a disparar os mais diversos e ilustres palavrões, se agitando sob o chuveiro para tentar sair de dentro do boxer, apelando, por fim, para gestos bruscos no intuito de se desvencilhar dos braços abertos do professor, que impedem sua passagem.
— Por que não arranja uma mangueira ao invés deste chuveiro? Como os guardas fazem nos presídios? — Lucas brande seu sarcasmo sob uma última tentativa de fuga frustrada — Assim a tortura vai ficar bem mais interessante, não acha?
— Dá para ficar calado? — Márcio Antônio, com um pouco de dor de cabeça e a boca seca, não consegue mais se conter e então grita com impaciência — O último lugar da Terra em que você devia estar é aqui, no meu apartamento, lugar, aliás, ao qual você não foi convidado para vir, e muito menos a essa hora da noite. E, a propósito, ainda estou esperando uma explicação de como conseguiu meu endereço.
Lucas dá ombros enquanto sustenta rapidamente a mão fechada na bochecha com o indicador para cima.
— Você tá amando a surpresa, não, é, não?
Márcio Antônio respira fundo e conta mentalmente até dez, até vinte, até mil antes de responder. Sabe que se disser o que está com vontade, vai acabar se arrependendo e Lucas não precisa pagar pelos pecados do pai.
— Realmente, garoto, olhar para o porteiro me encarando com um ar de sabichão, depois ter que te arrastar até aqui em cima, te arrastar até este banheiro e isso tendo de ouvir todos os impropérios possíveis e imagináveis para acabar aqui, tomando banho por tabela... — Márcio aponta para frente da camiseta e do short que está usando, ambos já completamente molhados — Com certeza é a maneira perfeita para encerrar a noite de sábado que eu tanto esperava.
Lucas passa a confrontar Márcio Antônio em completo silêncio, e por um bom tempo, à medida que busca manter o máximo de neutralidade possível em seu próprio semblante. Quer medir o professor bem de perto, olhar nos olhos dele e realmente descobrir, sentir se fez a coisa certa ao se dirigir para ali, ainda que tenha sido preciso encher a cara, ainda que tenha sido preciso dar um tapa, baforar...
Lucas deixa um riso escapar meio de lado propositalmente e sob o olhar perscrutador de Márcio Antônio dá de ombros mais uma vez no mesmo instante em que lhe vira as costas, passando a apoiar as mãos na parede à sua frente, sentindo, agora com prazer, a água gelada cair torrencialmente sobre si. Tem certeza de que o professor o está medindo de cima a baixo, querendo arrancar suas roupas, transitar livremente por cada parte do seu corpo, instigar seu sexo... Sim. Tem certeza de que Márcio Antônio está tomando coragem para fazer o precisava ter sido feito desde o instante em que o joguinho ridículo de gato e rato que tinham em sala de aula se tornou um mal necessário para ambos; quando ele, Lucas, passou a deixar, sem quaisquer ares de dissimulação, um livro ou um mangá sobre sua carteira para Márcio Antônio folhear, entre uma explicação, entre uma tarefa e outra. Lucas se recorda perfeitamente — e está certo da sua interpretação — dos olhos ávidos do professor, quase incontroláveis para encontrar o que quer que fosse dentro daquelas páginas e que ele, Lucas, por covardia, por uma total covardia, por uma insegurança sem sentindo, havia decidido aguardar a porra de um sinal definitivo que nunca chegava para deixar um bilhete, o número do seu celular, qualquer coisa. Um sinal que, agora, olhando em retrospectiva, nem ele mesmo poderia saber qual seria.
Aguardar e aguardar. Até quando? Este dilema, não mais.
Lucas respira fundo e umedece os lábios com a língua, repetidas vezes tão logo abaixa a cabeça, passando a fixar o chão. A água fria caindo sobre seu cabelo, escorrendo pelo seu rosto... A vida é feita de oportunidades. Inclusive daquelas que a gente perde.
Ele meneia a cabeça, devagar. Todos os pensamentos, percepções, ideias, tudo desaparece de sua mente por alguns instantes. Talvez tenha abusado um pouco do álcool... ou de tudo e de todas as coisas.
Independente da hora que fosse chegar a casa, de preferência no dia seguinte, Lucas sabia, lógico, que iria ter de aturar o falatório do pai, seu blá blá blá desnecessário sobre responsabilidade, sobre os perigos de sair à noite, e que colegas não eram amigos. O desembargador deveria era aprender a cuidar do próprio casamento, isso sim. Lucas realmente não conseguia entender o porquê de a mãe não jogar tudo para o alto e seguir com a vida. Seu pai estava bem longe de ser a última garrafa de água mineral no deserto.
Fodam-se os dois.
Lucas ergue a cabeça, mas permanece de costas, parado, a água caindo, caindo, escorrendo sobre seu corpo, sua roupa... Ele fecha os olhos para poder sentir a respiração entrecortada de Márcio Antônio, para poder ouvir as batidas forte de seu peito, para poder perceber a vibração da mão hesitante em querer tocá-lo...
O professor ocupou e ocupa há quase oito meses todos os lugares de sua vida, todos os seus sonhos, desejos; o corpo dele seminu ou despido sempre invadindo sua mente a qualquer hora do dia, se deixando observar, se deixando tocar. A boca, a língua, o pescoço, Márcio Antônio lhe oferecendo tudo e Lucas afagado os cabelos dele com cuidado, carinho, passeando com as mãos, com os dedos pelas costas dele bem, bem devagar, sentindo o cheiro dele, a pele...
— Chega! — Márcio Antônio anuncia ao mesmo tempo que desliga o chuveiro e joga uma toalha sobre Lucas — Tire essas roupas molhadas e se seque. Vou preparar um café bem forte e amargo para você tomar. Enquanto isso eu irei buscar algo pra você se vestir... — ele mede Lucas com certo desdém, na verdade, mede as roupas do adolescente, com alguns muitos rasgos, molambenta, se perguntando, de novo, por onde teria andado para estar daquele jeito — E depois chamo um táxi pra te levar em casa.
Márcio Antônio se vira na direção da porta do banheiro antes que Lucas possa voltar a encará-lo e então segue a passos largos — alguns sintomas da ressaca o importunando — até seu quarto, não tão distante assim, e enquanto começa a escolher algo para o rapaz se vestir, que não fique tão grande ou largo em seu corpo mirrado, não consegue deixar de se criticar, de se punir por ter descido até a portaria para receber, receber, não, para quase que literalmente carregar Lucas até o apartamento. Onde estava com a cabeça? Por que não o despachou via interfone? O porteiro que lidasse com a situação, pelo menos, agora, não estaria com este elefante branco no meio da sua sala.
27 de Julho, 2017, quinta-feira
Em seguida aos cumprimentos de praxe, Claus se precipita em sentar em uma das duas cadeiras vagas, à frente da mesa do diretor, mas, não sem antes, num gesto cavalheiresco um tanto afetado, sugerir que Gabriela também se acomode. A psiquiatra, enquanto recupera o fôlego, fita o advogado e de pronto a Orlando e logo depois volta ao advogado mantendo o olhar tenso e contumaz, até que, por fim, aceita o gesto de gentileza ofertado ao passo que vai tratando de controlar a respiração, a cólera, as pernas tremendo, as mãos que parecem fazer círculos no ar.
— Peço desculpas pelo atraso.
Claus se dirige primeiro a Orlando e depois a Gabriela, sendo que para ela, além do pedido, lhe dispensa, igualmente, um sorriso meio de lado seguido de sobrancelhas arqueadas, num tom, à primeira vista, quase malicioso, deixando Gabriela, decerto, surpresa e imediatamente mergulhada num mar de dúvidas diante desta suposta ousadia. Porém, o advogado não lhe dá chances para concluir o que seja, pois se inclina e deposita no chão, próximo aos pés, a pasta bagageiro com três divisões, que traz a tiracolo e, ato contínuo, já com a cabeça erguida, volta, então, a confrontar a psiquiatra, contudo, assumindo o mesmo semblante fechado de instantes atrás, quando esteve parado sob o batente da porta.
— Então doutora... — ele inicia já com as costas totalmente apoiadas no encosto da cadeira ao passo que termina de cruzar as pernas, colocando uma das mãos sobre o joelho e a outra sobre a mesa — Por que, nesta altura do campeonato, a...
— Senhorita.
Claus acena positivamente com a cabeça.
— Por que nesta altura do campeonato a senhorita quer saber as razões que levaram a doutora Júlia Mathias a abandonar o tratamento do desembargador?
— Tenho meus motivos... — Gabriela responde a contragosto enquanto volta o rosto para Orlando, que evita o seu olhar.
— Com certeza e não duvido de nenhum deles — Claus devolve sem pestanejar. Em seu semblante uma ferocidade cuidadosamente reprimida e que por pouco Gabriela não percebe ao retornar sua atenção para ele — Entretanto, a senhorita há de convir que águas passadas não movam moinhos. A sua antecessora, há quatro meses, decidiu deixar o caso, abandonou o paciente sem maiores explicações, sem qualquer precedente — Claus fricciona o polegar e o dedo médio da mão que está apoiada sobre a mesa ao mesmo tempo que relanceia rapidamente um olhar a Orlando para, daí, voltar a fitar Gabriela no minuto seguinte — O diretor lhe deixou claro essa informação quando assumiu a pasta do paciente, correto? Então, doutora, acredito que não há o que se buscar. A senhorita, melhor do que eu, aliás, tem plena ciência de que não sabemos realmente os pensamentos do outro.
Por um momento, Gabriela fica sem ar e com um grito sufocado na garganta; a sensação de combustão retomando a forma dentro de si...
— Pelo jeito o senhor está muito bem informado. Seu conhecimento vai além dos trâmites judiciais — ela conclui furiosa, num tom de desafio e se sentindo irritantemente infantilizada.
— Sempre procuro representar muito bem os meus clientes, e para isso careço de estar a par de tudo que aconteceu e acontece no entorno de cada um deles... Claro, respeitando os limites que me competem...
— Agindo como um semideus?
— Defender homicídios... — Claus inspira e expira antes de seguir, reforçando, num átimo, a seriedade estampada em seu semblante — E ainda por cima qualificados, não é muito simples, doutora. A senhorita não faz ideia de como é enfrentar um Tribunal do Júri.
— E o senhor faz ideia de como é diagnosticar, tratar, prevenir e reabilitar os mais variados distúrbios mentais? De origem orgânica ou funcional? Como a depressão, a bipolaridade, a esquizofrenia?...
Doutor Orlando pigarreia, recebendo, como esperado, a atenção dos dois profissionais à sua frente.
— Doutor Claus, gostaria de lembrar que a senhorita Gabriela está participando desta reunião a meu convite...
— Sem contestação.
Gabriela respira fundo, a ponto de sentir dor em seus pulmões, enquanto crava os olhos sobre o diretor, que se endireita na cadeira evitando, mais uma vez, o seu olhar.
— O questionamento da doutora... — Orlando não abre mão em divisar Claus um instante sequer — Não deixa de ser válido...
— Mesmo depois de quatro meses — Claus faz questão de pontuar.
Orlando reforça um olhar discreto de repreensão na direção do advogado conforme aperta o nó da gravata, gestos que Gabriela não deixa escapar. Sua teoria, a da mise en scène, tem fundamento, sim...
— A doutora Gabriela está aqui para compreender e tentar nos ajudar, a te ajudar, doutor Claus, no que for preciso, e o que couber a ela, a respeito da defesa do desembargador...
Sim. Os dois já chegaram a uma sentença: ou ela, Gabriela, concorda em alterar o laudo do paciente Eve ou está fora.
Claus se inclina novamente até à pasta bagageiro, depositada a seus pés, abre o zíper de uma das três divisões, retira uma pasta envelope com fechamento horizontal e retorna de pronto à sua posição, colocando a pasta já aberta sobre a mesa, sem encarar nem o diretor e tampouco Gabriela, enquanto começa a folhear o conteúdo da pasta até colocar o indicador em uma página. Neste ínterim, uma violenta carga de adrenalina sobe à nuca de Gabriela. Seus braços tremem. Alguma coisa, mais uma vez, está voltando a incomodá-la e com certeza não é esse advogadozinho, mesmo com sua hostilidade gratuita para com ela.
— A minha linha de defesa, doutora — Claus, enfim, volta a mirar Gabriela e desta vez com um olhar sombrio onde se pode “ler” claramente tenho que tolerá-la porque é o que tem pra hoje — Está cem por cento construída sobre o transtorno dissociativo de identidade do meu cliente, como preconizou a sua colega, Júlia Mathias. E é em cima desta defesa que irei pedir a absolvição do desembargador ou, se for o caso, garantir uma pena devidamente equilibrada.
Gabriela sente a rapidez com que seu peito se enche de ar, todavia, precisa, deve retomar o fôlego de vez antes que perca o controle — novamente. Enquanto se senta numa postura ereta, inspira e expira bem devagar.
— Acredito doutora... — Claus segue adiante; os olhos, cortinas perfeitas para seus pensamentos — Que a senhorita não vá querer que em apenas duas semanas eu remonte toda essa linha de defesa, inclusive já instaurada nos autos, tomando por base seu relatório médico inconclusivo?
— O senhor, então, realmente não conseguiu o adiamento da audiência?
Orlando lança sua pergunta coberta de autêntica indignação e, como resposta, Claus se dá ao trabalho apenas de menear a cabeça.
A sensação ridícula e sem qualquer discernimento, a de que esteja vivenciando uma mentira e que não passa de um mero peão em um tabuleiro de xadrez, volta a assolar a mente de Gabriela que, daí, inspira, expira, mais uma vez, devagar, até que uma dor no estômago, repentina, interrompe o fluxo dos seus pensamentos. Cada músculo de seu corpo está tão tenso que poderia se romper em instantes.
— Doutora Gabriela...
Claus... ele... novamente com sua voz suave...
— Não se é realmente criminoso quando se sofre da cabeça. Todos sabem disso. A senhorita sabe disso. Mas às vezes os tribunais não concordam. E se o desembargador for condenado de forma contumaz, se nenhum dos atenuantes cabíveis for aceito, afinal, estamos lidando com um Tribunal do Juri, um júri popular, o meu cliente, o seu paciente, irá para um manicômio judiciário, lugar, aliás, em que ele já estaria, e aguardando o julgamento, não fosse a intervenção do doutor Orlando. Precisamos lutar para que o desembargador permaneça neste Hospital das Clínicas, e com certeza uma oscilação da defesa, que não decide qual patologia acomete o réu, e isso depois de meses sob a supervisão de um profissional abalizado, não é o caminho mais adequado a se seguir.
Gabriela permanece calada, fingindo não acompanhar a linha de raciocínio do advogado enquanto ele toma nota de alguma coisa na sua pasta; o movimento de sua caneta produz um ruído abominável.
— Doutora Gabriela?
Ela se volta na direção da voz passando a confrontar Orlando fixamente.
“Acredite em mim, doutora, não consigo lembrar mais nada. Minha cabeça dói quando me esforço”...
O desespero resignado de Lucas, do desembargador... Porque o desembargador Arnoldo Justus de Aguiar se trancou sob a suposta identidade de um pseudoadolescente?
— Doutora Gabriela. Como a senhorita mesma ouviu, agora, de fato, só temos duas semanas até a audiência inicial... Precisamos chegar a um denominador comum...
É isso... A irritabilidade; a falta de concentração... A sensação de combustão se formando dentro de si... Ela, Gabriela, não tem dormido nada bem ultimamente em virtude das diversas causas que vem contribuindo para um esgotamento crônico. Os barbitúricos que ingeriu nas duas últimas noites não cumpriram o seu papel... O dobro da dose de soníferos... O sono por dez, quinze minutos... O Pondera e seus efeitos... O despertar se sentindo ainda mais esgotada e suada... Outro comprimido... Tudo recomeçando...
“Há quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de caminho sem antes e nem depois... O que aconteceu naquela noite de carnaval? O que seus pais fizeram? Necessito de relatos consistentes e não de meias-palavras, sugestões”...
— Sinceramente, doutor Orlando, estamos perdendo tempo...
As vozes de Orlando e de Claus parecem trancafiadas na escuridão. Gabriela as ouve, todavia, nem uma, e nem outra, tem sentido algum...
Não. Não... É ela, Gabriela, que tem a impressão de que está debaixo d’água...
“De repente um estrondo e em seguida um grito parecido com o de uma fera primitiva e por fim uma pancada, surda, nas minhas costas”.
— Alguém... — Gabriela balbucia. O olhar ainda fixado sobre o diretor — O paciente Eve... — ela aumenta o tom da voz sem qualquer esforço voluntário, sem pressa, passando a fitar Orlando e ao advogado alternadamente — O paciente foi encontrado desacordado na chácara, superficialmente ferido... Ele afirma que sentiu uma pancada nas costas antes de perder os sentidos... Existe a possibilidade de mais alguém ter estado na chácara além dele, do paciente, da esposa e do filho? — a pergunta, dessa vez, é direcionada diretamente a Claus.
— Sim — o advogado se levanta. Um brilho de hesitação, fingida, dança em suas pupilas — Foram encontradas diversas impressões digitais no local, óbvio, afinal, essa tal chácara é bem requisitada...
Com um olhar perscrutador, Gabriela fita Claus enquanto ele caminha de um lado para o outro. Mesmo estando em uma sala, num espaço limitado, ela não quer perdê-lo de vista.
— Mas a perícia conseguiu concentrar quatro delas, relevantes para o caso: as do desembargador; as da Sra. Abigail, sua esposa; as do adolescente, o filho adotivo deles; e as de um professor do garoto...
— Márcio Antônio? — Gabriela não consegue se conter e também se põe de pe.
Claus não responde. Não balança a cabeça. Limita-se a olhar para Orlando, um olhar aparentemente neutro e daí se volta para Gabriela, dando de ombros antes de lhe retrucar um “sim”, entredentes.
— E a propósito, já que a senhorita está tão interessada... — o advogado complementa sem se impressionar — A denúncia que levou a polícia até o local partiu do celular dele, desse professor. O aparelho estava a poucos centímetros do corpo desacordado do desembargador... Foram encontradas no telefone três impressões digitais: as do seu dono, claro; as da Sra. Abigail e as do meu cliente, que...
Gabriela dá um soco na mesa, assustando os dois homens.
— Então havia uma quarta pessoa na casa? Eve não criou isso.
— Como assim, criou? — Claus estaca a poucos centímetros da psiquiatra — Doutora, a informação de que o paciente foi encontrado superficialmente ferido e desacordado no local do crime consta no laudo emitido pelo médico parecerista.
Gabriela se vê perdida em questão de instantes entre lógica e razão, todavia, não consegue concatenar, pensar em algo concreto...
— O que esse professor fazia na chácara? — é tudo o que Gabriela consegue raciocinar — Se o celular dele estava lá, não restam dúvidas de que ele também estava... ou esteve...
— E, porque, esse professor iria embora e deixaria o telefone?
— Porque sua linha de defesa, doutor Claus... — Gabriela ergue a voz numa entonação furiosa — Não tomou o caminho de que talvez essa quarta pessoa, possivelmente esse professor, possa ser responsável pelos assassinatos daquela noite, na chácara? Porque o senhor quer que eu estabeleça um diagnóstico inconsistente? — ela se vira de imediato na direção do diretor Orlando e depois retorna o seu campo de visão, inquisidor, para o advogado — Para facilitar o trabalho de vocês dois? É isso? Quer que eu também estabeleça uma lista de possibilidades para ajudar na sua ordeira e honesta linha de defesa, doutor Claus? Se preferir, além do TDI também posso incluir no laudo médico do desembargador a paranoia, uma deficiência afetiva, uma necessidade de ser reconhecido... Um impulso homicida, o que acha?
A tensão aumenta. Os olhos do advogado e do diretor sobre Gabriela a sufocam, a exasperam...
— Agora estou entendendo o jogo de vocês, assim como a doutora Júlia, antes de mim, entendeu...
— Doutora Gabriela, esse tal professor sumiu do mapa. A polícia, e nem ninguém, conseguiu encontrá-lo... E ainda que o fizessem nada poderia incriminá-lo. As impressões digitais nos corpos, nas gravatas usadas para estrangular a Sra. Abigail e o garoto, as impressões digitais na cama, nos lençóis, todas são do desembargador. Nenhuma outra foi encontrada. Não nos corpos, não nesses objetos e nem por todo o quarto...
— Se esse professor esteve na chácara, como entrou? Como saiu? Que vinculo possuía com a família do desembargador?
— Doutora Gabriela, fique calma. A senhorita está caminhando por um terreno que não lhe diz respeito. O papel de advogado forense nesta história é meu...
Gabriela meneia a cabeça, rápido, uma, duas, três vezes até caminhar a passos largos na direção da porta, porém, antes de girar a maçaneta, se volta e busca com veemência o rosto do diretor do hospital, que a esta altura já se encontra de pé.
— Façam o que quiser, mas eu não vou mudar uma linha sequer do meu relatório a não ser que o paciente dê motivo para isso — ela comunica ao mesmo tempo que olha determinada para os dois homens — E se preferir, doutor Orlando, não se faça de rogado em me substituir. O que seria lamentável.
— Você não será substituída.
Gabriela o confronta num tom extremamente desafiador.
— Foi o paciente, o próprio desembargador quem fez questão de tê-la como sua médica após a desistência da doutora Júlia.
11 de fevereiro, 2017, sábado
Uma bermuda vermelha e uma camisa, polo branca. Pronto. Márcio Antônio termina de escolher as roupas que emprestará a Lucas, dispondo-as sobre a cama enquanto segue pensativo, sentindo-se um tanto cansado, exausto até. O remédio para ressaca está fazendo efeito, mas poderia ser mais rápido.
Ele suspira, inclina um pouco a cabeça para o lado e conforme vai observando as duas peças estiradas sobre a colcha pressupõe todos os seus próximos passos até que possa, enfim, despachar Lucas do seu apartamento: fazer um café bem forte e amargo — para os dois tomar —, evitar frases ou palavras que direcionem a conversa para um campo minado, isso se conversarem, e daí chamar um táxi e fingir que nada aconteceu. Finis.
Márcio Antônio enumera cada uma destas ações, mais uma vez, simplificando-as o máximo possível. Mas não é o suficiente. Evitar Lucas não é o que está lhe incomodando de verdade. Não neste momento. Não por completo. Porque o rapaz está ali? Uma pergunta retórica, evidente, já que Lucas havia deixado bem claro, entre indiretas, sugestões, gargalhadas e olhares descarados, enquanto era arrastado do sofá até o chuveiro, o motivo de ter chegado até à portaria do prédio, apesar de ele, Márcio Antônio, nunca ter lhe dado qualquer esperança ou indício para que sustentasse esta decisão. E além do mais, quem havia fornecido o endereço do seu apartamento?
Está faltando uma peça neste quebra-cabeça. Não. Na verdade, várias peças neste quebra-cabeça, Márcio Antônio pressupõe completamente ciente da ausência de qualquer critério...
Porque Lucas decidiu tomar esta iniciativa, ainda que tenha precisado do álcool para estimulá-lo? O que lhe deu coragem para fazer isso? E somente agora, depois de dois meses após o término das aulas? Não condiz com a sua personalidade reservada, tímida e reprimida que mantém em sala de aula... e fora dela também... Vide o joguinho com livros e mangás, ridiculamente infantil, que graças aos céus não deu em nada...
Será que o desembargador tem algo a ver com isso? Por que não? Não sabemos o que se passa na cabeça de outra pessoa. E seria digno de uma imperdoável ingenuidade e estupidez aquele que acredita que detém este poder só porque convive com o outro, ou porque o vê frequentemente, ou porque possui uma forte ligação emocional...
Tudo é possível.
Não sabemos realmente os pensamentos do outro. E o desembargador poderia, sim, ter arquitetado tudo isso, manipulando Lucas, como bem sabe fazer, para confirmar as suspeitas que enraizaram em sua cabeça depois de ter descoberto alguma coisa sobre o filho em relação ao professor e decidiu, também, como parte do seu plano doentio, reaparecer depois de todas essas semanas só para ter a ele, Márcio Antônio, próximo de si, para examinar de perto todas as suas ações e reações até reunir todas as provas para transformar suas desconfianças em certezas!
Verdade ou não, que seja.
“Sim, você me estimará, sempre. Represento para você todos os pecados que nunca teve coragem de cometer”, Márcio Antônio se recorda de uma passagem de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde ao mesmo tempo que meneia a cabeça, se perguntando, com raiva, entredentes, o motivo para estar se permitindo agir daquele jeito, buscando fugir dos seus demônios, dos seus fantasmas materializados a poucos centímetros dali, mais precisamente em seu banheiro, como se tivesse alguma culpa no cartório, utilizando-se de abstrações, meras abstrações, tentando culpar terceiros ao invés de si próprio, ao invés de Lucas...
É errado julgar os outros por nós mesmos.
O desembargador pode ser o que for, desde um canalha covarde, um manipulador a um psicopata apaixonado, mas com certeza não se prestaria a este papel. Jamais. Não iria expor o filho desse jeito. E se tivesse realmente desconfiado, descoberto algo, por mais absurdo e insustentável, teria acareado a ele, Márcio Antônio...
Tudo é possível. Não sabemos realmente os pensamentos do outro, Márcio volta a refletir, não esperemos o juízo final. Ele realiza-se todos os dias.
Márcio Antônio começa a caminhar no curto espaço entre a cama e o guarda-roupa, se odiando mais e mais a cada minuto por ter de se confrontar com o tribunal da sua consciência, afinal, o raciocínio do ser humano é marcado pela dualidade. Bem e mal. Luz e sombras... Sim. Sim. Precisou reunir forças para não se enfiar sob o chuveiro... Sim. Sim. Todos os pensamentos despudorados possíveis, e talvez até mesmo inimagináveis, atravessaram sua mente... Sim, sim. Tantas coisas que fantasiou em fazer com o filho do seu amante, ainda mais agora, MAS NÃO FEZ.
Márcio Antônio se deixa cair sentado sobre a cama enquanto mais uma vez permite que sua mente seja invadida pelas lembranças, pelos gestos, por todos os gestos, todos os sorrisos, todos os carinhos do desembargador para com ele desde que se conheceram, assim como também se deixa levar pela sensação, não, não, a certeza do desaparecimento da paixão...
Kant... isso... A paixão nada mais é que uma inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.
Márcio Antônio sente-se ofegante, sufocado. Um medo indizível tomando conta de si. A porra de um medo que poderia muito bem controlar... O corpo... O corpo precisa domar o cérebro.
Porque não fazemos o bem que preferimos e sim o mal que não queremos?
De repente, se vê perdido entre lógica e razão, não conseguindo concatenar, por mais que tente, em algo concreto e daí, de imediato, sente a mão direita começando a tremer e em seguida as pernas ficando bambas.
Por que Lucas veio parar no meu apartamento? Será que o desembargador tem algo a ver com isso? Por que não? Não sabemos o que se passa na cabeça de outra pessoa, Márcio Antônio repete e repete como se com essas palavras pudessem mudar a realidade. Como se cada um delas formasse o encanto necessário, o Abracadabra para que pudesse voltar no tempo e mudar o que fosse preciso de modo a evitar o que está acontecendo neste momento.
Está zangado. Precisa reconhecer isso. E porque não estaria? Quem consegue lidar de maneira civilizada com a rejeição?
Uma dor de cabeça.
A boca ficando ainda mais seca.
Um gosto metálico...
Merda. Merda. Merda. Por que fui virar aquelas doses?, ele se questiona, possesso. Sua medicação poderia ajudá-lo, e muito, por agora, mas não pode tomá-la, não pode, não pode, não depois de todo o álcool que ingeriu... E a porra do comprimido para ressaca que não faz efeito...
Ele se vira para a cama, observando, medindo cada canto, recordando a noite anterior: uma lembrança que agora que lhe parece inacessível e distante...
Lucas e o pai... O desembargador e o filho... Eles se parecem, eles se fundem... Os limites entre eles se confundem, se combinam, se separam, se misturam.
“Você já tem algum plano para o carnaval?”.
O convite... Porque o desembargador lhe fez esse convite? Não foi só para humilhá-lo. Com certeza, não foi... Está faltando uma peça neste quebra-cabeça! Não. Na verdade, estão faltando várias peças neste quebra-cabeça!
Por um instante, por um breve instante, Márcio Antônio tem a impressão de não conseguir ver mais nada à sua frente ou ouvir qualquer coisa ao seu redor...
A promessa... ele fez uma promessa... Não continuaria, não se permitiria ser tratado, não mais, de forma insidiosa e cruel. Não se permitira ser um estepe... Só Deus podia saber os degraus que já precisou descer para agradar o amante...
Chega! O desembargador já tomou por demais sua noite de sábado, a sua paz, como se já não bastassem os últimos dez meses...
— Tá tudo bem aí?
Márcio Antônio não tem tempo de pensar, refletir o que seja; ato contínuo se volta para a entrada do quarto, na direção da voz de Lucas. O garoto está de pé, o corpo ainda umedecido pelo banho e completamente nu, exceto pela toalha que envolve sua cintura.
Os olhares se cruzam...
Um silêncio, incômodo, se estabelece...
Márcio Antônio não consegue deixar de contemplar Lucas, o corpo de Lucas, a beleza de Lucas... a imagem... a imagem da formosura de Lucas e então engole em seco conforme vai deixando o ar entrar em seu corpo, contando lentamente até três, segurando o ar nos pulmões, contando lentamente até três...
— Tem certeza de que está tudo bem?
Lucas faz menção em dar um passo, o primeiro na direção da cama, na direção de Márcio, mas o professor levanta a mão, a mão saudável, a mão que não vai traí-lo e a gesticula no ar como se afastasse algo do seu campo de visão, baixando os olhos logo em seguida, aterrado, sem conseguir abrir a boca para responder qualquer coisa, pois, divisar Lucas deste jeito, após lutar incessantemente com seus desejos, proibidos, está sendo forte demais.
— Tem certeza de que está tudo bem?
Lucas repete e Márcio Antônio, por fim, num esforço hercúleo, encontra forças para responder, porém, sem deixar de manter os olhos caídos ao chão.
— Por favor, fique onde está... — a voz rouca, falhando.
— Está com medo do que, professor?
— É isso... — num rompante Márcio ergue a cabeça de volta para Lucas — Você não me conhece, garoto. Você só conhece o professor, seu professor de filosofia, aquele de dentro da sala de aula...
— Então se apresente. Se mostre.
Lucas avança, devagar, após lançar seu desafio acompanhado de um sorriso indescritível de delicadeza até parar diante do professor, poucos centímetros à sua frente. Márcio Antônio não consegue — ou não quer — desviar o olhar de sobre o seu corpo, um corpo nada especial se comparado aos dos jovens, de todos aqueles rapazes que já passaram pela sua vida, pelas suas mãos... Um corpo franzino, um branco marmóreo, as pernas esguias demais, mas ainda assim torneadas, contudo, não o suficiente para serem agraciadas por alguém como ele. E os braços? Longos. E os pelos? Uma penugem sobre o peito, algo beirando o atípico sobre os braços e pernas... Ainda assim, ele, Márcio Antônio, não sabe entender, não consegue compreender o que lhe causa tamanha emoção, tamanho abalo.
Sim. Sim. Na contramão de todos os arquétipos que considera essencial para o seu deleite sobre o prazer da perfeição juvenil, arquétipos que se assemelham com o ideal grego de beleza, está Lucas com sua compleição seca, monocromática, porém, cheia de vitalidade, virilidade, graça desigual. Uma divindade, cuja beleza é impossível não se admirar, lhe enchendo e agitando o coração.
Lucas e o pai... O desembargador e o filho... Eles se parecem, eles se fundem... Os limites entre eles se confundem, se combinam, se separam, se misturam.
— Acho melhor você ir embora. Agora. As roupas... — os olhos de Márcio Antônio vão ao chão para em seguida serem erguidos, aflitos, depois que Lucas levanta o seu queixo.
— E se eu não quiser ir? — o adolescente sorri do alto, um sorriso enfeitiçado, alegre, calmo, embevecido.
— Você realmente não deveria estar aqui... — Márcio Antônio balbucia enquanto se desvencilha da mão de Lucas ao mesmo tempo que lágrimas começam a se formar no canto dos seus olhos — Vá para casa... Seus pais... Eles sabem onde você está?
— E o que isso importa? — Lucas dá de ombros, enfatizando o seu desdém com um falso sorriso que surgi do nada e desaparece de repente — Os dois estão bem ocupados mergulhados dentro do inferno que criaram. Não vão sentir minha falta.
O semblante de Márcio Antônio é tomado pela muda infelicidade, a desventura que assola todos aqueles que são obrigados a confrontar as agonias da realidade que os rodeia.
— Por favor, Márcio — Lucas se ajoelha; os olhos nos olhos do professor, inquiridor, medindo cada linha de seu semblante — Dois meses... Dois meses para que eu tomasse coragem pra fazer o que estou fazendo. E você sabe o porquê. Vamos jogar limpo, por favor. Você sempre soube do meu interesse. E eu pensei bem, refleti, refiz cada passo, cada olhar que aconteceu naquela sala de aula... Seus olhares, meus olhares... Você sempre me incentivou...
Márcio Antônio tenta se levantar, mas Lucas o impede.
— Não. Você vai me escutar...
— Você está bêbado, garoto...
— E o seu hálito, por mais que você tenha tentado disfarçar, não é nem de longe o de uma pessoa que tenha tomado copos de leite nas últimas horas.
— Nós iremos nos arrepender... Eu irei me arrepender...
— Arrepender do quê? Podemos ser amigos...
— Não. Não podemos...
— Claro que podemos.
— Lucas — Márcio Antônio chama entre os dentes, o rosto, agora, contorcido pelo assombro, pelo desespero — Você tem o quê? Dezesseis anos, se não me engano. Eu tenho cinquenta e cinco. Não temos nada em comum a não ser o colégio onde você estuda e onde eu leciono. Então, ouça bem: nunca seremos amigos fora daquelas paredes.
Lucas devolve o olhar de maneira agressiva, à queima-roupa, apoiando as mãos sobre as pernas trêmulas do professor.
— Sim. Você reparou em mim. Desde o começo. Desde o instante em que fiz questão de me destacar nas suas aulas, me mostrando curioso sobre tudo o que você dizia... Passou a me observar como se eu tivesse sempre olhando pra você desde o momento em que aceitou aquele jogo ridículo envolvendo os livros, os mangás que eu deixava sobre a minha carteira...
— Eu já disse que é melhor você ir...
— E no churrasco? Você me viu te observando. Claro que sim. Tanto que me encarou daquele jeito... Eu te desejei mais do que nunca naquele dia, sabia? Quer saber quantas punhetas bati quando cheguei a casa?
— Vá embora! Pela minha sorte... pela sua sorte.
Márcio Antônio esbraveja, empurrando Lucas, que por pouco não se desequilibra e vai ao chão.
— Você não quer que eu vá.
Lucas se põe de pé lentamente e depois se afasta, não mais que dois passos para trás, enquanto Márcio Antônio volta a olhar para baixo, porque a primeira coisa que perdemos é a nossa dignidade em fitar alguém quando estamos sendo invadidos por desvarios, impropérios.
— Por favor — Lucas suplica. Uma voz, um tom de voz dúbio — Por favor, me olhe.
Márcio Antônio se recusa. O coração parece que vai saltar de seu peito. Seus pulmões estão prestes a estourar...
— Por favor, só me olhe, um instante, um segundo apenas e depois prometo que irei embora — Lucas suspira ruidosamente. Seus olhos brilham.
Márcio Antônio ergue o olhar, por fim. Um olhar hesitante, apreensivo, revoltado, insultado. Um olhar reprovador e sim, condenatório. Lucas não pode dominá-lo. Lucas não é o desembargador...
Lucas o enfrenta e o desafia em completo silêncio à medida que vai desenlaçando a toalha de sua cintura, bem, bem devagar, até deixá-la cair por completo aos seus pés, como se tivesse planejado cada um dos seus movimentos.
— Gosta do que vê, pro-fes-sor?
27 de Julho, 2017, quinta-feira
Gabriela termina de encher o copo no bebedouro próximo à sua sala e em seguida tira do bolso da calça uma cartela de Rivotril com três comprimidos e engole dois deles devolvendo a cartela de imediato ao seu lugar. Os olhos estão prontos para chorar, mas respira fundo, vira a água num só gole, sentindo os comprimidos descerem pela garganta sem dificuldade e então amassa o copo de plástico e o atira com força na lixeira enquanto sente uma crise de histeria subir dos pulmões para o cérebro na velocidade da luz...
As lágrimas... as lágrimas estão prestes a cair... Talvez precise de outro comprimido...
Em questão de segundos Gabriela chega à sua sala e tão logo termina de fechar a porta atrás de si, num baque quase ensurdecedor, não consegue mais se conter; desmorona, de uma só vez, escorregando até o chão com as costas apoiadas à porta, chorando, chorando muito e blasfemando contra tudo o que vem acontecendo consigo, a sua falta de pulso diante da perda do controle de todas as coisas dentro do seu próprio universo e se odiando por isso, por permitir se sentir uma coitada, se odiando por não ter coragem de enfrentar Dorlan, vociferando contra o diretor e o tal advogado de merda que apareceu do nada, um pedante que acha ser o dono de todas as verdades e segredos do mundo.
Gabriela sente de novo a queimação no estômago e também passa a ouvir tambores em seu crânio; ela se encolhe. As próximas duas semanas serão um verdadeiro inferno.
Eles pensam que venceram, mas não. Não, ela diz a si mesma, os olhos agora fechados, buscando dissipar todas as névoas que se formaram de repente diante de si, diante de sua mente, impedindo-a de seguir, de raciocinar... Ela não é incapaz. Ela não falhou com Eve. A opinião de uma pessoa não pode e não deve defini-la... O contato com a realidade, com esta realidade, está se tornando insuportavelmente doloroso...
“A polícia, e nem ninguém, conseguiu encontrá-lo... E ainda que o fizessem nada poderia incriminá-lo. As impressões digitais nos corpos, nas gravatas usadas para estrangular a Sra. Abigail e o garoto, as impressões digitais na cama, nos lençóis, todas são do desembargador. Nenhuma outra foi encontrada. Não nos corpos, não nesses objetos e nem por todo o quarto”...
Gabriela permanece encolhida. Os efeitos dos barbitúricos, os efeitos do Pondera, os efeitos do Rivotril...
“Foi o paciente, o próprio desembargador quem fez questão de tê-la como sua médica após a desistência da doutora Júlia”.
Mentira!, Gabriela brada, esmurrando o chão. Ela se lembra perfeitamente das palavras de Orlando quando chegou a este hospital: “as informações que tenho sobre a senhorita foram mais que suficientes para abalizá-la a este posto”, então é claro que ele está mentindo. Ele e esse Claus. Aliás, ela não pôde deixar de observar a dinâmica entre os dois. Os olhares de cumplicidade. A postura hesitante do diretor desde a chegada do advogadozinho de merda.
Gabriela sente a visão turva, mas precisa se levantar. Precisa aproveitar que está no hospital, apesar de não ser o dia de tratamento, e ir ver o paciente Eve. Precisa, de alguma maneira, apesar de ser um absurdo, confirmar essa história, essa versão descabida de que ele, Eve, a quis ter como sua médica. O desembargador não está em condições de ponderar, decidir o que seja e o doutor Orlando, o diretor Técnico e Clínico de um Hospital Psiquiátrico, não iria atender, assim, pura e simplesmente, jogando por terra todas as suas atribuições e responsabilidades éticas, a um pedido de um paciente...
Ele a traiu. O diretor a traiu e está mentindo só para conseguir um laudo conveniente para o processo... Mas por que isso?
Novas perspectivas começam a se formar. Aparentemente uma nova visão dos últimos dias, dos últimos quatro meses...
E se absurdamente, considerando a mais ínfima possibilidade dentro de um universo integralmente fora de questão, Eve, de fato, fez esse pedido? Com que referência? Como ele fez questão de tê-la como sua médica? Sera que foi a própria Júlia Mathias que a indicou? Mas a colega não faria isso, não dessa maneira, não depois de ter abandonado o tratamento completamente contrariada, insultada...
Gabriela inspira e expira enquanto se deixa levar pela sensação, pela certeza da inversão da ordem natural dos fatos e daí se agacha para avaliar o próprio equilíbrio e depois de se sentir firme, decide se erguer. A cabeça gira um pouco, mas consegue, entre mortos e feridos, manter-se em pé. Cólica e uma enxaqueca. Necessita urgentemente ligar para Júlia Mathias. Tem que entender tudo isso, o motivo de sua abrupta saída, precisa confirmar essa insólita versão sobre ter sido eleita por Eve para substituí-la... Apanha o celular num dos bolsos da calça, busca o número da doutora Júlia...
“E a propósito, não me ligue mais sobre este assunto. Na verdade, se puder esquecer o meu número, será a melhor coisa a fazer”.
Com a visão ainda opaca, Gabriela completa a chamada, contudo, ninguém atende. Ela tenta de novo e de novo e obtém o mesmo resultado e então, antes de devolver o telefone ao bolso, deixa uma mensagem se desculpando pela insistência, mas que precisa conversar com ela, Júlia, o mais breve possível. Em seguida, irritada, se dirige para a escrivaninha e antes mesmo de se aproximar divisa um envelope, um tanto enrugado e disposto de qualquer maneira, parecendo ter sido jogado sobre a superfície da mesa. Rapidamente trata de tomá-lo entre as mãos. O seu nome, do lado de fora, foi escrito de forma desajeitada. Ela o abre febrilmente e sem dificuldade e daí se depara com um texto redigido com letras trêmulas, mal formadas, mas também com outros dois tipos diferentes de caligrafias, uma delas, significamente consistente...
E não há assinatura!
Gabriela lê e relê a missiva, meio que atônita, não conseguindo sequer se mover, apenas balbuciar ao final do segundo exame: o que está acontecendo é quem é essa Laura?
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