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* PARTE 1 – O ESTRANHO SONHO *
Fôlego quase zero. Coração a mil. A única coisa que eu precisava era alcançar aquela maldita janela, correndo como se o mundo fosse acabar a qualquer momento. O problema era o barulho dos meus passos naquele chão de metal. As paredes frias, com tubulações sinistras e um estranho vácuo saía de suas entranhas. Ele estava atrás de mim. Senti o bafo da criatura horrenda no meu cangote.
Não era humano. Era um ser de dentes enormes e afiados, nuca alongada, braços que se estendiam até o chão e unhas pontudas. Nunca na vida vi algo tão assustador a me olhar com olhos grandes e vermelhos.
Saltei a janela ouvindo o grito daquele bicho de outro mundo rasgar o ambiente inóspito. Deslizei pelo chão escorregadio e me ancorei em uma portinhola de ferro no piso. Sem saída, ou eu caía na escuridão ou era devorado. Espiei um estranho relógio no alto da parede marcar meia-noite. A criatura arreganhou a boca em minha direção. Foi quando me joguei.
Caí no vazio e despertei no meu sofá.
Mais um pesadelo para esquentar minhas noites de primavera. Acordei suado e sozinho, ouvindo Shinedown com a mesma atenção que dispensava aos meus amigos.
Eu não tinha amigos, verdade. Ninguém conseguia ser amigo de quem delirava ao som de “Devil” e sonhava com invasão alien.
O cair da noite me excitava, porém, sentia que mergulhava em meu vazio interior. O pesadelo talvez fosse minha vida. O abismo era esse vazio, e a criatura horrenda o meu passado desastroso.
Eu morava sozinho em um apartamento alugado. Cômodos pequenos, do tipo que um pé pisava na sala e outro na cozinha. Era o suficiente para mim e meus pensamentos.
A lua apontava no horizonte, pelo vidro da janela. Parei a música, me levantei e fui até o banheiro. Amarrei meus cabelos pretos em um coque samurai, dei uma conferida na minha barba que escondia a má diagramação do meu rosto. Nunca entendi porque saio diferente nas fotos, se no espelho sou tão sexy que até eu me seduzo. Enfim, a noite estava apenas começando.
Visualizei a mensagem no meu celular e, sem responder, apanhei o molho de chaves e saí.
* PARTE 2 – OSSOS DO OFÍCIO *
Perambulei pelas ruas com as mãos no bolso e pensativo. Avistei uma luz ao longe e uma cantoria desafinada. Cheguei num bar. Um cara bêbado tentava chegar ao fim de uma música, uns outros jogavam sinuca (enquanto eu tentava me desviar daqueles tacos), e outros falavam de assuntos fúteis. Se o assunto não for falar mal dos outros, eles nem sairiam de casa.
Aproximei do balcão e, após dar uma visualizada no teto mofado pelo vazamento, fiz o meu pedido: “um guaraná”.
Imediatamente, uma mulher loira, olhos azuis, na faixa dos 30 anos se aproximou de mim. O olhar misterioso era convidativo, mas reparei bem mais em seus ombros fortes. Tenho paixão por belos ombros. Eu não sabia se bebia o guaraná ou se espiava as curvas daquela mulher em seu jeans colado ao corpo.
Foi então que um sujeito alto e bigodudo apareceu entre nós. Tentei não cruzar os olhos, mas infelizmente pude percebê-lo me fulminando no olhar.
— Aí, me vê mais uma bebida de macho!
O barman trouxe uma cerveja. E eu continuei na minha.
— A noite tá quente, não? – perguntou o sujeito pra mim, enquanto deslizava a mão na voluptuosa bunda da loira – Vai uma aí?
Eu olhei pro sujeito. Moreno, testa franzida, rugas por toda a extensão do rosto. Devia ter uns 48 anos, mas eu dou 60 pelo nível alcoólico que ele ingeria.
— To seguindo recomendação médica. Um amigo meu perdeu o fígado semana passada.
A naturalidade com a qual falei deixou o sujeito bigodudo em silêncio. Eu disse que não tenho amigos, não? Pois é, mas o fígado ele perdeu mesmo. Em outra ocasião.
De repente, o bêbado que tentava cantar, engasgou. Eu não pude deixar de rir.
— Como alguém tem coragem de cuspir um clássico desse?
O sujeito bigodudo deu um gole rápido naquela maldita bebida e respondeu secamente:
— Ele é meu irmão.
— Jura? Azar o seu ou dele?
— Você tá gozando com a minha cara, né?
— Faz um tempinho que não gozo – eu disse assim, devolvendo um olhar voraz para a mulher.
Ele jogou o copo com força no balcão que chegou a trepidar as mesas. “Briga, briga”, alguns clamavam.
— Tu tá paquerando a minha namorada, seu filho da mãe?
Eu disse que não, claro. De bobo eu só tenho a cara. Mas não pude deixar de salivar ao fitar aqueles ombros.
— Você sabe quem eu sou?
Eu deixei escapar um sorriso de escárnio.
— Não sabe, não é?
— Não deve ser ninguém importante pra estar aqui enchendo a cara, eu disse, convicto de que ia apanhar.
Porém, não deixei ele falar mais nada. Não dei chance. Espiei o relógio na parede: poucos minutos para a meia-noite. Paguei o que bebi e dei as costas.
Algumas pessoas tentaram segurá-lo. Saí e fui me afastando daquele bar, com as mãos no bolso da calça, cabeça baixa e uma seriedade que me deixava mais sexy, com certeza.
Ouvi, então, os tropeços daquele sujeito. Corri e me afastei o máximo. Parecia que um vazio havia se instalado naquele cenário obscuro e deserto. Virei uma esquina, e alí fiquei esperando o sujeito bigodudo aparecer. Não tardou para que ele entrasse na esquina e apontasse a arma dizendo ser da polícia. Ele falava ao vento, pois não me viu atrás do arbusto.
O cara nem se aguentava em pé e não conseguia mirar aquela pistola o qual mantinha em mãos. Foi fácil. Coloquei o pé na sua frente e o sujeito caiu de cara no chão. Em seguida, chutei a arma.
— Você parece com problemas, amigo.
O sujeito tentou me acertar um soco, mas eu desviei. Observei um chevette virar a esquina em alta velocidade – à meia-noite, todos os gatos são pardos e irresponsáveis. Ninguém te ouve e te vê na escuridão. Quando o sujeito mandou que eu o largasse, eu atendi prontamente e o empurrei contra o asfalto. Ouvi seus ossos se quebrarem diante do baque, um misto de esmagamento com jorro de sangue. O canto dos pneus era ensurdecedor. O sujeito bigodudo rolou o asfalto numa maestria de dar inveja a qualquer dublê de cinema. Creio ser bom nisso.
* PARTE 3 – O CLIENTE *
Fiquei na calçada, olhando o chevette preto dar ré e parar rente a mim. A janela se abriu, e eu espiei para dentro dela.
— Meia-noite em ponto. O senhor é sempre pontual?
Entrei e ouvi Elton John cantar Daniel no rádio do carro. Depois que eu saí da clínica de reabilitação, achei que nada mais poderia arrebatar meu peito, mas Elton John tinha esse dom. Uma melancolia estranha me fez lembrar do dia que vi meu pai morto. Ele parecia dormir sobre a mesa fria do necrotério, de olhos abertos e empedrados. “Your eyes have died but you see more than I”, cantarolava Elton John.
O sr. Oliveira me olhava como a contemplar meus olhos grandes e a minha barba desalinhada. Ele é um homem negro, forte, 50 anos de uma história que não conheço e nem pretendo. Cabelos pouco grisalhos e rosto de poucas rugas. Surgia e desaparecia com maestria, de tal forma que eu me perguntava o porquê d’eu estar alí, executando crimes a seu dispor durante 6 meses.
Sr. Oliveira não gostava de perguntas pessoais. Parecia carregar o ódio em seu semblante fechado. Se eu me atrevesse a guardar ódio, envelheceria 5 anos e perderia 3 quilos. Por isso, acho mais seguro matar.
— Você foi excelente, Benjamin, ele me elogiou. A Tina vai receber a parte dela.
Tina era a tal mulher de belos ombros. O dinheiro seria dado a mim para fazer a entrega. Sr Oliveira nunca aparecia durante o dia. Costumava dizer que fora vítima de emboscada e que agora quer vingança. Ele tinha uma grande marca no pescoço. Não quis perguntar se foi traqueostomia, mas o corte não parecia médico.
— Eu preciso que você faça um despacho amanhã, Benjamin. À meia-noite.
Outra peculiaridade do meu cliente era que todos os crimes fossem cometidos durante a hora morta. Já morreu o José, dono da mercearia. Levou 3 balaços no peito, mas achei legal queimar o corpo dentro do carro dele. Vi isso em CSI e quis copiar; o Luan, metido a empresário de TV, mas era só um diretor de filme independente. Sabe aquela expressão “vão comer seu fígado?”, então...após tomar umas balas nas fuças, seu fígado foi arrancado para servir de transplante ao filho do sr. Oliveira. Ninguém comeu na verdade; Adalberto, funcionário público e frequentador assíduo do bar do bigode. Sim, o bar do bigode onde estive para executar a última vítima – Jorge, o bigodudo. Meu cliente disse que são 6 no total, mas que a última vítima seria especial.
— É só me passar o nome e endereço.
— Creio que esse você conhece. Haroldo Pires, seu amigo de infância.
Eu tinha medo do sr. Oliveira; ele conhecia meus passos, gostos e amigos. Eu disse que não tinha amigos, né? Mas é que o Haroldinho era meu primo e ninguém sabia disso. Parentes são amigos também, mas a gente finge que é só amigo por uma questão de estratégia, afinal, parente não serve como testemunha.
— O senhor tem problemas com o Haroldinho? Sempre achei aquele garoto um palhaço.
— E é – respondeu ele, fitando-me com aqueles olhos fúlgidos –, mas palhaços me tiram do sério.
A mim também, concordei. A propósito, concordo com tudo que me disserem, e quando me convém. Discordar provoca animosidade e, na pior das hipóteses, a morte. Só o faço em situações que obrigam. E quando me pagam.
Sr. Oliveira dirigia seu carro pela noite adentro, mantendo o olhar fixo a sua frente. A maneira como ele deslizava pela pista, tão suave e, ao mesmo tempo rude, trazia-me lembranças.
O José, dono da mercearia, costumava fechar a loja lá pras 23 horas. Era mercearia e bar, com música alta e gente falando besteira. Os assuntos eram dos mais diversos, desde falar mal de político até falar mal da mulher dos outros.
José tinha uma mania que me irritava: atendia sempre com uma bituca de cigarro apagada no canto da boca. Dizia que estava parando de fumar, por isso a maluquice. Era um tipo magro, seco, nem parecia ter 42 anos aquele filho da puta. Coincidência que naquela noite ele errou meu troco e insinuou que eu estava de malandragem. Era a noite de sua morte. Saí humilhado. Jurei que não voltaria lá. Ninguém voltou. Esperei ele fechar a merda da mercearia dele. Parei o carro que o sr. Oliveira me emprestou e ofereci carona. Nem esperei ele aceitar. Arrastei o sujeito mostrando minha 38.
José se borrava de medo. Levei o carro até um cantão deserto. José fingia não entender, disse que me daria o que eu quisesse. Quase tirou a grana da carteira. Ele não se deu o trabalho de me pedir desculpas pela humilhação. Não o salvaria da encomenda, mas me deixaria menos irritado.
Parei o carro e mirei minha 38 no peito dele. Tive a impressão de que ele ia pedir desculpas, mas os 3 balaços que disparei camuflaram suas palavras. Dirigi o carro até uma ribanceira, espalhei álcool – comprado na mercearia dele – e risquei o fósforo.
— Ele me pregou um susto, disse sr. Oliveira, quebrando o silêncio – eu podia estar bem hoje. Foram anos para conquistar meu lugar e ser respeitado. Você sabe o que é isso? Não sabe…
Ele não falou mais. Foi um rápido desabafo. Parou o carro no meio da estrada e pediu para eu descer. Haroldo Pires era a minha próxima vítima.
* PARTE 4 – HAROLDO PIRES *
Cheguei na casa do Haroldinho por volta das sete horas da noite. Passei o dia pensando numa forma criativa e suave de matar o meu primo. Quando se trabalha num escritório de contabilidade, com apenas uma janela e na companhia do cheiro insuportável de cigarro exalando do chefe, sua criatividade se torna sua arma em potencial. Já pensei em formas de matar meu chefe, mas lembrei que não tem ninguém me pagando pra isso.
Haroldinho fazia café aquela hora. Uma coisa que eu não suportava era o estranho fuso horário dele. Enquanto eu pensava no almoço, ele ainda estava acordando; quando eu queria tomar meu lanche da tarde, ele almoçava. Sempre detestei ir na casa dele por isso. Cheiro de galinha frita na hora do meu pão com manteiga chegava a ser brochante.
— Despacho? – indagou ele, enquanto mexia a xícara – No que se meteu?
— É simpatia. – respondi, sonso – Você pode ou não ir comigo?
Haroldinho trabalhava à noite como enfermeiro em um hospital público. Tinha pavor de cemitério, embora o problema não é que seja um local dos mortos, – ele via cadáveres todo dia no necrotério do hospital – mas ele achava que lá era um santuário das almas, que se libertam quando incomodadas. Meu primo era estranho.
— Eu preciso de um emprego que não castigue meus pulmões.
Haroldinho ergueu a xícara de café para o meu lado. Recusei. Ele tomou um gole e, a cada goelada ele olhava ao léu, fazendo o reflexivo. Esqueci de contar que ele é fã de livros e séries investigativas.
Uma vez ele cismou de investigar a namorada usando suas habilidades pós Ágatha Christie. A única coisa que ele conseguiu foi alertá-la sobre sua mente doentia. Haroldinho era estranho. Criava cenas em sua própria cabeça, misturava personagens, fantasiava situações que só aconteciam em sua mente. Depois da cena montada, acho que ele brigava no seu mundo paralelo e descontava nas pessoas em seu mundo real. Era um misto de inquietude e raiva, que talvez ele nem percebesse como seu semblante mudava. Suava e tremia as mãos como se estivesse acabado de passar por um constrangimento no qual nem pôde nem se defender direito. E em seguida, agia como se nada tivesse acontecido.
Tenho quase certeza de que ele sofria de algum transtorno, mas, pelo menos, daria um excelente escritor. Todo escritor tem uma veia meio doida ou psicopática que justifica sua criatividade mórbida.
— Tudo bem, respondeu ele – só me garante que voltarei vivo.
Fizemos uma pausa. Até ele gargalhar como se tivesse contado a piada do ano. Confesso que gelei. Será que o Haroldinho desconfiou de alguma coisa? Aí eu lembrei que era por isso que eu ia matá-lo. Haroldinho é um palhaço: sem graça alguma.
* PARTE 5 – O COBRADOR *
Faltava pouco para meia-noite, e eu tinha pressa. Sr. Oliveira disse que eu receberia tudo em dobro o que fiz por ele. Nunca contei, mas eu tinha o sonho de viajar para uma dessas cidadezinhas com histórico sobrenatural. Visitar uma mansão mal assombrada, adentrar uma caverna perigosa ou dar um pulo em cidades abandonadas. Eu devo ser estranho também.
Tivemos que saltar o muro para o cemitério. Lancei uma mochila para o outro lado e ajudei o Haroldinho a criar impulso. Meu primo era gordinho, vivia dizendo que na segunda ele começaria a dieta, que daria um rumo na vida dele. Eu estou aqui para dar esse rumo.
— Onde tá o material pro despacho? – perguntou ele, analisando minha mochila com olhar crítico e desconfiado.
Eu disse que estava na mochila, mas ele não acreditou.
— Tem um ebó aí?
— Ebó? – quase dei bandeira – Sim! Muito bem embalado, com carinho de mãe.
Ele não levou muita fé, mas seguimos pelo corredor sombrio do cemitério. Haroldinho olhava os túmulos com certa fascinação, prestando atenção nas imagens dos mortos. Até que parou diante de um deles.
— Lembra do Rangel? Aquele filho da puta do caralho?
Eu dei uma olhada na foto do túmulo: era Rangel Oliveira, morto ano passado.
— Lembro sim. Você e seus amigos pediram a minha ajuda para matar o coitado.
Rangel era um advogado em ascensão. Trabalhava arduamente para ser o melhor advogado de grandes casos. A esposa grávida, uma vida de glórias por vir. Parecia enredo de um drama policial, um quase sonho americano em terras brasileiras. O problema é que o tal do Luan – aquele metido a empresário de TV – tinha pendências com ele. O cara queria montar um estúdio em um terreno baldio, mas uma construtora barrou, alegando ser dela. O caso foi parar na justiça. Rangel não media esforços para defender seu cliente, e não só venceu o caso, como desmoralizou o diretor de filmes independentes.
Luan, então, pediu ajuda aos seus amigos para matá-lo, porque ele gostava de dirigir filmes pornôs, e não violência. Juntou mais quatro amigos e me pagaram para executar o crime. Eu fingi que era um cliente que perdeu o emprego por reclamar de maus tratos. Levei Rangel para o suposto local onde eu trabalhava. Fingi surpresa quando vimos o local abandonado.
— Sabe onde estão seus amigos agora? – indaguei, enquanto abria o zíper da mochila, sem despregar o olho em Haroldinho.
Haroldinho me encarou com uma feição de surtado. Tenho quase certeza de que ele havia criado um mundo paralelo em sua mente e estava prestes a estragar meu plano.
— Mortos.
Haroldinho mudou a fisionomia. Suas pálpebras arquearam, suas mãos tremiam, e até sua boca fechada revelava o trepidar de seus dentes. Meu primo, certamente, foi alçado por algum pensamento trágico a respeito de minha conversa. Eu precisava ser rápido.
— Você não vai me sepultar! Você não vai me sepultar!
Haroldinho acabou de gritar e voou em meu pescoço. Essas pessoas que criam mundos paralelos em suas mentes são perigosas. Deduzem rápido demais. É assustador!
Lutei para tirar Haroldinho de cima de mim, mas fui salvo por algo sinistro naquela noite. De repente, ele me encarou com uma expressão de dor, de olhos arregalados, uma brecha para eu apreciar seus lindos olhos azuis. Urrou de uma dor causticante, enquanto suava pelas mãos, que mal conseguiam apertar meu pescoço.
Nesse instante, pude ouvir sua pele rasgando. Seu corpo, agora, se sacudia como a sofrer uma convulsão; da sua boca, uma fina linha de sangue escorria, mas não o suficiente para justificar a poça que se formou no chão. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas me sentia tão paralisado quanto seu olhar. Até que Haroldinho tombou sobre meus pés.
Então vi suas costas rasgadas da nuca até a lombar. A coluna exposta e alçada para fora. Uma violência que eu nunca havia praticado na vida.
— Você gosta de surpresas, Benjamin?
Eu reconheci a voz, procurei em meio àquelas tumbas de onde ela vinha. Até que a figura de um homem se fez na penumbra.
— Rangel Oliveira? - olhei para a foto na tumba para ter certeza – O senhor tá morto. Que brincadeira é essa?
— Eu perguntei se você gosta de surpresas. – ele indagava, seriamente, me encarando de maneira tenebrosa – Sabe o que acontece quando se constrói uma casa sem coluna? – ele aponta para o pobre Haroldinho – É isso que acontece.
Ele riu, e eu achei que era para rir também. Só achei. Nem ri.
— Eu não sei o que aconteceu aqui, mas você não existe, nem to te vendo – eu me negava a acreditar no sobrenatural.
— Ora, ora, Benjamin...falta cinco minutos para a meia-noite e mais um trabalho.
— Trabalho? – pensei rápido, embora eu ainda duvidasse – Sr. Oliveira? Peraí! Que palhaçada é essa?
A aparência de Sr. Oliveira revelava que ele se materializava diante de mim com outro rosto, a fim de não ser reconhecido da época em que era vivo.
— Cinco homens pediram minha cabeça. Não acha justo que agora seja a tua vez, o sujeito que me levou para a morte? Agora é a minha vez de retribuir o passeio.
Não deixei que se aproximasse. Tomado por um medo que só tive na infância, disparei o olhar em todas as direções a fim de encontrar a saída. Ele ria, acreditando em sua vitória. Eu sabia que lutar contra um espírito era uma luta desigual, mas eu ainda duvidava de suas habilidades pós-morte.
Deixei a mochila para trás e corri o mais rápido que podia,
saltei túmulos,
tropecei em qualquer obstáculo.
O vento uivante tornava o cemitério exatamente como nos filmes de terror. A essa altura eu já esperava os contos da Cripta ganhar vida bem na minha frente. Eu sentia de longe o cheiro de podre.
Saltei o muro, desesperado e ralei o joelho. Ao cair do outro lado, rolei pela calçada, mas rolei aliviado. O teor trágico havia desaparecido. Era como se eu tivesse saído do portal da morte.
Alcancei meu carro e entrei, ainda com o coração em pulos. O carro não quis ligar. Engatei a chave, tentei mais uma vez. Nada. Uma sombra atravessou a lataria do veículo. Tentei ligar o carro de novo.
Vai, merda! Vai! – eu gritava para mim mesmo.
Quando voltei os olhos para a janela, a figura de Sr. Oliveira me fez engolir o grito. Cheguei a sentir uma quentura no peito. Agora, era uma figura assustadora, semelhante ao meu pesadelo: sua pele ganhou tom cinza em um corpo esquálido; olhos enormes e vermelhos, pareciam duas bolas de sangue; nariz escondido pela boca exageradamente grande, meio Coringa, mas sem a cicatriz. O formato era de um triângulo, corrompendo a visão do queixo. Dentro da boca, apenas escuridão. Os braços pareciam longos, mãos grandes e dedos semelhantes à de um punhal.
— Você gosta de surpresas? – perguntou ele mais uma vez, mas sem mexer a boca. A voz saía das trevas do seu interior.
O carro finalmente ligou e eu saí em disparada, totalmente em pânico.
Tentei pensar em qualquer coisa para não lembrar daquela figura macabra. Liguei o rádio do carro para ouvir uma linda canção romântica, mas esqueci que liguei minha playlist:
“Oh, this guilt is a heavy cross
There is blood on the path I walk
And each step I take is haunting me!
Embraced by the darkness, I am losing the light!
Encircled
by demons, I fight!...”
(Judas - Fozzy)
Desliguei, enquanto meus olhos insistiam em focar no retrovisor. Dois grandes faróis me perseguiam e sua luz aumentavam cada vez mais. Uma fumaça adentrou-se pelo chão, e eu já esperava o rádio ligar sozinho no Marilyn Manson. É quando um grito arrebata meus ouvidos, olho para trás e lá está a figura demoníaca, com uma fumaça tomando o lugar de suas pernas e um cheiro de enxofre exalando por todo o carro.
Desesperado, acelerei o carro pela estradinha perigosa. Eu podia ter uma chance, e não era ser morto por uma criatura que só eu via.
É quando sinto um fino corte na minha jugular que me faz tremer. Tentei estancar o sangue, enquanto mantinha a outra mão no volante. O sangue escorria, quente, sobre o meu corpo. A mão da criatura lembrava um punhal, eu disse isso em algum momento. E assim, furou meu olho fazendo jorrar o sangue no vidro. Meu desespero era gritante.
— Você gosta de surpresas? – a voz assombrosa insistia no enigma.
Lembrei de como matei o Sr. Oliveira: vendei seus olhos e o empurrei do alto do 13º andar para encenar um suicídio. Era para ele se estatelar no asfalto ou, no mínimo, ser atropelado por um carro em uma cena cinematográfica. Mas não. Ele resolveu cair sobre a grade pontuda do muro, rasgando o pescoço no ferro e dando trabalho para ser retirado de lá.
Antes que eu perdesse mais um olho, acelerei meu carro de qualquer jeito. A criatura invadiu meu ponto de vista e enfiou aquelas garras em meu pescoço ferido. Urrei de dor, arranquei o grito entalado e finalmente perdi o controle do carro.
O sangue esguichava por todo o veículo, enquanto eu via tudo rodar. Ouvia buzinas estridentes, mas eu não já não podia fazer nada. Um baque e fui tomado pelo silêncio.
Ao abrir os olhos, pelo menos o que restou, consegui enxergar uma fagulha de luz vinda do céu. Eu fui arremessado para fora do carro, mas consegui ver o relógio funcionando nele perfeitamente. Faltava 1 minuto para meia-noite. Uma criatura farejante se aproximou. Era um cão preto, sem pelos e bem grande. Ao olhar para mim, seus olhos, que mais pareciam duas bolas de sangue, vinham em minha direção.
O cão sorria, um sorriso de escárnio, dentes afiados. Eu não gostava de surpresas…
* FIM *
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