O
despertador tocou às sete horas. Estridente e persistente não
parava de cantar uma música aguda. Cíntia segurou o celular e no
automático desligou com o dedão. Precisava levantar, enfim. Jogou o
corpo para o lado da cama, buscou apoio no colchão, mas a gordura
acumulada na barriga não lhe deixou sentar. Virou-se ainda mais, se
aproximando da beirada e colocou as pernas para fora da cama.
Levantou, com muito esforço.
Passou
alguns segundos olhando para o pôster de Artur Alessandro que estava
na parede em frente à cama. No mesmo instante, arrumou os cabelos
assanhados na cabeça. Não podia ficar mal arrumada diante do seu
amado. Foi até o pôster e deu um beijinho no sorriso iluminado do
galã.
— Bom
dia, meu deus grego —
sussurrou.
Tomou
um banho rápido, café também rápido. Precisava estar na delegacia
às oito.
Tudo
o que ela queria era ter um dia calmo. Sentar na sua poltrona
acolchoada, registrar seus boletins de ocorrência, formalizar algum
inquérito, digitar um depoimento. E assim, desejou que fosse, mas
ledo engano, o dia foi permeado de ocorrências. Muito movimento. Um
ônibus inteiro havia sido assaltado. Dezesseis boletins registrados.
Uma grávida que vomitou em cima da sua mesa. E a merda de um
policial que lhe passou a mão na bunda. Estava a ponto de ter um
colapso.
Às
dezoito e quinze, Cintia ainda estava finalizando o registro do
último processo. Saiu às pressas para não perder o horário. Ela
tinha um encontro marcado às dezenove horas e não podia atrasar.
Ao
chegar em seu apartamento, correu até a cozinha e organizou a mesa
de jantar. Os pratos de porcelana, taças de cristal e os talheres de
alumínio. Um vinho tinto, e velas brancas para decoração.
Na
sala de estar, onde iria acontecer o primeiro contato, Cintia jogou
pétalas de rosas. Passou um pano úmido na Tv e organizou no sofá a
almofada com a foto de Artur Alessandro.
Estava
quase tudo pronto. Precisava tomar banho com óleo e essências.
Correu para o banheiro. Não tinha muito tempo, mas precisava ficar
cheirosa. Banhou-se com pressa. E no final, secou os cabelos na
toalha.
Ainda
parou diante da penteadeira para passar um batom rosa. Borrifou um
perfume doce sobre si e deu um sorriso amarelo. Vestiu a camisola de
seda vermelha e se sentiu pronta para mais uma noite de amor.
Antes
de ligar a TV, o celular tocou. Sentiu que não era coisa boa. Com o
telefone em mãos, observou que sua irmã lhe perturbava no seu
horário sagrado com Artur Alessandro. Atendeu de mau gosto.
— Oi
Tina, tudo bem? —
perguntou
Cintia, mais por obrigação do que por interesse genuíno.
— Tá
tudo ótimo sim. E vai ficar melhor quando eu chegar aí levando
pizza —
comemorou
Cristina, com uma energia na voz que Cíntia não tinha em si.
— Não!
Não dá! —
cortou
seca.
— Não
faz isso, Cíntia. Tô no caminho. Preciso conversar contigo.
— O
Alessandro tá em casa. Nós vamos fazer um jantar romântico.
— De
novo? Toda vez que eu quero ir aí, vocês estão comemorando algo ou
fazendo um jantar romântico. Eu vou aí e quero conhecer esse seu
namorado misterioso —
decretou
a irmã.
— Não
você não vai vir!
— Abre
a porta. Já tô aqui —
gritou
Cristina.
Cíntia
correu até a janela da sala e viu o perfil da irmã do outro lado da
porta. Que saco! Não podia acreditar nisso.
— Não
posso abrir! Eu tenho compromisso e não posso desmarcar. Você
precisa voltar, Cristina!
— Abre
logo essa porta! —
insistiu.
— Não!
Vai embora agora!
— Se
você não abrir eu vou arrombar!
Cíntia
abriu a porta em um rompante. Cristina olhou para a irmã, mas seus
olhos não refletiam surpresa ou alegria, mas sim, puro horror, pois
diante de si, Cíntia estava com as mãos estendidas segurando uma
arma em cima da sua testa.
— Dá
meia volta com a droga da sua pizza —
Cíntia
disse, com uma raiva contida, que transbordava entre os dentes
trincados.
—
Eu...eu...volto
outro dia, então.
Cíntia
trancou a porta com força. Guardou a arma na escrivaninha e com
muita calma, encheu sua xícara com vinho. Sentou-se no sofá, pronta
para ver o seu amado.
Agora
era somente ela e Artur Alessandro. Olhou para a xícara com a foto
do ator e beijou-lhe a face.
— Eu
amo você.
Era
o penúltimo episódio de Coisas do Amor, e Cíntia se derramava em
lágrimas vendo Artur carregar uma loira pela floresta. Ela desejava
com todas as forças ser aquela atriz, mas se conformava em imaginar
aquele homem sarado lhe carregando com seus músculos rígidos.
Quando
Cintia acordou no dia seguinte, o despertador ainda não tinha
disparado. Pensou na irmã e em como foi insensível com ela. Quis
ligar e pedir desculpas, mas preferiu falar pessoalmente, tudo o que
fizera precisava de um bom diálogo.
Tomou
um banho rápido e seguiu para o décimo terceiro distrito de
policial. Ficou surpresa quando viu a calçada do DP coberta de
jornalistas e câmeras. Eles faziam manchetes e noticiavam algo com
muita excitação. Aquilo não era normal.
Cintia
teve que dar a volta no prédio e entrar pela porta dos fundos.
Atravessou o quintal onde ficavam as viaturas e penetrou no edifício
que também estava borbulhando de homens de terno preto. Percebeu que
se tratava de advogados e buscou se esconder o mais rápido que podia
em sua sala.
A
escrivã Bruna Carla estava sentada no canto da sala. Parecia ter um
grande peso na cabeça, pois suas mãos mal conseguiam segurá-la.
Cíntia foi ao seu encontro.
— O
que tá acontecendo aqui? Prenderam o presidente? —
perguntou
Cíntia.
— Já
vi que você não lê jornal pela manhã - respondeu Bruna, com tédio
na voz.
— Não
gosto de sofrer pela manhã. Mas, conta! O que houve?
— Prenderam
um famoso aí. Acusado de estupro de vulnerável e agressão à
mulher. Tá passando em todos os canais, é só ligar a tv.
— Quem
será?
— Não
sei, não. Só sei que esse aí não vai ter fama nunca mais. Tem
vídeo dele molestando a criança e depois espancando a mulher. É um
negócio nojento de se ver.
— Nossa
que triste.
Cíntia
pegou o celular e buscou pesquisar sobre um famoso que molestou uma
criança e agrediu a esposa. Tomou um susto quando viu a foto do
homem. Não conseguiu segurar o celular na sua mão.
— Nao
pode ser! É mentira! —
gritou
Cíntia.
Bruna
a observou de canto de olho.
— Você
sabe quem é? —
perguntou
Bruna.
— Ele
é o meu… Cíntia gaguejou.
— O
seu o quê?
— Deixa
pra lá.
Cíntia
não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Foi até a um
segundo policial e confirmou que quem estava detido, justamente no
seu distrito, era o amor de sua vida, Artur Alessandro. Sonho ou
pesadelo? Ela tinha que conferir com os próprios olhos.
Saiu
pontualmente às dezoito e seu único destino era sua casa. Ao chegar
na porta do apartamento deu de cara com sua irmã, loira, suada, com
roupa de academia, uma bolsa cheia de alters e suplementos.
—
Precisamos
conversar — decretou Cristina.
Cíntia
virou a chave na fechadura, e em um silêncio constrangedor apontou
com a cabeça a entrada para sua irmã.
— Espero
que aquilo não aconteça nunca mais. Você não pode apontar a merda
de uma arma para mim e achar que vai ficar tudo normal. Você não
pode mais fazer isso, tá ouvindo Cíntia! - gritou Cristina,
histérica.
— Fala
baixo.
— Você
tá bem?
— Na
verdade, não — respondeu Cíntia. Sem demora ela ligou a tv da
cozinha e se deparou com a mesma notícia. Artur Alessandro:
molestador e espancador.
— Isso
só pode ser brincadeira — reclamou Cíntia.
— Esse
bandido merece ser executado.
— Não
fale assim dele. O Artur não faria isso. Eu conheço ele.
— Conhece?
Da onde?
— Não
interessa — desconversou.
Cristina
segurou a irmã pelos braços.
— Preciso
saber que você tá bem.
— Eu
tenho que ficar bem, Cristina. Agora me solta e volta pra sua
academia. Vai ser magra e esbelta — disse Cíntia, com um sorriso
sarcástico.
Depois
que sua irmã saiu, Cíntia teve a notícia mais trágica do dia: a
série estrelada por Artur Alessandro fora cancelada.
No
dia seguinte, a delegacia ainda estava borbulhando de repórteres.
Cíntia teve que entrar novamente pelos fundos, mas dessa vez, na ala
que ficava as celas de detenção.
Se
aproximou da cela que Artur Alessandro se encontrava e observou-lhe
conversando com os advogados. Ele parecia ainda mais bonito de
perto.
Cínta
encostou-se à parede e suas pernas começaram a tremer. Precisou
sentar-se para não cair.
— Ai
como ele é lindo. É todo meu! — disse suspirando.
Quando
os advogados se retiraram, Cíntia se aproximou, como quem não quer
nada. Ela fixou os olhos no homem e suspirou em um sonho lúcido.
Percebeu, quando o ator cuspiu e abanou-se com calor.
— Posso
te trazer um copo com água? — ela perguntou quase a balbuciar.
Ele
lhe lançou um olhar desconfiado. Surpreso. Ficou em silêncio por
alguns segundos e parecia refletir naquela pergunta.
— É
claro — disse por fim.
Cíntia
apressou o passo até o bebedouro. Encheu dois copos com água e
voltou para a cela. Não havia ninguém no corredor, a não ser mais
dois detentos que observavam a cena em silêncio.
— Você
está sendo bem tratado aqui? — ela perguntou, passando os copos
através das grades.
— Até
o momento, sim.
Ela
não pode deixar de notar as veias pulsando nos dedos do amado. O
músculo do antebraço rígido e os pelos que cobriam todo o braço.
Um arrepio subiu-lhe os cabelos da nuca.
Ela
não podia deixar passar a oportunidade e ao entregar os copos, roçou
sua mão no braço do garanhão. Um calor subiu por entre o ventre e
estremeceu seu coração.
Artur
Alessandro percebeu o toque e o olhar apaixonado de Cíntia.
— Você
deve me conhecer, né? — ele perguntou com uma voz grave e
profunda.
Ela
sorriu sem graça.
— Eu
devo ser a sua fã número um. Te acompanho desde Mulheres
Enlouquecidas. Você salvou a minha vida. Eu te agradeço todos os
dias por existir. Eu não sei o que seria da minha vida sem você —
ela disse, tremendo e segurando as barras com as duas mãos.
— Ahh,
então, você é minha fã!
— Ai
me desculpe. Eu perdi a noção. Eu simplesmente tinha que me
declarar pra você. Precisava. Juro de coração.
— Mas
você não viu os noticiários. As mentiras que maquinaram contra
mim?
— Sim,
eu vi. Eles são loucos. Perturbados. Meu Deus quem em sã
consciência abusaria da própria enteada?
— Você
conhece a protagonista que faz par romântico comigo? Foi ela que
armou tudo para me substituir da série. Nós nunca nos entendemos e
eu disse que aquele era o meu posto e que ninguém iria me derrubar.
Ela jurou na minha cara que iria me destruir. Iria destruir minha
reputação, minha honra e que iria me matar e me deixar vivo ao
mesmo tempo. Disse que iria me cancelar. Você acredita em mim?
— Claro
que acredito meu amor. Você sempre foi e será o meu homem. Que
sempre esteve ao meu lado. Você é o meu salvador. Sei que nunca
faria uma atrocidade dessas. E, aquela mocreia loira, ela vai pagar o
que fez com você. Essas loiras, magras e belas são as piores. Eu
tenho uma irmã que pertence à mesma classe. Mas, eu vou acabar com
isso — disse Cíntia segurando as mãos de Artur Alessandro.
Ele
percebeu o distintivo da polícia civil pendurado no pescoço dela.
— O
amor é só uma palavra, se não houver a ação. Você concorda
comigo? — ele perguntou. E ela concordou com a cabeça. — Por
isso quero te pedir algo. Preciso que me ajude!
— O
que você quiser eu faço.
— Você
precisa me tirar daqui.
— Mas…
- ela gaguejou.
— Sente
— ele disse, puxando a mão dela e encostando em seu peito sarado.
— Meu coração está apertado. Eu vou morrer se não sair daqui
hoje.
— Mas,
como assim?
— Eles
vão me transferir para a unidade prisional de Itaitinga. Lá, já
está tudo pronto para me estuprarem até a morte. Eles querem me ver
sangrar até não restar mais nada em mim. Querem sugar toda a minha
dignidade até na hora da morte.
— Isso
nao pode acontecer — ela falou, derramando lágrimas.
— Não
vai restar nada meu nesta terra. Todas as séries, filmes e novelas
que estrelei serão canceladas e queimadas. Ninguém irá lembrar da
minha existência.
— Não
posso permitir que isso ocorra.
— Então,
me tira daqui.
Quando
saiu da ala das celas, Cíntia refletia em como havia chegado até
aquele momento.
Ela
conseguia ver com nitidez, seu pai brincando aos sábados no jardim.
Eles se divertiam, enquanto a mãe observava pela janela, com muito
ódio no olhar. Ela detestava o carinho que o pai devotava à única
filha.
Até
que a Cristina nasceu.
Acabou-se
as brincadeiras. Cintia ficou de lado. Todo o mundo se curvava diante
daquela criança linda de olhos azuis. E Cíntia, com seus dez anos
de idade, começou a ganhar peso, e a ficar isolada de todos.
Quando
Cíntia fez vinte anos, o centro das atenções ainda era Cristina. A
irmã mais nova, mais bonita e mais inteligente. Tudo girava em torno
das competições que Cristina disputava, dos troféus que a garota
ganhava e do amor que os pais lhe davam.
Mas,
as coisas tornaram-se insuportáveis, quando vindo de uma competição
dessas que Cristina sempre participava, o pai capotou o carro, e
acabou falecendo.
Cíntia
culpou sua irmã, e nunca mais lhe perdoou.
Aos
trinta, Cíntia havia passado no concurso da polícia civil. Era uma
escrivã.
Casou-se
com um amigo de infância, que era preguiçoso e beberrão.
Engravidou
aos trinta e um. Mas abortou com quatro meses. Teve que extrair o
útero. Nunca mais poderia ter filhos.
No
leito do hospital, seu marido anunciou “Não quero mais essa vida.
Até mais”. E nunca mais voltou.
Foi
naquela noite, que assistindo a tv no leito do hospital, que Cíntia
viu Artur Alessandro pela primeira vez. Ele interpretava um
enfermeiro que cuidava de crianças e idosos. Em um diálogo
emocionante ele disse para uma das crianças “Não se preocupe. Eu
sempre estarei ao seu lado”. E Cíntia ouviu a voz de Deus dizendo
para ela que Artur era o homem da sua vida.
Foi
então que decidiu se reerguer. Foi ao shopping e comprou tudo que
tinha o nome e o rosto de Artur Alessandro. Assistiu às séries que
ele estrelou, mais de cinco vezes seguidas. E sonhou com ele durante
muitos e muitos dias. Aquele era o seu homem. O homem que sempre
estaria ao seu lado. E ninguém iria tirá-lo dela. Ninguém.
Entrou
na sala do delegado e deparou-se com três policiais conversando com
o chefe.
— Trouxe
café, Cíntia? — perguntou o delegado Borges, alisando o bigode
grisalho.
— Tô
preparando um bem quentinho — ela respondeu, baixando o olhar.
— O
que você quer aqui? A sala já é pequena e você ainda se mete de
entrar — disse, abrindo o braços e fazendo um desenho de uma bola
ao redor da cintura.
Os
outros três policiais não se contiveram e começaram a rir.
— Por
que vocês já vão transferir o Artur?
— Prisão
temporária, e esse cara merece ser feito de mulherzinha na cadeia,
né Cíntia? — brincou o delegado.
— Ele
não oferece nenhum risco à investigação. É réu primário e tem
domicilio fixo — argumentou.
— Ele
que vá pra puta que o pariu com seu domicílio. Eu quero é que
estuprador morra! Dá o fora daqui, sua baleia — gritou.
Cíntia
puxou a chave que estava sobre a mesa do delegado e saiu em
disparada. Os outros policiais correram imediatamente atrás dela.
— Pega
a gorda! — gritavam os policiais pelos corredores.
Ela
entrou na ala das celas e trancou a porta por dentro.
O
delegado se aproximou, e com força, batia na porta.
— Abre
isso agora, sua vadia gorda! O que você pensa que está fazendo? —
gritava pela janela de vidro que havia na porta.
Cíntia
respondeu mostrando o dedão do meio.
Se
aproximou da cela que prendia Alessandro e notou suas mãos
trêmulas.
— Isso
é loucura. Eu vou morrer por conta disso — ela afirmou, tremendo
as chaves em sua mão.
— Você
só tá mostrando o seu amor por mim, minha querida.
— Promete
que não vai me abandonar?
— Claro!
Claro que eu prometo. Agora abre essa cela antes que os policiais
notem o sumiço da chave.
— Mas,
eles já notaram. Eu peguei a chave na frente deles e saí correndo.
Alessandro
agarrou as barras, e esbravejando gritou: — Como você pode ser tão
burra, sua gorda imbecil?! Você deveria pegar a chave às escondidas
e não diante de todos! Como você conseguiu se tornar escrivã?!!
Ainda
segurando as chaves, Cíntia se afastou abraçando o corpo com seus
braços.
— Por
que você está agindo assim? Por que você está gritando comigo? Eu
te amo tanto! — ela gritava e chorava ao mesmo tempo.
— Eu
nunca vi ninguém ser tão idiota como você! Como eu posso sair
daqui, se você chamou a atenção dos policiais? Você não pensa?
— Ninguém
vai sair daqui. Nós vamos ficar juntos e você vai me amar como
sempre me amou.
— Eu
nunca te amei sua tonta. Você sempre esteve enganada — ele disse,
com ódio na voz.
Naquele
instante, um buraco se abriu e engoliu Cintia. Ela sentiu que entrou
em um turbilhão e se desequilibrou. Caiu e a chave foi parar na cela
à frente.
Um
homem magro, usando touca preta e cheio de tatuagens, levantou, deu
alguns passos, e se agachando, pegou as chaves. Deu um sorriso cheio
de maldade para Artur Alessandro.
O
ator deu alguns passos para trás e se jogou contra a parede. Em seu
rosto havia uma expressão de horror.
— É
hora da diversão — disse o detento de toca preta.
O
homem abriu a cela e se dirigiu à cela ao lado. Destrancou o portão,
libertando os outros dois detentos.
— Você
achou mesmo que iria fugir? — perguntou o de toca preta em direção
ao ator.
Os
outros dois homens se ajoelharam e tomaram as chaves da mão de
Cíntia, que ainda estava desacordada no meio do corredor.
— Não
precisamos partir para a violência. Eu posso recompensar vocês
financeiramente — clamou Artur, juntando as mãos em petição.
— Você
vai morrer e não temos acordo — sentenciou o toca preta.
Um
dos detentos abriu a cela, mas, no primeiro passo que deu dentro do
compartimento, foi surpreendido pelo cano de um trinta e oito que
roçou na sua nuca. Um único disparo e os miolos do homem explodiram
para todos os lados. Cíntia recarregou o revólver, e com uma mira
certeira, atirou no segundo detento. A bala perfurou o pescoço,
jogando o homem contra a parede. Ele morreu afogado em uma poça de
sangue.
O
detento da touca preta foi esperto. Entrou na cela de Artur
Alessandro e sacando uma gilete do bolso, encostou a lâmina no
pescoço do ator, fazendo-o refém.
— Aquieta
esse cano aí moça! — gritou o touca preta — Aquieta isso ai,
senão o seu grande amor aqui morre.
Cíntia
mirava o revólver na cabeça do vagabundo, no entanto, ele se
escondia atrás de Artur. Uma tensão percorria o ambiente. O
delegado e mais dois policiais, assistiam a tudo pela janela de
vidro. Duas viaturas encostaram na porta do Distrito. E mais três
carros de emissora estacionaram na praça em frente ao DP. Um grande
circo estava montado.
Os
principais canais de televisão noticiavam um incidente na delegacia
em que o ator Artur Alessandro estava detido. Era seu último dia no
DP e ele seria encaminhado para a prisão. Mas, parece que as coisas
não correram muito bem, e um novo espetáculo era oferecido ao
público. O que será que estava acontecendo com o ator acusado de
agressão e estupro de vulnerável?
Cíntia
ouviu quando um helicóptero sobrevoou o DP. Imaginou que um caos
havia se formado lá fora. E agora, como limpar toda essa merda?
O
delegado fez conchinha com a mão contra o vidro e gritou: — É
melhor baixar essa arma e se render, policial Cíntia! Vocês estão
cercados. Não tem como escapar!
Cíntia,
sem tirar os olhos do detento touca preta, respondeu: — Prefiro
morrer aqui dentro do que me render a você. Seu porco imundo!
O
detento fez um movimento rápido, levando o ator a se abaixar um
pouco.
— É
melhor ouvir o delegado, dona. Se você teimar nisso aqui, o exército
vai invadir esse lugar e não vai sobrar ninguém vivo — alertou o
meliante.
— Tenho
uma proposta! — disse Artur Alessandro.
— Você
não fala nada que preste — murmurou o detento.
— Todos
querem sair daqui vivos, não é mesmo? — argumentou Alessandro —
e, eu quero que nós saiamos daqui vivos, ok!
— Aonde
você quer chegar com isso? — perguntou Cíntia.
— O
meu advogado conseguiu entrar com uma maleta recheada com barras de
ouro. Vocês me soltam e eu juro que deixo a maleta para vocês dois.
O que acham? Três milhões para cada um? É um excelente valor,
concordam? — perguntou Artur.
O
detento observou a maleta embaixo de uma cadeira. Seus olhos
brilharam. Cíntia percebeu o interesse do homem, mas continuou
mirando na cabeça dele. Artur focava na escrivã, tentando adivinhar
seus pensamentos.
— Por
favor, fiquem com as barras. Eu preciso viver — pediu quase em
prantos.
— Acho
que podemos negociar — disse o touca preta.
— Eu
não vou negociar com bandido — reagiu Cíntia.
Um
grito agudo veio da porta à direita. Todos olharam com espanto.
Cristina, a irmã de Cíntia, gritava e implorava à plenos pulmões:
— Meu Deus, para com isso! Você precisa parar, Cíntia! Você é
minha irmã. Por favor, larga essa arma, deixa esses homens e vem
comigo! — implorava.
— Cala
a boca, sua vaca! — respondeu Cíntia no mesmo tom de voz. — Você
nunca se importou comigo, e agora vem dar um show pra mim. Você não
engana ninguém sua vadia loira!
— Você
precisa parar com isso. Precisa parar de se sentir tão inferior. Eu
te amo mesmo você sendo gorda e feia. Eu te amo, mesmo você sendo
anormal.
— Você
que é a anormal aqui. Roubou o papai de mim, e agora quer roubar o
meu homem? — disse Cíntia.
— Eu
nunca roubei o papai de você. Mas, você que se isolou com inveja de
mim.
— Cala
a boca! — gritou Cíntia, atirando em direção à janela em que a
irmã estava. O vidro espatifou-se e a bala arrancou um pedaço da
orelha de Cristina.
O
detento aproveitou para pegar a maleta e sair da cela, carregando
Artur como escudo.
— O
que você está fazendo? — ela perguntou.
— Olha!
Muita calma nessa hora. Nós podemos sair daqui e ainda ficarmos
milionários. Essa é a nossa grande chance — disse o detento,
eufórico. — Na minha cela, tem um túnel. Eu terminei de cavar
ontem. Ele vai dar na praça. Nós podemos sair e tentar escapar.
Temos o bonitão de refém e você tem uma arma. Por que não tentar?
— Como
assim um túnel? Vocês fizeram um túnel?
— Sim,
os detentos da minha facção começaram esse túnel. E sempre que um
de nós vinha pra cá, dava continuidade no trabalho aí! —
explicou o touca preta.
O
delegado se preparava para arrombar a porta. Três agentes da tropa
de choque se alinhavam para entrar na ala.
— Ou
a gente faz isso agora, ou é caixão e vela preta. Não sai ninguém
vivo daqui — disse o detento.
— Isso
é loucura! — falou Cíntia.
O
detento ergueu a maleta e a atirou sobre a mão da escrivã. O
revólver foi lançado para longe e Cíntia caiu com a mão
sangrando.
O
touca preta ainda tentou juntar algumas barras de ouro que estavam
espalhadas, mas Cíntia lhe alcançou e segurando uma das barras,
acertou a cabeça do detento.
Uma
vez, duas vezes, três vezes, e ela esmagava os crânio do homem
contra o chão. A barra de ouro antes brilhante, agora estava coberta
com o sangue carmesim. O rosto de Cíntia gotejava sangue e o líquido
escorria de sua boca.
— Mas
que merda você fez? — exclamou Artur.
— Eu
só quero que você fique bem, meu amor — com olhos esbugalhados e
com uma expressão de loucura — Não posso te perder meu amor.
Sempre ao meu lado.
— Você
é louca!
Cíntia
correu até a cela do detento e tateando o chão, encontrou o piso
oco. Removeu a pedra de azulejo e verificou o buraco abaixo de si.
— Vamos!
Você vai na frente — disse a escrivã.
Artur
Alessandro entrou no buraco com facilidade. Cíntia desceu logo em
seguida. Ela carregava a maleta com algumas barras de ouro. O ator se
arrastava pelo chão lamacento, enquanto Cíntia vinha em seguida
passando pelo espaço com muita dificuldade.
— Eu
não posso ficar aqui, eu preciso sair! Volta, volta, volta! —
praguejava Artur, tendo uma crise de pânico. Ele respirava com
dificuldade. Seu peito subia e descia acelerado, ao mesmo tempo em
que o som de sua voz causava um ruído assustador, como de um porco
prestes a ser abatido.
— Volta!
Eu quero sair daqui. Não posso mais ir adiante!
— Cala
a boca! Continua! Vai em frente! Para de gritar — Cíntia respondeu
com outro grito.
— Sua
porca! Idiota! Estúpida! Você merece morrer! — ele praguejava
dentro do buraco claustrofóbico.
Cíntia
deu um grito ensurdecedor: — Cala a merda da boca!!!! — e ela
apertou o gatilho no rosto do ator. Um clique seco ecoou dentro do
buraco. Acabou-se a munição.
Artur
lhe encarou assustado. — Você ia me matar? — perguntou de boca
aberta.
Cíntia
respondeu retirando uma barra de ouro e enfiando na boca do ator. Ele
recuou sem conseguir falar nada.
Cíntia,
com mais força, continuou a empurrar a barra, até que ela dilatou a
mandíbula do infeliz, que começou e cuspir jatos de sangue e
sufocar com o próprio vômito.
Ela
não parava, e continuava a pressionar, pressionar até que a barra
entrou de vez na garganta dele.
Artur
tombou morto. Cíntia sorriu satisfeita.
A
voz dos policiais se aproximava do buraco em que ela estava.
Arrastou-se para frente até chegar ao fim do túnel. Ergueu seu
corpo acima do buraco e viu a praça apinhada de repórteres que lhe
filmavam e fotografavam.
Cíntia
jogou a maleta com o resto das barras. Sustentou o tronco volumoso
acima da terra, mas sua cintura entalou no pequeno orifício.
Ninguém
lhe ajudava. As lentes somente assistiam, espantadas, A Dama de
Ouros, entalada em um buraco.
Mas
ela não desistia. Com muita impulsão, remexia a barriga para o
lado. Remexia a gordura para o outro, e nada lhe fazia sair dali. Os
repórteres por perto caíam na gargalhada. E isso, revoltou ainda
mais a escrivã. Ela ergueu seu corpo com tanta força que o solo ao
redor do buraco começou a ceder. As pernas de Cíntia apareceram
sobre a superfície, cheias de sangue e ossos expostos. Ela conseguiu
sair do buraco, mas o osso da sua perna esquerda estava dilacerado.
Naquela
mesma tarde, foi levada para o hospital. Os médicos fizeram o
impossível, mas tiveram que amputar sua perna esquerda.
Ela
estava medicada e lúcida. Foi deixada sozinha no leito. Ligaram a
televisão. O último episódio de Coisas do Amor estava sendo
exibido. No lugar de Artur Alessandro, contrataram Gilberto Menezes
para fazer o par romântico com a loira protagonista.
Gilberto
Menezes era tão bonito quanto Artur Alessandro. E ele acabava
dizendo para a protagonista: — Eu sempre vou te amanhar. Você
sempre terá um pedaço do meu coração!
Cíntia
suspirou com as palavras do ator. Pronto, tudo estava resolvido. Seu
novo amor havia se revelado. Gilberto Menezes era o nome. E Cíntia
foi para a prisão amando outro galã.
FIM