Parágrafos de uma Paixão - Filme

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2:15:00 min    


“PARÁGRAFOS DE UMA PAIXÃO”

ESCRITO POR:
ZILDA

ELENCO DESTE FILME:

• Mariana Rios - Naara
• Débora Falabella - Heloísa
• Nando Rodrigues - Claude
• Max Fercondini - Jorge
• Letícia Lima - Felícia
• Ludmila Dayer - Clarice
• Catarina Abdalla - Dinorah
• Genézio de Barros - Sebastião
• Marjorie Bernardes - Mayara
• Alessandra Maestrini - Bárbara
• Karla Karenina - Carmencita
• Mônica Martelli - Verônica
• Pedro Nercessian - Ronaldo
• Marcélia Cartaxo - Abigail
• Alexandre Borges — Dorival
E um bebê, como Francisco
(Atores e atrizes fictícios)
___________________________________

11 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 0 — Introdução

Vê-se apenas uma imagem embaçada, num local fortemente iluminado. Pessoas andam de um lado pro outro. Burburinhos correm soltos pelo recinto. Lembra um shopping. É um shopping, na verdade.

Naara (narração) — Eu não sou uma mulher comum. Mas não adivinho a minha particularidade. Eu não diria que tenho uma inteligência superior. Apenas uma inteligência mais... Interessante... Algo que é mais visível aos olhos dos outros. As pessoas analisam meus talentos, pensam que eu sou perfeita. Queria eu! A minha história é tão disparatada, que poderia facilmente ser julgada como mentira. Mas só eu sei o que eu passei. Eu escrevo histórias. Mas quando se trata da minha vida, eu sou uma mulher de verdade.

Cena 1 — Shopping Tijuca, Livraria Saraiva (Noite)

Naara está autografando o livro de uma mulher, que comprou seu livro. O fim da trilogia de "Mediévico Fascínio". Este último era seu mais famoso da saga, protagonizada pela princesa Úrsula Hinxtone, do reino de mesmo sobrenome.

Naara (narração) — Pode parecer irritante narrar todos esses fatos, mas que contadora de histórias seria eu se não tentasse deixar da forma mais esmerada possível? Não vou perder nenhum detalhe! Claro que essa parte não é tão importante, mas eu gosto de começar com esse momento feliz, antes da minha vida... Desandar...

Uma mulher e um homem aproximam-se de Naara, sentada em sua cadeira, apoiada sua mesinha, com uma singela toalha decorando-a, representando seu humilde stand de divulgação ao seu livro.

Verônica — Verônica Siqueira, fazendo especialização em jornalismo cultural pela Veiga de Almeida e trabalhando para o Jornal O Globo. Posso entrevistá-la para a Patrícia Kogut?

Naara — Claro, seria uma honra!

Verônica — Excelente. O Ronaldo vai redigir a nossa entrevista, pode ser?

Naara — Fica à vontade...

Verônica — Então, mesmo isso não sendo algo novo pra você, como se sente estando aqui, em meio a um público recorde, tudo por causa do seu livro?

Naara — Bem...

Naara responde a pergunta, e a entrevista flui. O som da conversa das duas é silenciada. Naara narra a seguir.

Naara (narração) — Embora eu não tivesse feito parecer assim, foi um dos dias mais felizes de toda a minha vida. Eu não estava só com borboletas no estômago. Estava com todo o filo Arthropoda nele. Nunca imaginaria as facadas que a vida iria me dar pouco tempo depois. Nunca mesmo! Doeram mais do que qualquer assassinato à espada ocorrido em "Mediévico Fascínio". Bem... Na verdade, talvez eu esteja falando isso, porque tenha sido em mim. Fazer o quê? Sou uma adepta da autoempatia. Mas isso fica pra daqui a pouco.

(DIA SEGUINTE)
12 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 2 — Casa da Família Reis, sala de estar e corredor (Manhã)

Naara sai do quarto, já arrumada e de dentes escovados, porém, ainda cansada. Por isso, em seguida, bocejou. Eram nove da manhã, e Naara estava faminta.

Naara — Bom dia, gente...

Dinorah — Minha filha! Bom dia. Dormiu bem?

Naara — Graças a Deus!

Naara e Dinorah se abraçam e dão uma 'bitoca'. Tradição de mãe e filha, que se estendia à irmãzinha de Naara, Mayara.

Dinorah — Como foi a sessão de autógrafos?

Naara — Maravilhosa, mamãe. Eu fui entrevistada por uma colunista secundária da Patrícia Kogut. Deve sair hoje ou amanhã, eu acho!

Dinorah — Que bom, Naara. A mamãe se orgulha muito de você, sabia?

Naara — Eu vim do seu útero, o mérito é basicamente todo seu e do papai. Da nossa genética.

Dinorah — Infelizmente, eu só sirvo pra costurar...

Naara — Que isso, mãe! Já falei que você não pode desmerecer as suas virtudes pra enaltecer as minhas, não já?

Mayara sai de seu quarto com um papel e alguns lápis de cor

Mayara — Naara! Naara!

Naara olha para a irmã, e a pega no colo. Mayara entrega o papel para Naara

Mayara — Toma!

Naara pega a folha. É um desenho, de Mayara, Naara e seus livros. Naara lacrimeja, e põe a irmã no chão

Mayara — Você não gostou?

Naara — Não, meu amor. Eu adorei! É uma das coisas mais lindas que eu já vi. Eu te amo muito!

Naara debulha-se em lágrimas

Mayara — Você é a melhor irmã do mundo...

A campainha toca

Naara — Já vai!!!

Naara destranca e abre a porta. É seu marido, Jorge

Naara (narração) — Galego desgraçado... Depois eu explico!

Jorge — Bom dia, meu amor!

Naara — Bom dia, raio de luz!

Naara e Jorge dão um longo e intenso beijo

Naara (narração) — Que nojo... Como eu pude sequer tocar a minha língua no organismo podre desse sacripanta?

Naara — Onde está o Chico?

Jorge — Ficou com a mamãe. Ele acordou com dorzinha...

Naara — Normal, é a fase em que o bebê fica mordendo as coisas.

Jorge — Ai, ele cresce tão rápido.

Naara — Né? Eu nem acredito que aquele meninão saiu de dentro de mim...

Jorge — E que já teve o tamanho de uma sementinha...

Naara (narração) — Uma coisa sobre o Francisco que eu nunca vou esquecer. Que menino grande aquele que saiu de mim. Deu trabalho. 4 quilos e 100. 52 centímetros! A maior alegria da minha vida. A única boa lembrança que eu vou guardar do Jorge...

Naara — Fica pro café da manhã!

Jorge entra e fecha a porta. Naara a tranca

Jorge — Eu já vim exatamente pra isso!

Dinorah — Hum... Cara de pau!

Dinorah e Jorge riem, se abraçam e se dão dois beijos.

Dinorah — Como é que você tá, meu filho?

Jorge — Ah, sogrinha. Tô bem, né? Mas você sabe, o trabalho consome muito...

Mayara se aproxima de Jorge, que acaricia o cabelo da cunhada

Jorge — Ê, menina! Tá grande! Com quantos anos já?

Mayara — Nove...

Jorge — Eita, tá ficando velha! Tá namorando, já?

Mayara meneia sua cabeça. Ela nem pensava nisso. Ainda estava na fase das bonecas e do Discovery Kids. Era uma menina inocente, bobinha. E disso, toda a família já tinha conhecimento

Dinorah — Que isso! Essa daí tem nem idade, nem maturidade pra namorar ainda...

Naara — O café tá pronto, mãe?

Dinorah — Tá sim, minha filha.

Naara — Cadê o pai?

Dinorah — Saiu pra comprar aquele bolo de laranja que você gosta, lá daquela padaria...

Naara — Ah, não precisava. Que fofo da parte dele!

Dinorah — Normalmente, eu concordaria, maaas, hoje, você merece. Nossa autora best-seller. Nosso orgulho.

Naara — E logo, logo, vai ser a Mayara, com os desenhos dela.

Mayara — Meu sonho, expor meus desenhos.

Cena 3 — Casa da Família Reis, vista de cima (Manhã)

Naara (narração) — Deixa eu orientar vocês. Infelizmente, ainda, não temos nada na Tijuca, apesar de eu viver indo pra lá, por causa da editora em que eu trabalho. Editora Via Láctea. A gente mora aqui na Penha. Mas eu gosto. É como minha mãe diz. "Não há melhor lar do que a Penha Circular". É uma aliteração muito da bem pensada, não vou reclamar. Realmente, a vida não foi dura comigo na infância. Eu nunca passei fome, nunca fui assaltada, fui a poucos enterros de família. Dificilmente eu poderia acreditar que eu estava na Terra para pagar meus pecados. Quer dizer... Até AQUELA fatídica noite. Porém, eu estou aqui pra detalhar bem as coisas. Eu não vou entregar logo de cara o clímax. Aprendi isso escrevendo. Você quer ver logo a minha desgraça, né, safado? Eu vou tentar compactar um pouco e cortar os diálogos desconexos. Vamos focar um pouco em mim, eu mereço!

Cena 4 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

É meio-dia, Naara e Heloísa estão pondo o papo em dia. Heloísa é amiga de Naara desde os 13 anos de idade. Advogada. Estava viajando, de férias para a Argentina. Não mora mais na Penha. Conseguiu a proeza de viver o "sonho tijucano" (até as referências do pobre são piegas). O assunto em voga agora é o do dia anterior, como em todos as conversas em que Naara iniciou naquele dia

Heloísa — Como foi lá, a expo?

Naara — Expo? Lô, foi super básico, já fiz isso várias vezes!

Heloísa — Falsa humildade eu já conheço, mas falsa arrogância é nova! Naara, eu sei que quando você bate um recorde feito esse, você fica maluca. É seu primeiro best-seller!

Naara — Eu não consigo te esconder nada, né?

Heloísa — Hello? Eu sou de Escorpião, querida. Eu vejo dentro da sua alma. Eu sei mais de você do que você mesma!

Naara — Eu não chamaria de escorpiana. Eu chamaria de fofoqueira mesmo!

Heloísa — Também! Mas você postou no Facebook, no Twitter E NO INSTAGRAM que você tava nervosa...  Hello? Fecha o perfil, monamour!

Naara — Stalker imunda!

Naara ri, e dá um cascudo leve na amiga. Algo que sempre fizeram uma na outra.

Heloísa — Aparece na minha linha do tempo... Eu só curto. Mas enfim! Não fica nervosa agora. Só tende a ficar mais e mais famosa. Ai! Que orgulho da minha amiga prodígio.

Naara — Eu, prodígio? Tá doida? Você é prodígio! Advogada criminalista, nunca perdeu nenhum caso.

Heloísa — Amiga, eu nem em firma estou empregada. Eu me sustento com os meus honorários! E eu só pego casos que eu sei que vou ganhar. Você sim, arrisca, sem medo de ser feliz.

O telefone de Naara toca. Ela verifica quem é.

Naara — Ah, se for gente me dando parabéns, depois eu at.... Ah, amiga, é a Clarice. A chefe eu tenho que atender...

Naara atende o telefone.

Heloísa — Ui, ela é chique, ela! Businesswoman!

Naara faz sinal para Heloísa fazer silêncio.

Heloísa (sussurrando) — Ih, vai à merda, garota!

Naara — Alô? Clarice?

Cena 5 — Empresa da Editora Via Láctea, Escritório de Clarice (Tarde)

Clarice está sentada em sua escrivaninha, olhando o tráfego pela janela. O movimento dos carros sempre a inspirou para escrever seus livros.

Clarice — Oui. C'est moi. Não, não. Não, Naara, tu n' est pas trompée! Aqui é Clarice mesmo! Eu estou treinando o meu francês. Eu liguei, primeiramente para parabenizar você pelo seu triunfo com a saga. Principalmente esse último livro. Impressionante a sua melhora em apenas um ano e meio.

Cena 6 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

Naara fica encabulada com os elogios de sua chefe, por quem tem tanta admiração.

Naara — Que isso, Clarice. Foram alguns workshops que eu frequentei no processo, que me ajudaram.

Clarice (voz) — Mas não é só isso. Não se dê por vitoriosa ainda. Sua carreira ainda tem muito o que progredir. E é por isso, que eu espero que você já tenha em mente uma nova história. Algo original, mas com o mesmo toque da antiga obra. Quero a sua essência nessa nova...

Naara — Mas, livro novo, já?

Clarice (voz) — Exactement, chérie! E eu quero rápido! Vite, vite! Eu vou te dar três meses pra começar a pensar numa nova saga! Uma nova trilogia!

Naara — Três meses? É muito pouco tempo...

Clarice (voz) — Se vire, isso é problema seu. Bisous, au revoir!

Naara — Mas...

Clarice encerra a ligação. Naara encara o telefone, até o descanso de tela fazer com que ele apague. Heloísa coloca a mão no ombro da amiga, e ela dá por si

Naara — Oi.

Heloísa — Viajou legal, agora! O que foi que ela falou?

Naara — Eu tenho que estar com livro novo pronto em três meses!

Heloísa — Hmm... Parece mau. Você escreve um livro por semestre, né?

Naara — Eu já sou conhecida por escrever tão pouco assim?

Heloísa — Eu não acho pouco, pra falar a verdade...

Naara — O que é que eu vou fazer, meu Deus? O que eu posso pensar pra três meses?

Heloísa — Um romance água com açúcar. Calma! Pensa que "Mediévico Fascínio" era uma história complexa! Simplifica um pouco a sua vida!

Naara — A questão não é como eu vou abordar um assunto. É que assunto abordar. Eu abordei tudo o que eu tinha que abordar na outra saga!

O telefone de Heloísa faz barulho de notificação, Heloísa pega o telefone e começa a digitar.

Naara — Hmmm... Boy novo?

Naara tenta ver o que está no telefone, mas a amiga se esquiva

Heloísa — Sai!

Naara — Ei! Eu não te escondo nada!

Heloísa — Mas eu nunca prometi não te esconder...

Naara — Ai, que vaca!

Heloísa guarda o telefone. Naara tenta pegar do bolso da amiga, mas leva um tapa certeiro na mão

Heloísa — Já sei! E se a gente fosse no shopping fazer umas comprinhas da vitória pra comemorar ontem? Você vai ver gente, vai ver coisas, vai ouvir conversas, é tudo inspiração pro livro novo, certo?

Naara estala o dedo. É sua forma clichê de demonstrar o famoso "eureka".

Naara — Perfeito! E a gente pode ir com a Mayara, já que o aniversário dela foi recentemente, e eu não tive tempo de comprar nada pra ela!

Cena 7 — Casa da Família Reis, Garagem (Tarde)

Naara coloca Mayara no carro, na cadeirinha. A menina coloca seu cinto sozinha, e fecha a porta. Naara e Heloísa entram no carro, e saem para o shopping.

Cena 8 — Casa da Família Reis, Quintal (Tarde)

O carro de Naara passa pela parte da frente da casa. Dinorah abre a porta discretamente, depois do carro já ter arrancado. Ela fecha, logo em seguida. Ela manda para Heloísa, por WhatsApp: "Valeu, Heloísa"

Naara (narração) — Eu sei que pode parecer escusa isso da parte da minha mãe. Mas fiquem tranquilos. É só uma...

Cena 9 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Tarde)

Dinorah vai até seu marido, Sebastião.

Naara (narração) — Festa surpresa... Bem, não vou esconder. É aí que começa a chacina. A chacina do meu coração...

Dinorah — Coloca o som! Vamos começar a arrumar as coisas por aqui!

Sebastião — Podexá!

Dinorah e Sebastião dão um selinho. A matriarca logo vai para seu quarto, se arrumar, quando é interrompida pelo questionamento de seu marido.

Sebastião — Vai comprar as coisas ainda?

Dinorah — Vou, né.

Sebastião — E o Jorge?

Dinorah — Ele vai ficar lá no quarto. Tem umas planilhas pra fazer. Depois tá chegando uma colega dele aí, pra ajudar. Você abre pra ela?

Sebastião — Abro! Fica tranquila.

Dinorah — Vou lá me arrumar... Vou chamar a Carmencita também, pra vir pra cá com o Chico.

Cena 10 — Casa da Família Reis, Quintal (Tarde)

Já eram três da tarde, àquela altura. Chega uma mulher, morena, bonita. Seus óculos, ao mesmo tempo que a davam um clima sério, a sensualizava.

Naara (narração) — Não vou negar, meu estilo é parecido, mas eu sou mais sonsa, sabe? Deixo transparecer, não...

Voltando à mulher, sua roupa era formal, adequada a uma executiva de empresa. Não era a verdade, ela tinha um cargo tão equivalente quanto Jorge.

Naara (narração) — Ela caminhava à passos de modelo para a porta, estava "desfilante", como mamãe diz. Me lembrava Alessandra Ambrósio, um pouco.

Em câmera lenta, chegava de táxi, que arrancava de forma brusca. Era um ruim de roda, a moça havia ficado desesperada de saber que um maluco desses tem carteira. A mulher batia à porta da família Reis. E poucos segundos esperou antes de ser atendida por Sebastião.

Felícia — Boa tarde, senhor...

Sebastião — Oi, você é Felícia, certo?

Felícia — Eu mesma... Prazer! O Jorge me chamou pra fazer algumas planilhas com ele. Onde ele está.

Sebastião — Me acompaprovar...

Sebastião e Felícia entram na casa

Cena 11 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Tarde)

Felícia senta no sofá e cruza as pernas, que estavam à amostra, nada cobertas pela saia drapeada preta que vestia. Ajeitava seus óculos, e logo recebia uma atenção de Sebastião

Sebastião — Então, Felícia. Quer um café? Alguma coisa assim?

Felícia — Eu só quero uma água, por favor. Gelada! É o tempo de eu descansar da viagem.

Felícia deu uma risada tímida, típico de quem procura puxar assunto, ou se enturmar, mas que não tem muita extroversão para tal tentativas. Remetia a alguém realmente deveras centrada.

Sebastião — Não, claro! Vou lá pegar pra você.

Felícia pega em sua bolsa, uma Louis Vuitton...

Naara (narração) — Uma Louis Vuitton claramente FALSA, de ressalva!

Enfim... Felícia pega em sua Louis Vuitton de camelô, seu celular. Um telefone relativamente bom, do ano passado. Abre seu WhatsApp e inicia uma conversa com alguém de nome de contato: "Amorzinho". A mensagem era bem curta e objetiva: "Cheguei". Seguido de dois emojis de coração roxo. Pra quem não pegou a minúcia, isso significa "amor proibido". É o tempo de Sebastião voltar da cozinha, com a água, e assim que percebe, a colega de Jorge logo guarda o telefone.

Sebastião — Aqui está. Sua água!

Sebastião dá o copo d'água que Felícia pediu. Ela o bebe em um só gole. Fica com a bochecha cheia. Típico de quem está com pressa, ou simplesmente de quem é muito mal educado. O comportamento anterior de Felícia descartou a segunda possibilidade, pelo menos aos olhos de Sebastião. A pressa logo pareceu evidente no jeito de Felícia ao falar, em seguida.

Felícia — Onde está o Jorge?

Sebastião — Ele está no quarto da minha filha. É a segunda porta à direita. A primeira é o banheiro, se você precisar... Enfim! Ah! Deixa que eu ponho seu copo lá na pia. Dá ele pra mim...

Felícia entrega seu copo para Sebastião. Levanta do sofá rapidamente e talvez, até um pouco eufórica. Agradece timidamente com a cabeça e parte para o quarto designado a ela. O quarto de Naara. Sebastião bota Ivete Sangalo para tocar no talo. Escolha melhor não poderia ser feita, para homenagear ambas essas mulheres maravilhosas. A recém-mamãe de gêmeas e a recém-fenômeno literário. As duas mulheres da vida de Dinorah, fã de carterinha da baiana, e de sua filha também, claro...

Cena 12 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Noite)

Eram seis da noite. Naara, Mayara e Heloísa chegam em casa. Naara estranha ouvir tocar "Cadê Dalila" no último volume, e a casa completamente apagada

Naara — Gente, desculpa a demora, mas esses blocos atrapalharam o trânsito todinho... Gente, acende essa luz!

Naara acende a luz, e Dinorah, Sebastião, Carmencita, Heloísa e Mayara gritam "SURPRESA". Toda uma festinha foi montada, com todo o esmero e todo o carinho de uma família afável e suburbana (pois é, não era nada chique, mas parcela de culpa se dá à falta de tempo que a família teve para organizar as coisas)

Naara — Não. A. Cre. Di. To! Vocês realmente fizeram isso por mim?

Naara lacrimeja. Se tem uma coisa em que Naara é péssima, é disfarçar a emoção. E era uma moça sensível, a moça Naara. Como uma boa e velha pisciana

Naara (narração) — Velha é tua mãe! E pouco me importa como estava ou deixava de estar a festa. Me levou ao pior momento da minha vida. Não fosse a música, daria pra ouvir os gemidos lascivos de... Bem... Vocês vão ver...

Naara — Meu Deus! Eu amo muito todos vocês! Meu filhooo!

Naara pega Chico no colo, e dá vários beijos na bochecha do bebê. O menino era bem bochechudo. Contribuía para sua fofura, evidente a impotência em negar essa informação

Carmencita — Parabéns, Naara...

Ah, claro. Naara deu por si, que sua sogra, Carmencita estava a parabenizando. Nunca acreditou de fato, no sonho da nora. Mas, não perderia a chance de fazer cena com uma famosa emergente. Naara, sem ressentimentos, deu um caloroso abraço na sogra, que responde com tímidos tapinhas nas costas

Naara — Onde está o Jorge?

Sebastião — Tadinho, ele e a moça, colega dele estão desde as três da tarde fazendo planilhas! Vai lá chamar eles, pergunta se eles querem uns salgadinhos!

Naara — Vou lá, vou só lavar a mão primeiro...

Naara caminha até o banheiro. Antes de entrar, ouve risos baixinhos e maliciosos, e, sim... Os gemidos lascivos que tinha mencionado anteriormente... Ela desconfia. Pode ser paranóia de sua cabeça. Pode não ser. Ela queria descobrir. Devia isso a ela mesma

Naara (narração) — Queria eu não ter devido... Não, se bem que eu não ia querer ser corna eternamente! Eu fiz certo, sim, pode continuar!

Naara chega na porta, tenta girar a maçaneta, e... Está trancada. Por quê? Por quê? Porquoi será? Não foi o sapo que entregou. Felizmente, Naara escondia chave reserva debaixo do capacho. Ao destrancar, sofreu o maior baque de sua vida: viu Jorge transando com Felícia, em sua própria cama

Naara (narração) — Eu não gosto nem de descrever a cópula dos dois infames. Não via tamanha putaria desde a minha lua de mel em Ibiza... Ibiza, no caso, um motel em Balneário Camboriú. Com que dinheiro que eu ia pra Espanha, gente? Viajaram? Porque eu não... Mas voltando à tragédia...

Cena 13 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara ia em direção do casal proibido da mesma forma que um touro iria a um toureiro. Cheia de raiva. Uma que ela nunca sentiu na vida

Naara — Filhos da PUTA!

Naara, completamente surtada, começa a dar vários tapas em Jorge. Em seu ponto alto de fúria, acerta um soco no olho do futuro ex-marido. Felícia, pondo uma mão no peito e uma na parte íntima, intervém

Felícia — Peraí, peraí, peraí! Que que tá acontecendo aqui? Quem é essa aqui, Jorge?

Naara — Prazer, vagabunda! Eu sou ESPOSA desse depravado. SEU ORDINÁRIO!

Naara volta a bater em Jorge

Felícia — Peraí! Tu nunca me disse que era casado! SAFADO!!!

Felícia ajuda Naara a bater em Jorge. Seria cômico se não fosse trágico. Jorge contém Felícia, segurando seus braços

Jorge — Ai, ai! Para! É claro que você sabia, idiota! Eu te contei!

Felícia — Ah é... Bem, nesse caso...

Felícia coloca sua calcinha e seu sutiã, de costas para Naara. Jorge, em meio ao caos, ainda conseguia admirar as nádegas da amante. Ao notar os olhares impudicos do marido canalha, Naara perdeu a o juízo: quebrou sua moringa, e a apontou para Jorge, ameaçando cortá-lo

Naara — Some da minha vida, seu cafajeste! SOME

Jorge — Naara, olha, eu... Eu... Eu... Eu entendo a sua raiva. Se acalma, vamo conversar...

Naara começa a chorar de raiva

Naara — Eu não tenho nada pra conversar com você. VOCÊ É UM SOBEJO DE PESSOA!

Felícia — Só beija, não! Ele fez cada coisa que até o autor do Kama Sutra duvida...

Jorge — Cala a boca, Felícia!

Felícia faz sinal de zíper na boca. Naara aproxima a moringa quebrada ao pescoço de Jorge, e fala, rangendo os dentes

Naara — Fora da minha vida... Os dois...

Felícia — Melhor a gente sair pela janela, pra não chamar atenção, Jorge...

Felícia caminha até a janela, e bota uma perna para pular, mas é bruscamente puxada por Naara, e assim, é derrubada indignamente no chão

Naara — Não senhora! Vocês vão pela porta da frente. Eu quero ver vocês terem cabeça pra tentar erguer diante da VERGONHA que vocês vão passar. Seus SAFADOS! PORCOS FÉTIDOS...

Jorge — Naara!

Naara — Graças a Deus, Jorge! Graças a Deus que eu vi isso! Essa cena imunda. Se eu não visse, além de ser corna, eu ainda tinha chance de pegar uma herpes, uma gonorreia. Sei lá o que essa criatura pode passar! AGORA BOTA A ROUPA, OS DOIS! AGORA!!! VAMBORA, QUE EU MESMA VOU TER O PRAZER DE ANUNCIAR MEU DIVÓRCIO!

Naara (narração) — Naquela noite, finalmente, houve mudança de assunto. Não era mais o sucesso da minha carreira. Era o fracasso do meu casamento!

Cena 14 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Noite)

Mayara e Chico estão se divertindo com brinquedos. Carmencita e Heloísa estão dançando ao som de O Farol. Parecia tudo muito feliz, já que a música alta abafou o barraco. Mas Sebastião e Dinorah percebiam a demora de Naara, e conduzem-se, no sapatinho, até o canto da sala, para expressar preocupação parental, discretamente

Sebastião (sussurrando) — A Naara tá demorando muito. Será que aconteceu alguma coisa?

Dinorah (sussurrando) — Tô preocupada também... Muito estranho isso!

Dinorah desvia o olhar em direção ao corredor, e vê Naara, Jorge e Felícia, andando até a festa

Dinorah — Lá estão eles!

Todos aplaudem a aparição de Naara, que estava pra ser icônica por um motivo, e seria por outro

Naara — Boa noite, gente! Eu agradeço imensamente o comparecimento de todos, mas, eu temo que a festa tenha acabado...

Heloísa — Amiga, como assim?

Sebastião abaixa o volume da música

Sebastião — É, filha. Como assim?

Naara — Mas antes! Antes de tudo, eu tenho um comunicado a fazer. É um anúncio oficial. Eu estou aqui pra anunciar o meu divórcio

Começa um burburinho, que logo é silenciado pelas palmas de Naara

Naara — Ainda não terminei! Tá vendo aqui, essa galinha? Essa aqui é a amante do meu EX-marido... É por essa cocóricó aqui que esse filho da puta do caralho acabou de me trocar, gente! Vocês acreditam?

Jorge — Naara...

Naara — Cala a boca, Jorge. Usa essa sua voz pra falar do divórcio com seu advogado, seja ele quem for e de que laia for...

Jorge — Pode ficar com o que quiser, eu só peço uma coisa!

Dinorah tira a música, e começa a chorar

Naara — REALMENTE! Eu VOU ficar com tudo, porque NÓS... Quer dizer, eu e você, porque "nós" não existe mais, temos uma CLÁUSULA DE FIDELIDADE no contrato do nosso casamento! Que VOCÊ pediu pra fazer, porque, você achava que EU ia te trair. Como o mundo da voltas, não é, meu anjo?

Jorge — Foi minha mãe que mandou eu fazer...

Naara — Cala a boca, caralho!

Jorge — Eu só peço a guarda compartilhada do Chico...

Naara começa a gargalhar, ao mesmo tempo que chora. Ela seca as lágrimas, e põe a mão no rosto de Jorge

Naara — Coitado...

Naara dá um tapa muito forte na cara de Jorge. A unha dela chega a entrar no olho dele. A dor é instantânea

Carmencita — Diz que isso tudo é mentira, meu filho. Diz pra sua mãe! Diz! DIZ!

Carmencita começa a chorar, mas Felícia põe a mão em seu ombro

Felícia — Ih, mentira nada, minha senhora! Então é tu, minha nova sogrinha? Ih, que chique!!! Meu ex-namorado era orfão, então eu não tinha nada disso...

Naara — Você, Jorge... NUNCA MAIS vai ver o Francisco de novo...

Jorge — Não! Ele é meu filho. Ele não tem nada a ver com isso!

Naara — Ele não merece o vexame de conviver com a "informação" de que o pai dele trocou a mãe dele por uma VAGABUNDA!

Jorge — Eu vou te processar, Naara!

Naara — Processa meu cu, seu filho da puta!

Jorge — Você vai ver, Naara! Você não sabe o que um pai é capaz de fazer por um filho! Vamos, Felícia! Vamos, mamãe! Amanhã eu tenho que trabalhar...

Felícia — E eu também, graças a Deus e a Beyoncé, o que é quase a mesma coisa... Ah, seu Sebastião, obrigada pela água!

Sebastião — De... De nada...

Dinorah — Jorge!

Jorge — Oi, dona Din...

Dinorah dá um tapa na cara de Jorge, que logo coloca a mão no rosto, para tentar aliviar um pouco a dor. Sebastião prepara-se para dar um soco em Jorge, mas não consegue

Sebastião — Você não merece nem o meu soco...

Jorge — Me desculpa, gente... Eu não queria que fosse assim.

Jorge e Felícia se preparam pra sair da casa da Família Reis, quando ouvem um "psiu" de Naara. Jorge olha para trás

Naara — Se eu encontrar porra no meu lençol, eu te processo de volta por danos materiais!

Dinorah — Que isso, Naara! Lençol pode ser lavado!

Naara — É, tem razão. E a minha alma também, acabou de ser lavada... Mas o meu coração, Jorge... Você DESTRUIU!!!

Jorge lacrimeja. Apesar de tudo, ele está emocionado com a situação. Ele ama Naara, e vê Felícia como uma diversão extra. Aliás, ele sempre achou que Naara era muito ocupada pra dar atenção pra ele

Naara (narração) — Ah, mas tudo isso tá pra mudar...

(DIA SEGUINTE)
13 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 14 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Manhã)

Eram dez e meia da manhã e Naara ainda não havia levantado da cama. Para falar a verdade, ela ainda nem pensava em o fazer. Isso preocupava seus pais, e ela tinha ideia disso. Isso a magoava ainda mais. Estava acordada, mas imersa demais em seus sentimentos. Estava encalacrada em sua dor e sofrimento. Heloísa, então, abre a porta. A luz do ambiente machucava os olhos de Naara, que se cerraram com força. Heloísa se encaminha à janela, e abre as cortinas. Faz um sol lindo lá fora. Naara põe o travesseiro no rosto. Ela lembrava um vampiro.

Heloísa (cantarolando) — Na-aaara!

Naara — Não.

Heloísa — Que não o quê? Tá maluca? Levanta! A vida continua! Vambora!

Naara — Pra quê? Por mim, a vida podia acabar agora. Não tenho mais motivo nenhum pra viver...

Heloísa — Que isso! Bate nessa sua boca antes que eu bata! Uma mulher inteligente feito você, sofrendo por homem? Ainda mais um homem que não te dá valor.

Naara — Aí é que tá, Heloísa. Ele me deu muito valor. Eu realmente não entendo por que ele fez isso!

Naara tira o travesseiro do rosto e senta na cama. Sua voz ficava bem mais clara para Heloísa

Naara — Tipo, não é como se eu tivesse naquele estágios de luto. Eu não tô em negação. Eu já aceitei o que aconteceu. Eu só não entendo por que isso aconteceu! Não faz sentido. Ele dizia que me amava!

Heloísa — Todo mundo diz coisas pra conseguir se dar bem com a pessoa que quer ir pra cama...

Naara — Heloísa, seja sincera comigo...

Heloísa — E quando é que eu não sou?

Naara — Você acha que eu peguei muito pesado com o Jorge ontem?

Heloísa — Amiga, não sou eu que tenho que te dar essa resposta. Porque cada um age de um jeito. Cada um tem um extremo. Cada um processa coisas como essa de uma forma. É claro que eu tenho meu parecer sobre isso! Mas meu parecer não importa. Porque eu não sou você. E eu nunca fui traída... Normalmente os homens me dispensam e só... Mas o que eu tô querendo dizer é: quando você estiver num momento mais racional seu, você mesma vai se dar essa resposta!

Naara — Mas e se eu não quiser ter essa resposta?

Heloísa — Bem, você só vai saber se quer ou não quer essa resposta, se você tentar buscar, certo?

Naara — É... Tem razão...

Heloísa — E mais! Sem querer ser insensível, mas você pode claramente usar esse momento da sua vida como inspiração pro seus novos livros!

Naara — É? É! Qualquer emoção é válida pra começar uma história. E é o que falam: a gente tem que usar nossas vivências ao nosso favor. Sejam elas boas ou ruins. Certo?

Heloísa — Se você diz... Mas, que tal a gente ir tomar café, agora? Porque de estômago vazio, o momento racional não vai chegar, e muito menos as respostas!

Cena 15 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Manhã)

Naara está terminando de tomar seu café da manhã, enquanto assiste Jane The Virgin pelo Netflix do celular. Heloísa sai do banheiro e senta perto de Naara

Heloísa — Vendo Jane The Virgin?

Naara — Impressionante como ela consegue usar os percalços da vida dela ao favor dela, na hora de escrever, menos...

Heloísa — ... Se tratando das paixões dela. Mas, amiga! Não necessariamente você precisa se basear nisso! Lembra de quando a Jane conseguiu achar um fim pro livro dela sobre salsa, a partir da briga com a mãe? Ela é genial! Amiga, tive uma ideia!!!

Naara (de boca cheia) — Hm... Qual?

Heloísa — Ui, falando de boca cheia? E se... Você escrevesse uma história baseada num casal aparentemente perfeito que tem um fim tipo esse? Pra mostrar que nenhum homem é perfeito e tal...

Naara — Ah, claro! Vamos contar uma história sobre o quão fracassada eu e meu casamento frustado somos, e que só por isso, ninguém mais pode acreditar no amor?

Naara termina seu suco de laranja com um gole só

Heloísa — Não, retardada! É uma forma de alertar as meninas de que não existe esse negócio de par perfeito, de que não dá pra confiar tudo a uma pessoa!

Naara — Tô entendendo o seu ponto, mas mesmo assim, não tô...

Heloísa — Faz o seguinte. Cria um protagonista que seja o seu homem ideal. Com tudo que, pra você, seja perfeição. Seja na aparência, seja na personalidade, no jeito de agir... Depois, você desenrola uma história de amor, e depois você cria uma situação que separe o casal, no final. Isso mostra que só o que a gente enxerga como perfeito não é o suficiente pra consumar um casal!

Naara — Incrível! Heloísa, você é genial!!!

Heloísa — Eu sei disso!

Naara — Amiga, hoje a gente tem que ir lá numa firma pra negociar os acordos do divórcio com o advogado que o Jorge arrumou.

Heloísa — Você tem certeza que ainda quer a guarda total do Chico?

Naara — Sim! É tudo o que eu mais quero... A minha mãe é costureira, então, ela trabalha em casa e tem disponibilidade. Meu pai é aposentado, só sai pra comprar comida. Eu posso diminuir o ritmo de trabalho, já que eu vou escrever uma história mais simples. A Mayara tem muito jeito com criança. Gente cuidando e amando aquela criança é o que não vai faltar. Melhor do que ficar com a Carmencita!

Heloísa — Eu sou obrigada a concordar...

Naara — Então, vamos?

Heloísa — Amiga, antes, uma coisa...

Naara suspira e revira os olhos. Ela está ansiosa, e não quer se atrasar

Naara — Fala!

Heloísa — E se você e o Jorge fizessem terapia? Tipo... Terapia de casal?

Naara dá um riso irônico, talvez, com uma pitada de raiva

Naara — Heloísa, o meu casamento acabou. Por mais que eu não acredite, por mais que tenha sido lindo enquanto durou, acabou!

Heloísa — E eu sei disso! Não é uma terapia pra vocês reatarem. É uma terapia pra vocês se reconciliarem!

Naara — É... Pode dar certo! E mesmo que eu quisesse manter o casamento, a gente fez uma Cláusula de Fidelidade. A partir do momento em que há a traição, o casamento é anulado automaticamente.

Heloísa — Hello? Quer ensinar Direito pra advogada? Eu tô sabendo de tudo isso, e dou o maior apoio pra separação de vocês! Você não merece alguém que vai ficar te chifrando por aí com qualquer uma! Mas vocês devem tentar pelo menos se aturarem... Vocês devem isso, não só a toda história de vocês. Mas, principalmente, vocês devem isso ao Chico.

Naara lacrimeja, abraça a amiga, muito forte, e começa a chorar muito

Naara — O que eu fiz pra merecer isso?

Heloísa — Amiga... Fica calma. Tudo vai entrar nos eixos!

Naara — Tá bom...

Heloísa e Naara levantam de suas cadeiras

Heloísa — Agora, vamos! Senão a gente vai perder a hora!

Naara — Sim!

Heloísa — Você vai pedir a terapia, resolver isso tudo na amizade?

Naara — Não sei ainda. Não sei se eu tô pronta pra isso!

Heloísa respira fundo e conta até três, mentalmente. Depois, volta a si

Heloísa — Tudo bem! Viva a sua dor. Depois tudo vai melhorar. Só promete ser forte pra conseguir superar isso, quando a dor passar!

Naara — Eu vou tentar...

Heloísa — Não, você vai conseguir! Não é por mim, é por você! Agora, vamos.

Naara e Heloísa saem de casa

Cena 16 — Firma de Advocacia Pereira & Moreira, Sala de reuniões (Manhã)

Onze e pouca da manhã, Naara e Heloísa chegam à sala de reuniões. Lá está o advogado de Jorge. Dorival cumprimenta Naara e Heloísa com um aperto de mãos. Os três se sentam

Naara — E onde está Jorge?

Dorival — Ele está mais atrasado, porque ele está vindo com...

Naara — Vindo com a vagabunda?

Dorival — Não!

Jorge e Carmencita chegam à sala, e se sentam ao lado de Dorival

Carmencita — Vindo com a mãe! Eu quero acompanhar de perto o tombo que você vai levar por tentar roubar meu neto de mim!

Jorge — Mamãe...

Naara — Eu não tenho nenhuma pretensão de tirar o Chico da senhora, dona Carmencita.

Naara olha com muito ódio para Jorge. Ela queria esganá-lo com a força da mente, já que não considerava Jorge digno, nem de suas mãos

Naara — Eu só quero ele longe de um pai biltre como ele. De UM FODIDO...

Naara levanta da cadeira, com toda a ira que um ser humano poderia sentir no mundo. Heloísa a puxa de volta para a cadeira. Carmencita sussurra no ouvido de Dorival

Carmencita (sussurrando) — O que que é biltre?

Dorival sussurra a resposta. Carmencita fica chocada e enraivecida

Carmencita — Ei!

Dorival — Reveja seu linguajar dentro desta firma, senhorita Reis.

Carmencita — Olha como você fala do meu filho! Ele não é idiota! E se ele for, pior é você, que é baixa!

Dorival — Fique calma, dona Carmencita! Tá sendo provado aos nossos próprios olhos que essa mulher não tem estabilidade emocional para manter guarda unilateral. E eu convido vocês dois a testemunhar isto, caso isso vá ao tribunal, com base nessa reunião. Eu estou gravando o áudio de tudo aqui.

Heloísa — Vamos com calma. Acho que podemos evitar ir ao tribunal, visto que esse é um caso bem simples! Vamos aos fatos. Jorge e Naara tinham uma Cláusula de Fidelidade, que determina a anulação do casamento de ambos a partir do momento em que ocorre uma traição. Além disso, todos os bens comuns provenientes do casamento são passados ao traído.

Dorival — Realmente. E o meu cliente já está ciente de que vai perder vários de seus bens, inclusive a casa em Araraquara, etc. Acontece que a criança não se determina como bem, e essa Cláusula só está relacionada a bens materiais. Mais alguma coisa?

Heloísa — Eu... Eu não terminei. A lei determina que a guarda da criança será fixada em favor daquele que reunir melhores condições para exercê-la, e mais aptidão para oferecer afeto, integração familiar, saúde, segurança e educação. E, como minha cliente e seu cliente sabem, o lar da Naara tem muito mais condições de proporcionar ao Francisco uma boa qualidade de vida. Além disso, temos ao nosso favor o fato de que a família de Naara é maior, tem maior disponibilidade, e ainda por cima, tem uma relação mais íntima com ele. Nós estamos com a vantagem.

Dorival — Na teoria... Mas de facto, a quantidade de familiares não determina um núcleo capaz de proporcionar total disponibilidade para o bebê. Naara, sua mãe costura por encomenda. Você escreve livros e seu pai. Bem, o Jorge me contou que ele tem vários problemas de saúde. Pressão alta...

Carmencita — E eu, me responsabilizo pela criança 100% do tempo.

Heloísa — Bem...

Dorival — Naara, você toma Lexapro, correto?

Naara — Sim. Eu tenho depressão e TOC. Por quê?

Dorival — O meu cliente não está pedindo a guarda unilateral. Só estamos propondo a compartilhada. Eu já te aviso que, argumentando sobre você, como depressiva e obsessiva compulsiva, já é suficiente para derrubar a sua demanda infundada!

Naara — Seu monstro!

Dorival tira seu copo d'água do porta-copos. É questão de segundos para Naara se contorcer e gritar. Ela põe o copo em cima do porta-copos novamente

Naara — Você não tem amor nenhum pelo pessoal da limpeza!

Dorival — Você não tomou seu remedinho hoje?

Jorge — Vamo com calma também, doutor.

Heloísa — Vamos acalmar nossos ânimos! Vamos pensar no seguinte: toda e qualquer instabilidade emocional que a Naara tenha apresentado aqui, é por causa do impacto da traição que ela sofreu ontem. Não dá pra esperar que ela esteja com a cabeça fria depois de toda aquela situação. Se formos à julgamento, o júri deve simpatizar com o nosso caso.

Dorival — Eu lamento todo o ocorrido. Mas a regra geral é que a criança fique com ambos os genitores. O que a gente deveria estar fazendo aqui é dividir os dias da guarda. Os interesses a serem considerados são os da criança e não o da mãe. E mesmo que você consiga a guarda unilateral, o meu cliente e a mãe têm direito de visitação, aos finais de semana. Isso está no Código Civil, não há contestação. Jorge não é bandido, nem viciado em drogas. Infidelidade não é uma justificativa para afastá-lo do filho de vocês.

Naara — Heloísa...

Heloísa — Naara, ele tem razão. Se você for a julgamento, você vai perder.

Dorival — Vocês podem tentar...

Naara — NÃO! Ai, eu não acredito nisso! Jorge, vamos fazer terapia?

Jorge — Mas, achei que o casamento tinha acabado.

Naara — Não é pra gente reatar. É só pra gente se reconciliar. Pra gente conseguir fazer isso tudo com calma.

Jorge e Carmencita se entreolham. Dorival olha para ambos. No fundo, ele achou uma boa ideia. Já vendo que Jorge está disposto a ceder, guarda seus arquivos na pasta

Jorge — Eu acho... Eu acho que a gente pode tentar.

Dorival — Então, isso vai ser bem mais fácil. Bem pensado, senhorita!

Naara — A ideia foi da Heloísa.

Heloísa — Ótimo! Eu conheço uma profissional excelente. Eu vou ligar pra ela hoje à tarde.

Cena 17 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

Passava das duas da tarde, Naara e Heloísa não haviam nem almoçado. E não tinham fome. Estavam focadas, sentadas na cama. Naara está lendo artigos sobre Henri de Toulouse-Lautrec. Heloísa está falando no telefone com sua amiga terapeuta

Heloísa — Então, tu faz essa pra mim? Ah, amiga, brigadão, viu? Então, vamo recapitular: dia 20, às 14 horas. Tá bom. Um beeeijo. Tchau. Tchau. Ah, sim, a gente tem que marcar de ir no Outback de novo.

Heloísa ri

Heloísa — Ai, ai... Tchau, Babi.

Heloísa encerra a ligação

Heloísa — Então, Naara. Dia 20, às duas da tarde, entendeu? Semana que vem.

Naara não está prestando atenção. Está imersa na história de vida de Toulouse-Lautrec, e em seu legado para a chamada Belle Époque.

Heloísa — NAARA.

Naara se assusta

Naara — Ai! Oi?

Heloísa — Sua primeira sessão de terapia vai ser dia 20, às duas da tarde.

Naara — Ah sim...

Naara volta a ler, sem Heloísa perceber. Não demora muito pra Naara entrar em seu próprio mundinho novamente

Heloísa — Sabe que eu tava lendo esses dias, que aquela frutinha que eu trouxe aquele dia, cranberry, ela é antioxidante e ótimo combatente à infecção urinária?

Naara não tinha prestado atenção a nada que Heloísa disse. Frustrada, Heloísa pega o celular de Naara da mão dela, e vê o que tanto a distrai

Heloísa — O que é isso?

Naara — É incrível, Heloísa. Toulouse-Lautrec era um pintor sensacional. A Belle Époque é divina. Os cabarés, o cancan, o clima de inovação, o Moulin Rouge. Ai, o cinema!!! Mabel Normand. Tudo era tão incrível...

Heloísa — Por que esse interesse em tudo isso agora, do nada?

Naara — Pra minha história, Heloísa. Eu quero escrever a minha história nessa época. Nesse pano de fundo.

Heloísa — Então. O que você tá esperando? Vamos começar?

Naara vai até o seu notebook, na escrivaninha, senta na cadeira, abre e liga o notebook. Heloísa vai para perto da cadeira, e ajoelha-se no chão para acompanhar o progresso de Naara

Naara (narração) — E iria eu começar uma nova aventura...

[Passagem de Tempo]
Cena 18 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Manhã)

Naara estava no notebook, escrevendo seu livro

Naara (narração) — Comecei o livro, já no dia seguinte. Escrevia como uma louca. Eram 6 da manhã, e eu já terminava o segundo capítulo. Às 7, terminei o quarto. Às 8 horas, estava no capítulo 7, esse, muito marcante.

Cena 19 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

Naara continua no notebook escrevendo, comendo strogonoff de frango

Naara (narração) — Naquele dia, só fui almoçar às quatro da tarde. Mesmo morrendo de fome, custei a comer. Estava muito focada no livro. Só parava pra ir ao banheiro!

Naara levanta da cadeira para ir ao banheiro

Cena 20 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Noite)

Chico estava pra dormir no colo de Dinorah. Sebastião preparava as mamadeiras do bebê para colocar na geladeira

Naara (narração) — Dei muito pouca atenção pro Chico nesse período. Meus pais tiveram muito trabalho com ele!

Cena 21 — Paris, Moulin Rouge, Imaginação de Naara (Noite)

A protagonista de Naara, a pintora Mirelle (que era igualzinha a Naara) dançava cancan na Moulin Rouge, enquanto ela era pintada por Henri de Toulouse-Lautrec. De repente, o mocinho perfeito de Naara, Claude, chega e tira Mirelle para dançar

Naara (narração) — Cada cena que eu fazia, eu imaginava na minha cabeça. Precisei estudar cada local histórico, por meio de fotos e de pinturas. Queria fazer parecer que o leitor estava dentro da Moulin Rouge. Que estavam dançando lá, enquanto eram pintados por Lautrec. Igual estava acontecendo com Mirelle e Claude. Os protagonistas que eu criei com todo o carinho, mesmo sem intenção de mantê-los juntos.

Cena 22 — Paris, Torre Eiffel, Sonho de Naara (Noite)

Naara (narração) — O mais engraçado era que eu sonhava com Claude. Sonhos, eu diria, bem, é melhor que eu não diga.

Naara e Claude se beijam, nus na Torre Eiffel

Claude — Je t'aime, amour de ma vie!!! (Eu te amo, amor da minha vida)

Naara — Eu também te amo!

Claude e Naara se beijam novamente, e partem para algo mais tórrido

Naara (narração) — Ele era perfeito! Nos sonhos, ele só falava Francês, mas ele entendia perfeitamente Português. Nos livros, claramente ele falava em Português, mas sempre colocava uma ou outra expressão em Francês. O pior é que eu sempre entendia o que ele dizia nos sonhos! Era um encontro de almas. Tanto dele com Mirelle, tanto dele comigo. Era um triângulo amoroso, eu e minhas crias. Não tinha como perder. Eu estava apaixonada pelo meu próprio personagem

(UMA SEMANA DEPOIS)
20 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 23 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

Naara está quase terminando de escrever seu livro. Chico está brincando de carrinho no quarto, sob os cuidados meio distraídos da mãe. Heloísa entra no quarto, vestida de maneira deslumbrante

Heloísa — Amiga!!!

Naara olha para Heloísa, levanta da cadeira e vai de encontro a Heloísa, para abraçá-la

Naara — Que saudade de ti, amiga!

Heloísa — Eu também!!! Que chuva que deu esses dias, né?

Naara — Não é, menina? Imagina isso se fosse no dia dos desfiles do Carnaval?

Heloísa — Nem fala! E então, já tá em que capítulo? 15, 16?

Naara — 54. Eu vou escrever o último depois da terapia!

Heloísa — JÁ? QUE ISSO?

Naara — Nunca tive tanto prazer em escrever um livro, Heloísa! Nunca mesmo! Eu só não tenho o título!

Heloísa — Paris não é conhecida como Cidade Luz? Que tal Luzes da Cidade? Tipo, os protagonistas são as luzes da cidade, e tal...

Naara — Que legal! Luzes da Cidade é um filme de Chaplin de 1931. E no meu livro, tem uma homenagem que eu fiz a Chaplin. Um menino de dez anos, britânico, amigo dos protagonistas, mudo, que descobre talentos no cinema, ao visitar Paris.

Heloísa — Eu pensei na música de Marcelo Camelo, mas tá valendo isso também!

Heloísa e Naara riem

Heloísa — Mas, ei! Não se atrasa pra terapia.

Naara — São que horas?

Heloísa olha no relógio, Naara salva o documento do livro

Heloísa — Meio dia e dezoito. Vamos almoçar e a gente vai lá!

Naara — Hum... Por que tá toda arrumadona assim, posso saber?

Heloísa — Depois da sua consulta com a Babi, a gente vai lá no Shopping Tijuca, passear. Quer ir com a gente?

Naara — Ai, amiga. Queria. Mas eu quero muito terminar esse livro hoje! Tô paranóica, achando que eu vou perder o livro todo.

Heloísa — Já fez um backup?

Naara — Não. Fiz sete backups. Mas tô com medo de dar algum problema nesses negócios, cê sabe que eu não tenho essa facilidade com a tecnologia!

Heloísa — Ô, se sei! Mas vai dar nada, não! Fica tranquila. Eu te entendo. A gente sai amanhã à noite pra comer alguma coisa, então?

Naara — Com certeza! E eu quero levar o Chico. Já que eu só fico com ele de segunda a quinta, eu quero aproveitar o máximo o meu filho, principalmente depois de dar tanta atenção pra esse livro.

Naara e Heloísa saem do quarto e fecham a porta

Cena 24 — Consultório de Bárbara, Recepção (Tarde)

Naara, Heloísa e Jorge estão sentados na recepção. São quase duas horas da tarde, e o ex-casal está esperando, apreensivo. Já Heloísa está no celular, trocando mensagens

Naara — Como você acha que vai ser lá?

Jorge — Não faço a mínima ideia. Eu tô-...

Naara e Jorge — Morrendo de medo.

Jorge — É...

Jorge dá um sorriso sem graça. Está muito envergonhado. Naara fica séria e vira a cara

Naara — E a...

Jorge — Felícia? A gente tá... Ah, não sei! Eu não esperava, sabe?

Naara — O quê? Vocês tão namorando?

Jorge — Não sei. Acho que ela quer.

Naara — Ué? Você me chifra, e agora que tá solteiro, tá com medo de seguir em frente?

Jorge — Você já quer brigar?

Naara — Não, eu tô perguntando, só!

Jorge — Ah, sei lá. É complicado...

A porta da sala de Bárbara se abre. Dela sai a terapeuta. Os três levantam. Heloísa e Bárbara dão um abraço apertado

Heloísa — Obrigada por quebrar essa pra mim!

Bárbara — Que isso, flor! Me dando cliente, quem tem que agradecer sou eu!

Naara — Boa tarde...

Jorge — Boa tarde.

Bárbara — Naara, Jorge. Entrem, por favor.

Naara — Claro!

Jorge — Com licença.

Heloísa — Boa sorte

Naara, Jorge e Bárbara entram na sala. Heloísa senta novamente na cadeira. Ela está mexendo no Tinder

Cena 25 — Consultório de Bárbara, Sala de consultas (Tarde)

Bárbara senta em sua cadeira, com um bloco e um lápis na mão. Naara e Jorge sentam no sofá, bem afastados, cada um em uma ponta

Bárbara — Se aproximem um pouco! Quero enquadrar a beleza de vocês juntos

Naara e Jorge se aproximam, indo mais ao centro, mas ainda não sentam colados

Jorge — Olha, senhora. A gente não tá aqui pra retomar relacionamento nenhum!

Bárbara — Shhhh... Eu tô sabendo! Fique calmo. Vai acontecer o que tiver que acontecer. Eu só tô aqui pra facilitar. O livre arbítrio é todo de vocês dois...

Jorge — Então tá...

Bárbara — Então. Quem quer começar?

Naara e Jorge se olham, ainda com muita dificuldade

Naara — Posso?

Jorge — Sim, claro.

Naara — Bem, a gente tinha um casamento muito sólido. Nós éramos muito companheiros, não escondíamos nada um do outro, não brigávamos quase nunca. Enfim... A gente tinha um casamento quase perfeito, principalmente depois que nasceu nosso filho, Francisco.

Bárbara — Você concorda com tudo isso que a Naara falou, Jorge?

Jorge — É... Bem... Assim... Realmente, a gente sempre teve... A gente sempre teve uma... Uma cumplicidade muito grande. A gente sempre foi bem próximo. Mas... Eu não sentia ela como uma esposa faz um tempinho. Aliás, desde que o Francisco nasceu.

Naara fica surpresa, e se enraivece com o que Jorge diz

Naara — O quê?

Bárbara anota coisas em seu bloquinho

Bárbara — Como assim, "não sentia ela como uma esposa"?

Jorge — A Naara é muito ocupada. Ela escreve livros, cuida da criança. A gente não tinha mais nosso tempinho íntimo. A gente tinha uma família, mas a gente não tinha mais um romance. Nossos papos viraram "a fralda do menino", ou "o menino tá com febre".

Naara — Como você tem coragem de dizer que o nosso filho acabou com nosso casamento?!

Jorge — Eu não disse isso! Quem acabou com nosso casamento foi você.

Bárbara — Ei, ei, ei! Mantenham a calma! Jorge, por que você traiu a Naara?

Naara — Fala, que eu quero ouvir!

Jorge — Falo! Eu não tinha mais vida sexual. A gente não tinha mais tempo pra namorar, não tinha mais tempo pra nada! Não me sentia amado como um marido! Ao mesmo tempo, tinha a Felícia lá, trabalhando comigo, me dando mole! Eu tenho hormônios! Tenho necessidades!

Naara — CACHORRO!

Bárbara — E se você viu problemas no seu casamento, se você se sentiu mal, por que você não falou nada pra ela?

Jorge — Eu...

Jorge começa a se sentir mal. A raiva de Naara cessa paulatinamente ao ver o sofrimento do ex-marido. Os olhos dele marejam, sua voz fica difícil de ouvir

Jorge — Eu... Não... Eu não queria atrapalhar a vida da Naara... Eu sentia que se eu falasse qualquer coisa, eu ia atrapalhar o sucesso dela...

Jorge começa a chorar

Jorge — Eu faço tudo errado...

Naara — Não...

Naara abraça Jorge, e chora junto dele. Bárbara faz mais anotações

Naara — Você fez tanta coisa certa, por tanto tempo. É claro que esse erro, não dá pra voltar atrás. Mas eu te perdôo. Eu te perdôo.

Jorge — Me desculpa...

Bárbara — O progresso de vocês foi maior do que eu imaginava. Vocês fazem uma boa dupla. E vão fazer de suas individualidades maravilhosas também! Só que vocês precisam continuar se dando bem. Não precisam ser amigos! Mas, vocês precisam continuar participando juntos da criação do Francisco. Vocês não são mais uma dupla casal. Mas vocês são uma dupla de pais. E vocês devem ao bebê, serem uma boa dupla, vocês não acham?

Naara — Sim...

Bárbara — Então? Vale a pena tirar seu filho do pai dele, Naara?

Naara — Não...

Bárbara — Ótimo! O problema principal a gente já resolveu. Mas eu quero vocês aqui, semana que vem. Eu tenho dois deveres de casa pra vocês. Eu quero que vocês conversem, TODOS os dias, meia horinha por dia. Pode ser por telefone, por mensagem, pessoalmente. Quero que vocês falem SÓ a verdade, doa a quem doer. Quero que vocês dêem a sua opinião sincera sobre qualquer assunto. Família, amigos, tudo! Conversem sobre o presente, o passado e o futuro. Anotem, salvem, preservem todas as conversas de vocês, pra vocês mostarem pra mim. Depois, no final de cada dia, eu quero que vocês preencham esse calendário aqui com essas canetinhas. Verde-escuro, verde-claro, amarelo, laranja, vermelho. Estou dando isso pra vocês avaliarem as conversas de vocês. Eu quero comparar os calendários. Não se preocupem se no começo, ficar muito vermelho. Vocês ainda têm muitas mágoas. Muita coisa pra desabafar.

Bárbara entrega os materiais para Naara e para Jorge. Eles se olham, e olham para a terapeuta, que sorri

Cena 26 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara está terminando de escrever o último de seu livro, Luzes da Cidade, em seu computador

Naara (narrando o livro) — Mirelle banhava-se na Grenouillière. O sol daquele verão estava de rachar, trucidava os miolos de quem andava pelas redondezas, corroendo suas peles alvas, sensíveis aos raios solares fortes. Claude corria para alcançar sua amada, com queria se reconciliar. As tramóias de Jean-Paul não os iriam impedir mais de ficarem juntos, mas as mágoas custavam a ir embora do coração da nossa protagonista. O mal-entendido daqueles malditos quadros, daquela funesta exposição, tinha ferido Mirelle, do átrio ao ventrículo. Mas ao ver Claude, correndo para ela, tudo mudaria. Claude corre em direção a ela, e mergulha, de roupa e tudo. Mergulhava, não só naquela água vítrea, mas na aventura que era amar Mirelle. Sumiu nas águas, e preocupou Mirelle. Dois, três minutos. Mirelle mergulha para checar o amado, que estava lá, esperando por ela. Eles dão um romântico beijo. A história deste casal estava apenas começando.

FIM?

Cena 27 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Noite)

Naara está deitada no sofá, e conversa com Jorge pelo WhatsApp

Naara (mensagem) — A gente tá meio sem assunto, né?

Jorge (mensagem) — kkkkkkkk

Jorge (mensagem) — tenho que concordar...

Naara (mensagem) — Mas, como anda seu relacionamento com a Felícia?

Jorge (mensagem) — segui teu conselho

Naara (mensagem) — Que conselho?

Jorge (mensagem) — Eu pedi ela em namoro

Jorge (mensagem) — A gnt tá namorando

Naara fica chocada, e um pouco enciumada, mas não demonstra isso nas mensagens

Naara (mensagem) — Que bom!!!

Naara (mensagem) — Talvez, ela goste mesmo de você!

Naara (mensagem) — De verdade.

Jorge (mensagem) — Naara...

Jorge (mensagem) — Fala a verdade pra mim

Jorge (mensagem) — Você tá me esquecendo?

Jorge (mensagem) — Tipo...

Jorge (mensagem) — Como q vc tá lidando com essa separação?

Uma lágrima escorre pelo olho direito de Naara

Naara (mensagem) — Não é fácil.

Jorge (mensagem) — Naara...

Naara (mensagem) — Foi tudo muito repentino. Foi muito difícil ver você com outra mulher na minha cama. Eu nunca me senti tão humilhada. Eu não me senti um ser humano. Eu me senti um bicho, sei lá...

Jorge (mensagem) — vc vai superar isso

Jorge (mensagem) — ai que horror Naara

Jorge (mensagem) — eu não imaginava

Naara (mensagem) — Não se sinta mal...

Naara (mensagem) — Quer dizer

Naara (mensagem) — Claro que você cometeu um erro

Naara (mensagem) — Mas

Naara (mensagem) — Se martirizar só vai piorar as coisas!

Jorge (mensagem) — sim

Naara (mensagem) — Se eu já te perdoei

Naara (mensagem) — O que que custa você se perdoar?

Jorge (mensagem) — kkkkkk autoempatia?

Naara (mensagem) — Melhor coisa!

Jorge (mensagem) — É...

Jorge (mensagem) — Naara eu tenho que ir

Jorge (mensagem) — combinei de sair com a Felícia hj

Naara (mensagem) — Tudo bem...

Naara (mensagem) — Tchau, boa noite.

Jorge (mensagem) — Bjs

Naara (mensagem) — Bom passeio :)

Naara guarda o telefone, e seca as lágrimas. Dinorah sai da cozinha, com uma xícara de café na mão. Ela senta no sofá, e Naara apoia sua cabeça no colo da mãe

Dinorah — É difícil demais, né, minha filha?

Naara — A coisa mais difícil que eu já enfrentei.

Dinorah — Um namoradinho de adolescência também já me traiu, sabia?

Naara — Sério?

Dinorah — Com um garoto.

Naara — Caramba... Como você se sentiu?

Dinorah — No começo, eu não aceitava. De jeito nenhum eu aceitava. Ficava pensando: "eu fui enganada? Eu fui usada?". Depois eu vi, que, aquilo foi preciso, pra nós dois sermos felizes. A gente não tinha um relacionamento "normal". Eu achava que ele era tímido, porque não gostava de carinho. Mas, ele foi muito feliz ao lado daquele menino. Eles se casaram. Ficaram 30 anos juntos. Morreram tem um tempinho, um de Sarcoma de Ewing, o outro de tristeza. Não conseguiu ficar longe do amado...

Naara — E você?

Dinorah — Eu conheci o seu pai! Ele me consolou, me apoiou. Ele foi meu companheiro, meu amigo. E depois, a gente foi se aproximando, rolou amizade, muito tempo de amizade. Depois, a gente percebeu que transbordava química. Nenhum de nós tinha aquele desejo um pelo outro. Seu pai tava gostando de outra menina. Mas... Aconteceu de a gente ficar junto. A gente começou a gostar um do outro, da companhia um do outro. Todo mundo dizia que ia acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde, mas a gente jurava que era só amizade. Também era. Mas era amor, também. A gente foi destinado um pro outro. Era mais forte do que a gente.

Naara — E o que você quer mostrar com essa história toda?

Dinorah — Naara, nem sempre as coisas acontecem como e quando a gente quer. Quase nunca. Você já quis ser atriz, veterinária, advogada, arquiteta, psicóloga, antropóloga, tanta coisa. Eu mesma, queria que você fosse médica. Seu pai, diplomata. Você virou escritora. Ninguém podia imaginar, mas é o que te faz bem. É o que te faz bem agora! Mas não fica com medo, se um dia, deixar de ser! Tudo pode mudar, mas pode não mudar, também. Mas, Naara! Seja qual for seu sonho, não tenha medo de correr atrás dele! Vai buscar a tua felicidade! O Jorge tá buscando a dele. Foi de um jeito babaca? Foi! Mas ele tá tentando. Ele vai consertar os erros dele, e vai continuar a viver! E você, vai buscar a felicidade quando? E como?

Naara — Não sei!

Dinorah — Aprenda! Eu não posso te dar essas respostas, minha filha! Vê isso tudo como o fim de um ciclo. Busque o início de outro. Não fica estagnada na meiota desses ciclos, que não vai te levar a lugar nenhum. Só vai te destruir.

Naara senta no sofá, e abraça a mãe

Naara — Mamãe, eu te amo tanto!

Dinorah — Eu também te amo.

Dinorah faz cafuné em Naara, que pega seu telefone. A tela liga sozinha, revelando o horário. São mais de nove da noite

Naara — Mamãe, eu já vou dormir.

Dinorah — Cedo assim, filha?

Naara — É. Eu quero dormir bastante. Eu virei umas madrugadas loucas pra escrever esse livro, e eu quero levar os capítulos pra Clarice amanhã, antes ou depois de sair com a Heloísa.

Dinorah — Boa noite, então.

Naara — Boa noite. Durma com Deus, sonhe com os anjos.

Dinorah — Você também. Até amanhã...

Naara beija a cabeça de Dinorah, levanta do sofá e vai até o seu quarto

Cena 28 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara se mexe muito na cama, e finalmente, consegue dormir

Cena 29 — Paris, Moulin Rouge, Sonho de Naara (Noite)

Na noite de Paris, Naara dança com Claude. Eles estão com os rostos colados, e se beijam. Claude se afasta, continua dançando, e estende sua mão a Naara. Ela pega na mão dele, e é puxada, com delicadeza, para fora do Moulin Rouge, em direção a algum lugar

Cena 30 — Jardim Mágico, Sonho de Naara (Noite)

Claude e Naara param num jardim mágico, onde faz sol à noite. Vários animaizinhos rondam pelo local. Flores de todas as cores, de todos os aromas. Pétalas voam com o vento. A aura do local agrada os dois pombinhos. Naara fica boquiaberta, embasbacada. Claude e Naara dançam em meio ao jardim. A grama muda de cor, fica azul. Os dois rolam na grama azul, tiram a roupa um do outro, e fazem amor

Naara (narração) — E foi naquele momento, que eu começava a ficar louca...

Cena 31 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara acorda assustada, bota a mão no peito, respira fundo e volta a dormir

(DIA SEGUINTE)
21 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 32 — Empresa da Editora Via Láctea, Escritório de Clarice (Tarde)

Naara entrega as páginas de Luzes da Cidade para Clarice, que lê o começo, e enquanto comenta, continua lendo

Clarice — Mon Dieu! Já no começo... Eu quero devorar o livro inteiro. Muito bom. Eu me apaixono pelos personagens... Olha só! Página 6 e eu já amo a Mirelle. Quantas referências. Amei, amei.

Naara — Obrigada!

Clarice — Como você conseguiu, tão rápido? Uma semana! Nem eu escrevo um livro em uma semana!

Naara — Vai entender...

Naara e Clarice riem, e se despedem com beijinhos no rosto. Naara vai até a porta do escritório, onde pega Chico do colo de Heloísa

Cena 33 — Toca da Traíra - Tijuca, Interior (Tarde)

Naara e Heloísa estão comendo um prato bem servido de frutos do mar. Naara está dando papinha de legumes para Chico

Heloísa — Hm... Isso aqui é tão bom que deveria ser crime.

Heloísa pisca para o garçom, que manda um beijo de volta. Heloísa, ao voltar seus olhos para Naara, para falar com ela, vê que a amiga mal toca na comida, apenas a encara, com desânimo

Heloísa — Amiga?

Naara dá por si e olha para a amiga, envergonhada

Naara — Hm?

Heloísa — Não gostou da comida.

Naara — Gostei. Gostei. É que...

Heloísa — É o Jorge?

Naara — Pior que não!

Heloísa — Algum problema com o livro?

Naara — Assim... Sim e não.

Heloísa — Que porra é sim e não, Naara? O que tá acontecendo?

Naara — Heloísa... Eu tô apaixonada pelo protagonista do meu livro!

Heloísa fica em choque, e olha com uma cara estranha para Naara

Heloísa — Oi?

Naara — É!

Heloísa bebe um pouco do seu suco de carambola

Naara — Eu ando tendo sonhos eróticos com o meu protagonista...

Heloísa espirra o suco e se suja toda. Chico se diverte com a situação, bate palma e ri

Heloísa — Naara Baptista dos Reis! Eu esperaria isso de mim, não de você!!!

Heloísa começa a rir, e as pessoas começam a olhar pra ela

Naara — Não ri, idiota! Tô falando sério!

Heloísa — Desculpa, amiga. Desculpa!!! É que, não dá! Amiga, isso é muito tempo sem...?

Naara — Ei! O garoto aqui!

Heloísa — Tá bom, tá bom. Mas admite, isso é muito estranho!

Naara — Eu sei! Por isso que eu tô entrando em pânico.

Heloísa — Ai, amiga. Vai na onda! Não tá te fazendo mal, tá?

Naara — Não, não tá! Mas é esquisito.

Heloísa — Ninguém precisa saber! Esse vai ser seu segredinho. Eu mesma, tenho vários. Você não imagina os vibradores que eu guardo lá em casa, e...

Naara — TÁ BOM, TÁ BOM, TÁ BOM, JÁ ENTENDI. Eu tô comendo!!!

Heloísa — Não, você não tá! Seu prato tá cheio, e você tá brincando com a comida!

Naara dá mais papinha para Chico

Heloísa — Ih, amiga. Tu já fica muito tempo cuidando da criança, escrevendo livro, vivendo pra todo mundo. Deixa esse tempinho pra você. Aproveita as coisas que a vida te dá!

Heloísa pega um camarão com o garfo

Heloísa — Tipo, frutos do mar! Ficou a gravidez toda sem comer isso, sem comer no japa...

Naara — Cê tá certa! Aliás, tá certíssima! Eu vou dar esse tempinho pra mim! Se eu não tenho mais alguém pra me dar um "momento íntimo", o meu subconsciente vai me dar!

Naara começa a comer, inclusive com uma certa pressa

Heloísa — Come devagar, degusta a comida, louca!

Naara começa a comer mais devagar. Ela dá a última colherada de papinha para Chico

Heloísa — Eu também preciso de contar uma coisa.

Naara olha para Heloísa, apreensiva

Heloísa — Eu tô estudando pra um concurso pra trabalhar numa firma respeitada, lá em Angra dos Reis. Se eu for selecionada, eu vou me mudar.

Naara — Amiga!!! Eu vou sentir muito a sua falta, mas eu tô muito feliz por ti!

Heloísa — Eu me recuso a te abandonar! Venho te visitar NO MÍNIMO duas vezes por mês!

Naara e Heloísa dão as mãos

Naara — Corre atrás do teu sonho. Não se sinta culpada de nada! Eu tô aqui pra te apoiar. Faça o que te faz feliz!

Heloísa — Te amo pra sempre, amiga.

Naara — Eu também!

Heloísa — Minha bebezinha ninfomaníaca...

Heloísa bagunça o cabelo de Naara, que retruca a provocação com um peteleco na testa da amiga. Chico ri

Cena 34 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

Naara começa a escrever a segunda parte de seu livro, Luzes da Cidade

Naara (narração) — O segundo livro não seria nada parecido com o primeiro livro. Não parecia a mesma escritora. Não era eu escrevendo. Não a minha versão centrada, focada, determinada. Eu comecei, claro, dando continuidade ao mistério proposto no primeiro livro. Iriam Mirelle e Claude ficar juntos? Ou melhor, Claude e eu?

(6 DIAS DEPOIS)
27 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 35 — Consultório de Bárbara, Sala de consultas (Tarde)

Naara e Jorge estão sentados no sofá, bem mais próximos do que da semana passada. Bárbara senta na cadeira, percebe a proximidade dos dois, e sorri, pegando seu bloquinho

Bárbara — Fizeram o dever de casa?

Naara — Sim, senhora!

Bárbara — Me dêem os calendários de vocês, por favor.

Naara dá o calendário dela e Bárbara analisa fria e rapidamente

Jorge — Esqueci o meu.

Naara — Ô Jorge, quer que eu vá na sua casa buscar?

Naara levanta do sofá, e Jorge a puxa de volta, rindo

Jorge — Tô brincando, doida! Trouxe sim.

Jorge entrega seu calendário para Bárbara, que também olha por alto as cores dos calendários

Bárbara — Vocês realmente tiveram uma grande melhora. Vocês acharam que foram totalmente sinceros nesses sete dias?

Naara — Bem...

Jorge — Nos primeiros dias, não. Depois acho que foi desenrolando, eu me senti mais confortável com o passar dos dias, e eu acho que a Naara sentiu o mesmo, por como tudo se deu, e tudo mais.

Naara — Eu tive a mesma impressão! Que alívio, pensei que só eu não tava sendo sincera no começo, tava me sentindo culpada de você estar e eu não.

Bárbara — Eu já esperava isso! É normal, ficar sem jeito, acabar falando menos do que a gente quer. Principalmente quando a gente é tímido. Eu mesma, por exemplo, tenho muita dificuldade em ser completamente direta com os outros em situações mais constrangedoras. Mas, a evolução que vocês estão me relatando já me faz muito feliz, viu?

Naara — Obrigada!

Jorge — Obrigado...

Bárbara — Deixa eu agora, comparar os calendários.

Bárbara pega os calendários, e os compara, em seus respectivos dias e cores

Bárbara — Hm... Muito verde. Gostei... Gostei mesmo. E o que me intrigou, na maioria dos dias, vocês colocaram o mesmo resultado. Ah. Só tem um dia aqui que tá bem gritante a diferença. Olha só. Dia 22. A Naara marcou verde-claro e o Jorge marcou laranja. Eu posso ver o que vocês conversaram no dia?

Naara — Claro!

Naara entrega seu telefone para Bárbara, com o Whatsapp já na conversa com Jorge, no dia 22

Bárbara — Ah... Vocês dois estavam conversando sobre... Uma Carmencita. Carmencita...?

Jorge — Minha mãe.

Bárbara continua lendo a conversa

Bárbara — Ah, sim... Tô entendendo. Naara, você disse umas coisas sobre a sua ex-sogra, certo?

Naara — Umas verdades entaladas, sim. Por quê? O Jorge não gostou?

Jorge — Claro que não, né, Naara? Não é muito legal alguém chegar e falar que a minha mãe é "venenosa" e coisas assim.

Bárbara — Por que você não disse pra Naara na hora, que não gostou?

Jorge — Porque eu estava esperando conversar sobre isso aqui mesmo, com você aqui, pra mediar...

Naara — Ah, Jorge! Tu sabe muito bem que quando a gente começou a namorar, a sua mãe já caçoava de mim, me atazanava...

Bárbara — Só um minutinho, Naara. Jorge, você não pode fazer isso, porque eu não vou estar aqui pra sempre! Vocês tem que resolver os seus problemas sozinhos!

Jorge acena positivamente com a cabeça, demonstrando entendimento, ainda que meio constrangido com a bronca

Jorge — Sim.

Bárbara — Agora sim. Naara, você dizia que a mãe do Jorge caçoava de você. Você pode nos dizer o motivo?

Naara — Porque eu sou negra. Eu sou pobre. Moro no cu do mundo. Depois de um tempo, porque eu virei escritora. Pra ela, o que não faltava era motivo.

Jorge — Você tá insinuando que a minha mãe é racista?

Naara — Eu não tô insinuando, eu tô afirmando! Eu não saio acusando ninguém de crimes que as pessoas não cometem. Mas não se constitui calúnia se for verdade. Fica tranquilo, eu não vou denunciar, porque com racismo velado, o máximo que eu vou conseguir na delegacia, infelizmente, é ouvir que eu tô pagando mico, me vitimizando, essas coisas...

Jorge — Naara, minha mãe saiu com a família dela de Pernambuco, passando a maior dificuldade. Passou por um monte de coisa. Subiu na vida com o próprio suor, me deu tudo o que eu precisei. Fui criado na Tijuca, e eu já acho um leite com pera do cacete! Não é porque ela tem, teve ou tinha uma implicância bobinha com você, que você tem que sair por aí, falando coisas assim dela. Isso é pesado, isso acaba com a vida de uma pessoa!

Naara — Sua mãe nunca me engoliu. Ela só aceitou meu sonho porque eu tô recebendo reconhecimento. Se eu fosse uma fodida, ela já estaria enchendo a sua cabeça pra me largar há muito tempo. Se ela não fez isso alguma vez, né?

Jorge — Bárbara!

Bárbara — Deixa ela exteriorizar as mágoas, Jorge!

Naara — Lembra da nossa lua de mel, em Balneário? Que você acha que o meu pai e a sua mãe dividiram pra pagar? A outra metade não veio da tua mãe não! Veio de mim! Veio de mim, na época que eu tava trabalhando no shopping onde você me conheceu. Aquele salário mixo, que não dava pra nada, que eu tava fazendo economias, pra comprar um negocinho pra mim. Eu usei as minhas economias! Foram anos pra juntar aquele dinheiro novamente! ANOS! Aí eu comprei a minha impressora, que eu tenho até hoje. É por causa daquela impressora que eu cheguei onde cheguei. Eu uso aquilo até hoje pra imprimir as páginas do meus livros. Sua mãe adiou meu sonho em ANOS!

Jorge — Eu... Não sabia.

Naara — CLARO QUE NÃO SABIA! CLARO QUE NÃO SABIA! Ela te manipulava. Você nem tinha como saber. Ela era outra quando você tava perto. Deve agradecer até hoje que eu saí da sua vida...

Jorge — Então tá agradecendo sem razão, porque você nunca vai sair da minha vida. Você é a mãe do meu filho. Eu sou o pai do seu. E ela, não importa o que ela ache disso. Essa ligação não tem como mudar.

Naara — Eu sei...

Jorge — Mas, você tem que entender que ela é minha mãe. E eu amo ela.

Naara — Eu não quero que você deixe de amar sua mãe. Ela é uma excelente mãe. E é uma excelente avó. Apesar de ser meio chata...

Jorge — Naara!

Naara — Foi mal, é mais forte que eu. A questão é: tenha pensamento crítico. Não pense que ela é perfeita. Não se cegue pros atos dela só porque você ama ela...

Bárbara — Então, será que estamos resolvidos aqui? Sobre esse assunto?

Naara — Por mim...

Jorge — Sim.

Bárbara — Pra ter certeza, eu vou designar mais um dever de casa. Naara, eu sei que você é ocupada, mas arruma um dia, pode até ser um dia em que a guarda da criança seja do Jorge. Visita a... Como é o nome dela mesmo?

Naara e Jorge — Carmencita.

Bárbara — Isso. Visita a Dona Carmencita, conversa com ela, joga limpo, fala tudo que você tem pra falar. Mas vai na paz, sem pedras na mão. Lava a roupa suja. Você deve isso a si mesma.

Naara e Jorge se olham, e se dão as mãos

Jorge — Quando você tiver preparada...

Naara (narração) — Pois é. Nunca estive. Mas acabei tendo que ir de qualquer forma... Mas não naquele dia. Aquele dia, iria novamente apresentar minha nova saga.

Cena 36 — Shopping Tijuca, Livraria Saraiva (Noite)

Naara estava de volta àquele shopping, àquela livraria, e àquela situação. Nem parecia que sua vida estava completamente diferente. Seu stand tinha mais esmero, mais luxo. Mais pessoas do que nunca, vinham pedir para ter seu livro autografado. Seu livro era um fenômeno, e ela se sentia muito realizada

Cena 37 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara continua escrevendo seu segundo livro da saga Luzes da Cidade

Naara — Tudo o que eu ganhei hoje, eu devo a você, Claude. Acho que você é mesmo o amor da minha vida...

(DIA SEGUINTE)
28 DE FEVEREIRO DE 2018

Cena 38 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Manhã)

São dez da manhã, e Naara, Heloísa, Dinorah, Sebastião e Mayara, com Francisco no colo, lêem a resenha de Luzes da Cidade

Naara — ... Podemos concluir que as primordiais referências e processos históricos muito bem pesquisados fizeram toda a diferença para dar a veracidade que a história precisava. A construção dos personagens, também baseadas em pesquisas e em prováveis vivências pessoais magistralmente adaptadas, gera identificação com todos nós, seres maravilhosos na arte de amar.

Todos aplaudem, Naara reverencia o público, e Heloísa dá um cascudo nela

Heloísa — Metida!

Naara e Heloísa riem. Mayara dá um abraço na irmã

Sebastião — Parabéns, minha filha.

Dinorah — Você merece o mundo, meu amor!

Naara pega Chico e dá muitos beijos no filho

Cena 39 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Manhã)

Naara e Heloísa estão conversando, enquanto tomam uma xícara de café. Dinorah e Sebastião estão brincando de "Uma Palavra, Uma Música"

Dinorah — Um música com a palavra... "Garota".

Sebastião — Garota? Ah, ah! Garota de Ipanema. "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, nananananana..." Calma... Peraí...

Sebastião cantarola a música em sua mente, enquanto balança os dedinhos, como um maestro. Encasqueta-se ao não conseguir de jeito nenhum pensar no trecho da música com a palavra desejada. Dinorah começa a gargalhar

Dinorah — Amor, amor! Não existe a palavra "Garota" em Garota de Ipanema.

Sebastião — Que saco! Tu pensou em qual música?

Dinorah (cantando) — "Sempre menina franzina, traquina
De tudo querendo provar e provar"

Sebastião — Aaah!

Dinorah e Sebastião (cantando) — "Sempre garota, marota, tão louca
À boca de tudo querendo levar
Vida, vida, vida
Que seja do jeito que for
Mar, amar, amor
Se a dor quer o mar dessa dor, ah!
Quero o meu peito repleto
De tudo o que eu possa abraçar
Quero a sede e a fome eternas
De amar e amar e amar e amar..."

Sebastião — Boa, amorzinho...

Dinorah — Sua vez agora, vai.

Sebastião — Uma fácil! "Ladeira".

Dinorah — "Descendo a rua da ladeira, só quem viu, que pode contar. Cheirando à flor de laranjeira, Sá Marina vem pra dançar"

Sebastião — Muito bem!

Dinorah — A música gravada pelas minhas ídolas, Elis Regina e Ivete Sangalo, licença né? Agora com "Namoro"...

Enfoque na conversa de Naara e Heloísa

Naara — Então é hoje a sua prova?

Heloísa — Ai, miga, é!!! Tô nervous!

Naara — Por quê? Você não estudou?

Heloísa — Claro, né. Mas só tem fera, só tem tubarão nesses concursos. Ainda mais Angra, que é Angra. Você fala a palavra Angra, parece que entra 30 mil na tua conta, imagina morar em Angra? Inclusive, podia entrar 120 mil na minha conta agora, que eu falei "Angra" quatro vezes... Ó, cinco! São 150 mil.

Naara — Amiga, faz a prova. Dá o seu melhor. Se for pra ser, vai ser. Se não for, também não tem problema! Você sabe que não precisa de firma nenhuma pra se afirmar competente.

Heloísa — É, mas sem firma, eu não tenho renome nenhum!

Naara — Heloísa. Faz a prova. Só isso. Se não der, tá tudo bem. A firma de Angra não é a única no mundo, não!

Heloísa e Naara se abraçam

Cena 40 — Apartamento da Família de Oliveira, Sala de estar e corredor (Tarde)

A campainha toca e Carmencita corre para atender

Carmencita — Já vai!

Carmencita destranca a porta com a chave, e a abre. Lá estava Naara com Chico no colo. Carmencita se afasta da porta, frustrada

Carmencita — O Chico é da gente só amanhã.

Naara — Eu sei, mas eu trouxe ele logo hoje pra aproveitar que eu queria conversar...

Carmencita — O Jorge está lá no quarto, você sabe muito bem onde é...

Naara — Eu vim conversar com você mesmo, dona Carmencita.

Carmencita se supreende

Carmencita — Comigo? E o que é que tu quer comigo?

Naara — Eu quero tentar resolver umas questões que eu tenho com você.

Carmencita — Questão, minha filha? Eu tenho cara de prova pra ter questão contigo? Eu tenho mais o que fazer. Ou você quer lavar a minha louça?

Naara ri ironicamente, Carmencita se enfurece com a atitude da ex-nora

Carmencita — Que insolência é essa?

Naara — Você nunca me engoliu, né?

Carmencita — Por que isso agora, garota?

Naara — Pode falar, eu não me importo mais. Eu não faço mais questão, e nem preciso mais forçar barra contigo.

Carmencita — Como eu ia engolir você? Olha pra você, minha querida. Baixo nível. Roupinha barata. Nunca foi o que eu desejei pro meu filho...

Jorge e Felícia começam a ouvir a conversa, do corredor

Naara — Você queria uma loira de olhos azuis. De preferência da Zona Sul. Olha pra mim. Sou nada disso. Nada. Mas olha... Até que eu tô com tudo hein? Cê queria? Ter meu corpo, assim, com 30?

Carmencita — Eu não me prestaria a um papel desse. Eu nunca pedi muita coisa do Jorge, não... Só queria que soubesse cozinhar, passar, costurar. Coisa de mulher, sabe? E que não fosse uma crioulinha que nem você!

Jorge e Felícia ficam horrorizados com os impropérios ditos por Carmencita

Felícia (sussurrando) — Jorge, que horror

Jorge começa a lacrimejar

Naara — Eu poderia dizer que não tem nada pior no mundo do que você. Mas olha, pior que tem! É por isso que eu ache que a humanidade esteja à beira do abismo.

Carmencita — Você que veio me aperrear, só tô dizendo o que penso. Eu amo meu neto, mas falar que ele é bonito? Pelo amor de Deus, né?

Naara — Você sempre tentou me embranquecer...

Naara puxa o próprio cabelo

Naara — Isso aqui, ó... Essa chapinha aqui... Você que mandou eu fazer. Mandou. E eu, burra, nem me opus. Isso é só o começo.

Carmencita — E o que mais?

Naara — Você sempre me colocou pra fazer tarefa doméstica...

Carmencita — Ué? Lavar, passar, encerar, qual o problema? Não aprendesse comigo, ia aprender com quem?

Naara — Caralho, até sua unha eu tive que fazer. Você me via como empregada.

Carmencita — E fez muito mal feita, por sinal, visse?

Naara — Alguém que passou por tudo o que você passou, diminuir alguém semelhante a você. Você é o cúmulo da hipocrisia!

Carmencita — Você não sabe da minha história! Ao que depender de mim, não vai saber nunca, que eu não sou obrigada a dar satisfação pra gente como você.

Naara — Gente como eu é gente como você. É GENTE!!! Mesmo você sendo uma filha de uma puta, você ainda sim é gente, Carmencita.

Jorge começa a chorar muito, e Felícia o abraça muito forte

Naara — Sem falar no meu sonho que você tentou ridicularizar a todo custo...

Carmencita — Aquele hobby de gente desocupada, você chama de sonho? Minha querida, você bebeu antes de vir pra cá? Você deu foi sorte de estar fazendo esse sucessinho aí!

Naara — Fala tudo isso, mas não perdeu a oportunidade de tirar uma casquinha do meu triunfo. Postou no Facebook, "norinha querida", "sucesso", não sei o quê. Nojo de você.

Carmencita — Nojo tenho eu dessa sua cara de pobre!

Jorge — CHEGA!

Naara e Carmencita se assustam, e olham para Jorge, devastado, e Felícia, horrorizada

Jorge — Quem é você pra falar assim da Naara. Você FOI POBRE!

Carmencita — Meu filho...

Jorge — CALA A BOCA! Você é a pessoa mais rasteira que existe. E pensar que o demente aqui nunca desconfiou de nada. Até que você velou bem teu racismo, até hoje. Mas a máscara do conservador e do opressor sempre cai. Naara sempre me disse. Só não esperava que a falta de caráter podia estar tão perto de mim.

Carmencita — Chega, Jorge. Tu é um ingrato. Eu te dei uma vida maravilhosa. Você me deu um neguinho pra criar pelo resto da minha vida!

Felícia — Que vexame, dona Carmencita. Em pleno século 2018 falar um negócio desse!

Carmencita — SÉCULO 21, SUA QUENGA BURRA.

Jorge — Você não precisa mais criar o Francisco, não...

Jorge olha Carmencita de cima a baixo, cheio de raiva

Jorge — Eu e a Felícia vamos nos mudar. Morar junto. Você nunca mais vai ver essa criança...

Jorge pega Chico do colo de Naara

Jorge — Mais uma coisa.... Carmencita... Eu tenho vergonha de ser seu filho. E eu vou fazer questão de fazer o meu filho ter vergonha de ser seu neto!

Naara — Calma, Jorge. Não é pra tanto.

Jorge — Deixa eu falar, Naara.

Carmencita começa a chorar e se ajoelha no chão

Carmencita — Me perdoa, meu filho.

Jorge — Você vai pedir perdão pelo quê? Por me enganar? Por me manipular? Por esconder coisas de mim? Ou por ser quem você é? Qualquer uma vale. Mas e pra Naara? Você vai pedir desculpa?

Carmencita — Jorge...

Felícia — A máscara caiu, dona Carmencita.

Carmencita — Cala a boca, garota. Meu filho trocou uma pobretona por uma jumenta. Não criei meu filho pra trocar seis por meia dúzia.

Felícia — Ué?

Felícia faz as contas nos dedos

Felícia — Mas seis e meia dúzia não é a mesma coisa?

Jorge — Cala a boca um pouquinho, Felícia.

Felícia faz um zíper com a boca, Jorge senta na poltrona, enfurecido

Naara — Aproveitando que eu tô aqui, Felícia. Eu queria te pedir desculpa. Eu te tratei muito mal aquele dia.

Felícia — Que isso, eu te entendo.

Naara — Eu quero muito que a gente consiga ser amigas, um dia, quem sabe.

Felícia dá um abraço em Naara

Felícia — Você vai arrumar alguém que te ame de verdade.

Correm lágrimas dos olhos de Naara, que caem em Felícia, que as seca com as mãos depois do fim do abraço. Naara limpa seu rosto

Naara — Eu espero já ter achado esse alguém, porque eu não sei se eu vou ter força pra procurar.

Felícia — Do jeito que tu é, precisa nem procurar. São os homens que vão te achar! Bonita, inteligente...

Naara sorri para Felícia

Naara (narração) — Ela não era tão ruim assim, afinal...

Felícia — Não tanto quanto eu, mas...

Constrangida, Naara dá um sorriso amarelo

Naara (narração) — É... Perfeito, ninguém é.

Naara — Jorge, será que a gente pode considerar isso como conversa da terapia?

Jorge ri

Cena 41 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara e Heloísa estão sentadas na cama, conversando

Naara — E aí, como foi na prova?

Heloísa — Acho que fui bem, né?

Naara — Acha?

Heloísa — Eu não tenho certeza de nada nessa vida, Naara. Eu prefiro diminuir minhas expectativas, sabe?

Naara — Sei.

Heloísa — Mas e o livro? Tá indo?

Naara — Mais ou menos. Fluir, flui. Só que não tá como eu queria. Não sei.

Heloísa — Tem a ver com "aquilo".

Naara — Não. Não sei.

Heloísa — Amiga, de novo. Eu prefiro diminuir minhas expectativas. Diminui você também. Deixa o melhor pro livro final.

Naara — É... E eu também já tô cansada de escrever. Vou relaxar um pouco.

Heloísa — Olha, eu fui visitar a firma de Angra, e eu fiquei de conhecer as coisas lá, os pontos turísticos. Tava pensando em ir de novo, pra me divertir. Vamo comigo?

Naara — Ai, Lô. Tem certeza?

Heloísa — Você quer?

Naara — Quero.

Heloísa — Então, porra. Tem quem te impedindo? Vambora! Aproveita que tu tá próxima do Jorge, deixa o Chico com ele! Até domingo, só.

Naara — A coisa que você mais deve ouvir de mim é "você tem razão", né?

Heloísa — Fazer o quê? Meu nome do meio é razão.

Naara — E o último é convencida

Naara e Heloísa se abraçam

Cena 42 — Jardim Mágico, Sonho de Naara (Noite)

Naara e Claude fazem amor, e se beijam. O vento fica mais forte e as pétalas voam com ele. A grama novamente fica azul

(DIA SEGUINTE)
01 DE MARÇO DE 2018

Cena 43 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Manhã)

Naara se arruma para ir para Angra com Heloísa. Ela está apenas de roupas íntimas de renda. Heloísa entra no quarto de fininho, e dá um tapa no bumbum da amiga, que se assusta e se vira

Naara — Que susto, Heloísa!

Heloísa — Bom dia pra você também, Naara. Calcinha e sutiã de renda? Vai caçar em Angra, é?

Naara — Não. Eu uso pra me sentir mais confiante, mais atraente.

Heloísa — Segredos íntimos são o que não faltam.

Naara — Olha quem fala, a Dona Vibradores.

Heloísa — Por pouco tempo. Tem um tempinho aí que eu baixei o Tinder e os encontrinhos não tão ruins, não. Só ainda não encontrei aquele homem pra levar pra cama.

Naara coloca na cama dois vestidos. Um azul bebê com bolinhas brancas e um amarelo florido

Naara — Pra levar pra cama tem burocracia, agora? Cê não vai casar, não!

Heloísa — Não. Mas eu não confio em qualquer um. Vai que a camisinha fura, se eu for engravidar, que seja uma criança linda e inteligente.

Naara chama a atenção de Heloísa para os vestidos. Aponta para ambos

Naara — Amiga, esse ou esse?

Heloísa — De dia, amiga. O vestido amarelo, vai te valorizar super.

Naara guarda o vestido azul no armário e veste o amarelo

Heloísa — Dá uma viradinha.

Naara dá uma viradinha e Heloísa aplaude

Heloísa — Podemos ir?

Naara — Sim, senhora.

Naara e Heloísa saem do quarto

Cena 44 — Rodoviária, Carro de Heloísa (Manhã)

Heloísa está dirigindo. Naara está bebendo água numa garrafinha, ao acabar, joga a garrafinha no lixo do carro. Seus pensamentos ecoam incessantemente, e Naara sente como se seu cérebro fosse fuzilado pelas lembranças de seus sonhos. Ao olhar pro lado, vê Claude sentado ao seu lado, sorrindo, e toma um susto

Naara — Tem a ver com aquilo sim.

Heloísa — Quê?

Naara — O livro. Os sonhos tão me atrapalhando...

Heloísa — Naara, curte as férias. Esquece um pouco desses livros!

Heloísa vira-se para Naara

Antes de ser uma escritora, você é um ser humano.

Naara — Heloísa, olha pra estrada.

Heloísa volta a olhar pra frente

Heloísa — Não confia em mim, não?

Naara — Eu confiei no Jorge. Se ele me transformou numa corna, que que te custa me transformar num cadáver?

Heloísa freia bruscamente e para o carro no meio da estrada. Ela vira para Naara, com raiva

Heloísa — Eu não sou o Jorge. Para com essa mania de perseguição! Que saco!

Naara começa a chorar e nem ela sabe explicar o motivo

Heloísa — Sai dessa! Para com esse negócio!

Naara — Eu não tô bem, Heloísa...

Heloísa — Tô vendo! Por isso que eu tô te levando pra Angra. Naara, para de enlouquecer por causa de bobeira.

Naara — E você sabe como eu tô me sentindo?

Heloísa — EU QUERO ENTENDER, MAS VOCÊ NÃO FAZ NENHUM ESFORÇO PRA ME EXPLICAR!

Naara respira fundo e se acalma

Naara — Desculpa... Desculpa, desculpa, desculpa. Eu... Eu vou me recuperar. É só uma besteira. É drama, não é? É claro que é!

Heloísa — Calma. Não é que seja drama. Mas, independente do que seja, a melhor forma de resolver é saindo um pouco de casa, mudando a rotina. Cara, vamo se divertir, conhecer gente nova!

Naara — É. Vambora!

Heloísa dá a partida no carro e elas seguem rumo à Angra

Naara (narração) — O que dizer sobre Angra?

[Passagem de Tempo]

Cena 45 — Praia de Lopes Mendes, Angra dos Reis (Tarde)

Naara e Heloísa correm até a água, molham os pés e voltam pra areia, rindo

Naara (narração) — Angra é uma cidade linda...

Cena 46 — Bica da Carioca, Angra dos Reis (Tarde)

Naara posa em frente ao monumento da Bica da Carioca e Heloísa está com uma câmera fotográfica para tirar sua foto. Ela se agacha, apoiando a câmera em um joelho

Heloísa — Diga "galalau de porra"!

Naara — Quê?

Naara começa a rir e Heloísa tira sua foto

Naara (narração) — Tem muita coisa pra fazer...

Cena 47 — Restaurante do Hotel, Angra dos Reis (Noite)

Naara e Heloísa comem e conversam

Naara (narração) — E restaurantes chiquérrimos...

Cena 48 — Rodoviária, Carro de Heloísa (Manhã)

Heloísa e Naara estão no carro. Dessa vez, Naara está no banco do carona. As duas estão ouvindo música no rádio

Naara e Heloísa (cantando) — "DEIXA, DEIXA, DEIXA EU DIZER O QUE PENSO DESSA VIDA. PRECISO DEMAIS DESABAFAR."

Naara (narração) — Ruim mesmo foi ter que me despedir de lá...

(5 DIAS DEPOIS)
06 DE MARÇO DE 2018

Cena 49 — Consultório de Bárbara, Sala de consultas (Tarde)

Naara e Jorge sentam no sofá e Bárbara em sua cadeira

Naara (narração) — E aqui estou eu, na minha vida normal, novamente

Bárbara — Como estamos?

Naara — Muito bem.

Jorge — Eu já diria que nós somos amigos.

Naara — Eu também!

Bárbara — Muito bem. E o caso da mãe, como foi resolvido?

Naara — Bem...

Jorge — Eu descobri que minha mãe não é quem eu pensava que ela era. Desculpa por isso, Naara...

Naara — Que isso, você já pediu desculpas três vezes. Fica tranquilo.

Bárbara — Então... Os calendários, por favor?

Naara e Jorge entregam seus calendários, totalmente verdes. Bárbara os analisa e a alegria toma conta de seu rosto

Bárbara — Que progresso! Acho que nem precisaremos de uma próxima sessão. Vocês saíram melhores daqui do que saíram do altar, eu imagino...

Naara — É. No final, a verdade nem dói tanto assim.

Bárbara — Bem. Mais alguma coisa que vocês queiram comentar?

Naara — Por mim, nada.

Jorge — Eu só queria anunciar que vocês duas estão convidadas pro meu casamento com a Felícia, mês que vem. Menos de um mês, na verdade. Dia primeiro de Abril, na Igreja da Penha, às oito da noite.

Naara se choca com a notícia. Pensamentos e vozes rondam sua cabeça.

Bárbara — Estarei lá.

Jorge — E você, Naara?

Naara começa a ouvir vozes, que se intensificam. Se intensificam. Ao olhar para um canto do consultório, novamente ela vê a imagem de Claude. Ela toma um susto e começa a lacrimejar. Ela está fora de si. Jorge e Bárbara estão tentando colocá-la em si, chamando seu nome, mas ela não responde. Ela está paralisada

Bárbara — Naara, você está bem?

Naara hiperventila e começa a chorar

Naara — Não.

Jorge vai pegar os remédios de Naara na bolsa dela

Jorge — Lexapro, cadê?

Bárbara cutuca Naara para tentar fazer a escritora recobrar sua consciência, mas nada adianta

Bárbara — Naara?

Naara — NÃO!

Cena 50 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara vara a madrugada escrevendo a segunda parte de Luzes da Cidade

Naara (narração) — Como ninguém percebeu a minha degradação moral? Será que o meu talento tem mais importância que a minha saúde mental?

(DIA SEGUINTE)
07 DE MARÇO DE 2018

Cena 51 — Empresa da Editora Via Láctea, Escritório de Clarice (Manhã)

Naara, morrendo de sono, corre com as páginas na mão para dar seu livro para Clarice avaliar. Ao ver que ela não está lá, coloca tudo num envelope e manda para aprovar, sem ninguém ver

Naara — São menos páginas. Vão publicar mais rápido que o primeiro...

(3 DIAS DEPOIS)
10 DE MARÇO DE 2018

Cena 52 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor (Tarde)

Naara e Heloísa estão sentadas no sofá. Heloísa está no Tinder, e Naara está no notebook. Naara se choca com a crítica negativa que seu livro recebeu. Heloísa vai consolar a amiga

Heloísa — Fica calma. Isso é normal. Tem sempre um chato que reclama de tudo.

Naara — Não, Heloísa. Essa é a sexta crítica negativa que eu leio. A Clarice também já me ligou, me deu a maior bronca. Nem meus pais gostaram! O livro foi um fracasso!

Naara começa a chorar no ombro de Heloísa

Heloísa — Amiga, sem querer piorar o clima... Mas quando você me disse que o seu protagonista tava atrapalhando a sua escrita, eu não pensei que era tanto.

Naara — V-você também não gostou, né?

Heloísa — Ah... Não é de todo ruim... Tá bem escrito, e tal. Mas... Não tem trama, não tem clímax, não tem emoção, não tem nada do que você costuma colocar nos seus livros. Não é um livro, sabe? Mas acho que o povo tá mais revoltado porque eles colocaram muita expectativa no livro, entende?

Naara — Eu sou um fracasso...

Naara debulha-se em lágrimas

Heloísa — Que isso, amiga. Todo mundo tem um fracasso na carreira. Mas e os seus sucessos...?

Naara — Não é só disso que eu tô falando. Minha vida tá toda uma merda. Meu ex-marido vai casar...

Heloísa — É, eu soube...

Naara — Eu tô sendo uma péssima mãe pro meu filho... Minha carreira tá acabada. E eu tô vendo um espírito, ou sei lá que porra é essa, desse homem, que eu tô perdidamente apaixonada, e que eu nunca vou poder ter pra mim, porque ele não existe. EU TÔ COM UMA OBSESSÃO, HELOÍSA!

Heloísa — Calma, amiga...

Naara — Que mané calma, Heloísa? Não adianta nada ter calma. Nada dá pra resolver! Eu não aguento mais...

Naara levanta do sofá, vai até seu quarto, entra lá e bate forte a porta

Heloísa — Naara!

Cena 53 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Tarde)

Naara entra chorando em seu quarto. Ela vê um copo d'água em cima de seu criado mudo, abre as gavetas do mesmo e vê vários remédios

Naara (narração) — Eu tinha tomado minha decisão. Era a hora. Eu precisava me libertar...

Naara — ... de mim mesma... Pra sempre...

Naara pega os remédios, destaca vários deles, os põe na mão, pega o copo d'água e senta no chão, encostada na parede. Ela olha pros dois e chora copiosamente. Heloísa entra no quarto e vê toda aquela cena

Heloísa — NAARA!!!

Naara — Me deixa, Heloísa...

Heloísa — Posso até deixar, mas antes, você vai me ouvir! Você não é a minha Naara. Você destruiu a minha Naara! Então pelo menos, o mínimo o que eu posso fazer é impedir que você se destrua.

Heloísa se agacha e chacoalha Naara, que fecha a mão para os remédios não caírem

Heloísa — Eu não entendo o teu problema. Eu sei que você tem um, dos grandes! Dos enormes! Mas ele NÃO É MAIOR DO QUE VOCÊ! Você não pode dar uma solução definitiva pra um problema temporário. Porque você NÃO TEM COMO VOLTAR ATRÁS, PORRA!

Naara começa a chorar

Naara — Mas...

Heloísa — MAS NADA! VOCÊ TÁ DOENTE! PROCURA AJUDA... Você tá se matando por causa dos outros. Os outros não merecem esse peso! E você não tem que fazer isso por NINGUÉM. Para!!! Foda-se o que os outros pensam de você. Eu não gosto de você porque você é a escritora Naara. Eu gosto de você porque você é a pessoa Naara! Então, eu não tô nem aí se você é inteligente, se você é burra, se sua profissão é x, y ou z. Eu amo aquilo que eu SEI que você é! Como todas as qualidades e defeitos. Então PARA DE VIVER TENTANDO SE PROVAR PROS OUTROS. Se os outros acham que você é o cocô do cavalo do bandido não importa, se você se acha incrível! Se você acha que é um lixo realmente, pode se matar, eu prometo que vou no teu enterro, sua desgraçada! Mas se você ainda tem um pingo de coerência e sabe da pessoa MARAVILHOSA que você é, então, vai lá pra sala, me dá um abraço apertado, e PROCURA AJUDA, pelo amor de Deus. Você VALE essa ajuda! Só te peço isso: seja o que for que você queira fazer ou vá fazer, faz pensando em VOCÊ. POR VOCÊ. Ninguém quer ter a culpa do seu fim trágico.

Heloísa, chorando, dá um beijo na testa de Naara e sai do quarto

Naara (narração) — Palavras fortes como essas eu nunca ouvi na vida. Não sabia se ela estava certa ou errada. Eu tava imersa demais nos meus pensamentos.

Naara olha pros comprimidos e os aproxima de sua boca

Naara (narração) — Eu aproximei os comprimidos da minha boca, aos poucos, com muitas lágrimas nos olhos, trêmula, e por fim, os tom-...

Naara — NÃO!!!

Naara (narração) — Hã?

Naara joga os comprimidos na parede, com força, e bebe apenas a água. Depois, ela respira fundo, se levanta

Naara (narração) — Não, não, não. Mas tava no script que...

Naara — A minha liberdade é VIVER! HELOÍSA!!!

Naara sai do quarto

Cena 54 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor

Heloísa está sentada no sofá, muito magoada. Naara vai até a amiga e abraça muito forte

Naara — Obrigada.

Heloísa — Eu sabia que você ia conseguir. Você quebra paradigmas.

Naara — Você me salvou!!!

Heloísa — Não. Você se salvou!

Naara solta-se do abraço

Naara — E quer saber mais? Chega de chorar, chega de sofrer! Eu vou dar a volta por cima.

Heloísa — Mas não sozinha... Você vai precisar de uma psicóloga. Minha mãe...

Naara — Dona Abigail? Você não fala com ela há meses!

Heloísa — Tem sacrifícios que nós podemos fazer por quem a gente ama!

Heloísa liga para a mãe

Heloísa — Alô?

Abigail (voz) — Heloísa?

(DIA SEGUINTE)
11 DE MARÇO DE 2018

Cena 55 — Consultório de Abigail, Sala de consultas

Naara deita no divã para esperar a chegada de Abigail e observa cada detalhe da sala. Tempos depois, Abigail chega e se senta

Abigail — Quanto tempo, né, Naara?

Naara — É... E como você vai?

Abigail — Eu vou indo, como a humanidade toda vai. E você?

Naara — Bem eu não tô. Por isso que eu vim aqui.

Abigail — Que pergunta, né?

Abigail e Naara riem

Abigail — Mas me conta, e a Heloísa? Eu não falo com ela tem muito tempo, e eu não tenho notícias dela.

Naara — Ah, ela tá bem. Ela fez uma prova pra uma firma lá em Angra dos Reis. Se ela passar, ela vai morar lá.

Abigail — Ah. Ela não me conta nada, parece que me excluiu da vida dela. Mas enfim... Estamos aqui pra lidar com os seus problemas, não com os meus.

Naara — Se ao menos eu soubesse lidar com os meus problemas...

Abigail — Eu tô aqui pra te ensinar. Tô ou não tô?

Naara — Tá!

Abigail — Então, me conta. Como começou tudo isso?

Naara — Eu sou escritora, isso eu acho que você já sabe...

Abigail — Não, não sabia! Que legal!

Naara — Realmente, a gente não se vê tem muito tempo... Voltando ao assunto, eu sou escritora e eu sou muito reconhecida por isso, sabe? E eu trabalho muito, me dedico à profissão e tudo mais... E isso acabou com o meu casamento. Eu peguei meu marido me traindo com outra na minha própria cama.

Abigail — Que horror! Você e o Jorge se separaram, nunca que eu ia imaginar!

Naara — É, pois é. Enfim... Eu acabei, com a terapia, fazendo as pazes com ele, e com a amante também, e tudo mais, até amigos nós viramos. Mas, mexeu muito comigo quando eu descobri que ele vai casar com essa mulher. E tem mais... Eu comecei tem um mês, ou menos, não sei, uma trilogia, que só tem dois livros por enquanto. E eu criei um protagonista, que ele é tão perfeito, tão perfeito. Ai, ele é tudo que eu sempre quis num homem. E meu objetivo era fazer com que os mocinhos não ficassem juntos no final, por conta dessa questão do meu casamento, pra mostrar que qualidade não é tudo num relacionamento, e tal... Cê tá conseguindo acompanhar?

Abigail — Tô, tô sim.

Abigail anota coisas numa prancheta

Naara — Vai ficar uma loucura a partir de agora... Eu não consigo separar o casal protagonista. Não consigo escrever tudo o que eu quero. Porque eu... Eu... Eu...

Abigail — Porque eu...?

Naara — Porque eu tô perdidamente apaixonada pelo meu personagem. E eu sonho com ele, e eu vejo ele por aí, e ele tá me fazendo muito mal. Ai, desculpa fazer você perder seu tempo com uma loucura dessas, Dona Abigail.

Abigail — Até agora, completamente normal pra mim. Já lidei com vários casos parecidos. Naara, você tem depressão, tem um monte de coisas. Você já é uma pessoa mais frágil. Eu recomendo que você continue seu tratamento. Essa fragilidade agrava o seu caso. Você ainda não superou o Jorge como queria, certo?

Naara — Mas não importa, eu tenho que superar. Ele tá procurando a felicidade...

Abigail — Não foi isso que eu te perguntei. Pode admitir, Naara. Dê um passo atrás agora pra dar dez à frente depois. Você superou o Jorge?

Naara — Não... Eu ainda amo ele. E também amo o Claude. Claude, meu personagem...

Abigail — Você não estava mal antes de descobrir do noivado dele, porque você achou que poderia tê-lo de novo quando quisesse, posso dizer assim?

Naara tira seus óculos, coça os olhos e põe os óculos de novo

Naara — Nada de chorar dessa vez.

Abigail — Eu sei que tristeza é ruim, mas não se reprima. Se não der pra aguentar, não aguente.

Naara — Mas eu vou aguentar, eu vou fazer isso por mim mesma.

Abigail — Não ponha tanta expectativa nas suas costas. Naara, você não é muito diferente de um adolescente, por exemplo.

Naara — Hã?

Abigail — Você quer aquilo que não pode ter. O Jorge está com alguém, agora. Ele ama essa pessoa. Ele pode te amar também, mas como amiga. Você não vai ter ele pra você a hora que você quiser. E não adianta se iludir! Segue em frente. Continuar estagnada só vai te machucar. E sobre o seu protagonista aí, desse seu livro, é uma fuga. Uma fuga da realidade que não deu certo. Não deu certo porque não se pode fugir da realidade. Você quis criar um personagem que você pode ter. Só que você não pode. Você é real, carne, osso. Ele é um personagem, fictício. Tá na ponta do seus dedos e nos impulsos do seu cérebro. Então, novamente, segue em frente. Escreve o final do livro, e separa o casal principal, como você tinha que fazer desde o início.

Naara — Eu não consigo. Novamente, se eu separar e colocar ele com outra pessoa, vai me lembrar o Jorge casando com outra mulher.

Abigail — Então mata ele! Tira ele de dentro de você! E de fora, e de onde mais for! Lembra, Naara. Você escreve, você pode fazer qualquer coisa que quiser. Você é livre pra voar. Você tem o mundo em suas mãos. Então suja essas mãos de sangue. Pode doer no começo, mas só assim você vai seguir em frente e voltar a ser feliz. Ele é só fruto da sua imaginação. Ele é você. Isso que você tá amando é você mesma! Você se basta!

Naara — Então, eu me amo?

Naara abre um sorriso

Abigail — Tecnicamente, sim. Você ama uma idealização que você foi capaz de criar. Ou seja, você ama uma versão, uma ideia sua, mais, digamos "perfeita". Só que pelas sessões, a gente vai ver que, você não precisa ser perfeita, e nem precisa. Você precisa se amar como você é e como você é capaz de ser.

Naara — Mas matar o personagem não pode causar rejeição? Eu não posso arrumar mais problemas pra editora, nem nada...

Abigail — Você prioriza mais seu talento e sua carreira ou sua saúde mental?

Naara abre um sorriso do tamanho do mundo e se emociona. Essa era a pergunta que sempre quis que fizessem pra ela

Naara — Saúde mental!

Abigail — Então pouco importa o que as pessoas pensam ou vão deixar de pensar.

Naara levanta do divã e abraça Abigail

Cena 56 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Noite)

Naara escreve o último livro da trilogia Luzes da Cidade. Ela está devorando o livro, escrevendo incansavelmente, e dessa vez, usando a razão

Naara (narração) — Eu fiz o que foi preciso fazer... Matei o Claude... Logo no meio do livro. Criei todo um mistério sobre seu assassino. Mas foi muito bom. Nunca mais eu fui perturbada por ele...

Cena 57 — Jardim Mágico, Sonho de Naara (Noite)

Naara crava uma espada no peito de Claude, o matando

Naara (narração) — Essa foi a última vez que eu sonhei com ele. Parece perturbador, mas quando eu acordei do sonho aquela noite, eu chorei de alívio.

(2 DIAS DEPOIS)
13 DE MARÇO DE 2018

Cena 58 — Casa da Família Reis, Sala de estar e corredor

Naara está com Chico no colo, na frente do bolo, em cima da mesa de centro. Em volta está Dinorah, Sebastião, Mayara, Heloísa, Jorge, Felícia, Bárbara e Abigail, cantando "Parabéns pra Você"

Naara (narração) — Meu aniversário foi dois dias depois. Dia 13 de Março. 33 anos.

Dinorah — A Clarice não vem, Naara?

Naara — Não. Digamos que ela ainda não tenha me perdoado pelo segundo livro. Mas o final vai me compensar...

Heloísa cutuca Naara, com o celular na mão

Heloísa — Saiu o resultado do concurso.

Naara — E aí?

Heloísa — Uma notícia boa e uma ruim. A boa primeiro!

Naara — Conta!

Heloísa — Tirei 9 na prova!

Naara se alegra

Naara — Amigaaa, parabéns!

Naara abraça Heloísa

Heloísa — A nota de corte foi 9,5...

Naara se desanima

Naara — Poxa, amiga!

Naara dá outro abraço em Heloísa

Naara — Valeu a tentativa.

Heloísa — Ô, se valeu! Aquela firma, Pereira e Moreira, que a gente foi, tem um mês. A que o advogado do Jorge trabalha. Então! Me contratou quando viu meu desempenho!

Naara e Heloísa gritam de felicidade e se abraçam muito forte

Heloísa — Eu não vou nem precisar mudar! Eu tô muito fora de mim!

(4 DIAS DEPOIS)
17 DE MARÇO DE 2018

Cena 59 — Empresa da Editora Via Láctea, Escritório de Clarice (Tarde)

Naara entrega os capítulos para Clarice, que os analisa, e os acha razoáveis

Clarice — Acho que dá pra passar. Mas se for fracasso, Naara, eu prometo, vai ficar ruim pra você aqui nessa editora...

Naara — Nem se preocupe com isso. Eu estou me desligando da Editora após o lançamento do fim da minha saga. Não preciso de pressão em cima de mim, a minha vida já tá muito cheia.

Clarice — O quê?

Naara sai do escritório de Clarice, em câmera lenta. Clarice se choca com a atitude de Naara

Clarice — Insolente!

Clarice senta em sua cadeira e organiza a bagunça em sua escrivaninha

Clarice — Pior que ela vai fazer uma falta aqui...

Naara (narração) — Eu sei!

(DIA SEGUINTE)
18 DE MARÇO DE 2018

Cena 60 — Consultório de Abigail, Sala de consultas (Tarde)

Naara e Abigail conversam

Naara (narração) — Eu continuei indo à psicóloga. Eu procurei tratar depressão, TOC, tudo pra que eu não precisasse ficar me entupindo de remédio. E virei uma mãe muito melhor pro meu filho!

(DIA SEGUINTE)
19 DE MARÇO DE 2018

Cena 61 — Floresta da Tijuca (Noite)

Heloísa está com o celular na mão, com o Tinder aberto, e olhando para todos os lugares. Ela marcou um encontro com um rapaz na Floresta da Tijuca

Heloísa — Sorte que eu tomei a vacina da Febre Amarela...

Naara (narração) — Infelizmente, eu não posso dizer que tudo acabou totalmente bem pra todo mundo. Nós mulheres ainda temos muito o que enfrentar pra chegar lá...

Heloísa é abordada por um homem misterioso, que passa a mão em seu corpo, e tira sua roupa à força. Heloísa tenta resistir e leva vários socos. Ela é estuprada por esse homem, e berra de dor. Deixada ao alento, Heloísa chora, nua, no meio do parque

(13 DIAS DEPOIS)
01 DE ABRIL DE 2018

Cena 62 — Igreja da Penha, Sala de missas (Tarde)

Jorge e Felícia trocam os votos

Felícia — Eu prometo te amar na saúde e na tristeza, na alegria e na doença, por todos os dias da minha vida. Até que o divórcio nos separe.

Todos na igreja riem, Felícia olha para os convidados

Felícia — Gente, por que vocês tão rindo?

Jorge vira a cabeça de Felícia para ele. Seus olhos se encontram e eles se beijam

Jorge — Eu te amo.

Felícia — Eu também te amo.

Todos na igreja aplaudem, Carmencita lacrimeja de emoção

Cena 63 — Igreja da Penha, Escadaria (Tarde)

Todos os convidados descem as escadas. Naara e Mayara vão conversando

Mayara — Naara, falei com o pai de uma amiga e ele conseguiu um negócio lá pra mim expor meus desenhos numa galeria amadora!

Naara — "Pra eu expor", Mayara. E parabéns, sua irmã tá muito orgulhosa de você!

Naara faz um cafuné na cabeça de Mayara enquanto as duas descem. Heloísa desce logo perto, com um olhar ressentido e a mão na barriga. Descobriu que está grávida recentemente

Naara (narração) — A Heloísa engravidou. Não sei por que não quis tirar. Mas não quis...

Abigail apressa a descida e dá a mão para Heloísa. As duas se olham

Naara (narração) — Pelo menos essa tragédia toda serviu pra aproximar mãe e filha novamente!

Abigail — Eu vou te ajudar a criar essa criança.

Heloísa sorri para a mãe, ao continuar descendo, olha para baixo, com um olhar e uma intenção vingativa

Naara (narração) — Mulheres de verdade não deixam barato coisas como essa...

(1 SEMANA DEPOIS)
08 DE ABRIL DE 2018

Cena 64 — Casa da Família Reis, Quarto de Naara (Manhã)

Naara escreve no computador, dessa vez, a sua história

Naara (narração) — O último livro foi um fracasso de vendagem, mas conseguiu uma recepção crítica maravilhosa. Cheguei a ler que foi o melhor livro que a pessoa tinha lido na vida, acredita? Ah, e mesmo que não fosse! Minha vida mudou depois desse livro...

Naara termina sua nova história, se prepara para imprimir e checa o desenho de Mayara

Naara — Como estamos indo?

Mayara — Quase acabando!

Naara — MÃE, JÁ TERMINOU DE BORDAR A CAPA DURA?

Dinorah (voz) — AINDA NÃO!!!

Naara — BELEZA! QUANDO ACABAR ME FALA!

Naara (narração) — E quanto a mim? Eu montei minha própria editora. Minha mãe, meu pai e a Mayara me ajudam, com design, com tudo o que não é minha área. Eu estou muito feliz. Posso cuidar melhor do meu filho!

Sebastião entra no quarto com Chico no colo e o dá para Naara, que beija o filho e o aninha

Naara (narração) — Por isso eu digo, mulheres...

(1 SEMANA DEPOIS)
15 DE ABRIL DE 2018

Cena 65 — Colégio Pedro II São Cristóvão, Teatro Mário Lago (Noite)

Naara está na cena final da peça de teatro feito a partir de sua recente história. Nela, ela dá uma pequena palestra. Um monólogo, que ao mesmo tempo é um diálogo com a plateia

Naara — ... Não tenham medo de correr atrás daquilo que vocês querem. Ou melhor, tenham. Mas corram atrás mesmo assim. O que faz de nós fortes não é a falta de medo. É a capacidade de enfrentá-los. Escrevam as suas histórias, do mesmo jeito que eu escrevi a minha. E reescrevi, e re-reescrevi. Porque vocês, nós, mulheres, temos o mundo nas mãos. Conquistamos direito ao voto, direito ao divórcio, Lei Maria da Penha, do Feminicídio, Carolina Dieckman. E ainda temos um monte pra conquistar. Igualdade de salários! Precisamos escrever mais, calejar nossas mãos, pra escrever uma história gloriosa de mulheres. Mulheres como eu, que preferiram focar na família. Mulheres como fulana, que preferiram focar na profissão, na carreira, na ascensão social. Mulheres como ciclana, que preferiram estudar, focar nos estudos e acumular experiências de vida pra passar adiante, ou não! Mulheres como Marielle Franco, que lutaram todos os dias pra ter voz ativa na sociedade, que morreram tentando melhorar o mundo! Mulheres como beltrana, que querem simplesmente curtir a vida e ser feliz, porque SIM, nós temos direito à felicidade! E mulheres como vocês, mulheres, que são mulheres de verdade! VIVA AS MULHERES!!!!

Naara é aplaudida de pé e a cortina fecha

FIM



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