Assim Eu Ouvi | Conto

Assim Eu Ouvi | Conto


WEBTVPLAY ORIGINAL APRESENTA
ASSIM EU OUVI



Conto de
Maria Cristina dos Santos Lima




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***


A noite estava fechada, em modo assombrosa, já orvalhada e serenada, pois, naquela casa, a noite orvalhava antes do dia e o dia tinha aquele sereno estéril e inútil, quase vingativo, que regelava os músculos recém acordados. Olhando à frente via-se, na sombra, através da luz do pilar, parte do potreiro e da casa velha que ficavam a uns metros da varanda em que estavam, em espaços distintos, e marrons, dando sensação de sujeira e enodoamento. As cercas do balcão deitavam já nas amostras da idade, sem inclemência, nem correções obrigatórias que qualquer sujeito podia fazer, apenas consertar já bastava. Naquele mundinho nem sebes gemendo e chorando mexiam com os brios de alguns, pois assim todos se mantinham sentados em torno do avô, para as caçoadas do dia e da noite, e quem sabe, algum resto do troco da compra ou elogio arrancado à força do velho.

Tempos difíceis para aquela gente. Tragam o chimarrão e acendam o pito do vô que ele já espera e pigarreia. Olhando mais perto, logo atrás do cercado, via-se o saldo de uma horta, velha e perebenta, provavelmente sobra de um tempo melhor que aquele, em que as pernas e as mentes não estavam tão preguiçosas e despeitadas. Pequenas touceiras de possíveis vegetais e leguminosas extintas de sua beleza e despregadas de seus talos, uivavam, entre si, lamentos de coisas antes já cheias de bonitezas. Ali, naquela varanda, oprimindo o assoalho, estavam encravados ao chão alguns móveis de vime velhos, contando ao todo, cinco cadeiras côncavas confortáveis e uma mesinha de centro desbotada. O avô era um velho de ares sujo e repugnante, seja como quiser, sem o menor trato e tarimba nenhuma. Era ele quem ocupava a cadeira central e a qual continha almofadas para o conforto do orgulhoso idoso, e era também ali, que o velho escondia sabe-se lá o quê, podendo ser mufunfa, grana ou resto de traques para a diversão de ver pessoas gritando de susto ao passar por ele. Se alguém quisesse grana pegava da mão do diacho de oitenta e nove anos, mão esta suada e remelenta, o dinheiro passado do dia para a noite, embaixo das suas nádegas. Podia-se notar em algumas feições, ali, neste espaço do terraço, o pensamento encaracolando na cabeça de quem tentava matutar quando este tal quase nonagenário se daria por cansado deste desterro e livraria o resto de mais e mais penosos puxa-saquismos. Urgia, também, saber quanto a besta em forma de gente guardava no banco municipal. Os despistes eram diversos, atrelados a escolha de quando começaria o falatório, onde o velho sem a menor vergonha na cara, contava as gabolices de juventude e então lembrava a todos de quanto poderia ser a receita de sorte de quem garantisse a servidão para ele. Uns olhavam para a direita, onde nasceu o maior eucalipto das redondezas, cheio de folhas e folhinhas, perfumando tudo e balançando ao vento como uma rede velha e maldita. Outros preferiam mirar a esquerda onde o velho construiu por pura maldade uma privada exterior, fedida, mal feita e nauseabunda, que aguardava a visita com ares de chacota e malignidade. Como desforra foi escolhida a localização da dita bem ao lado da pereira. Era para quem tivesse estômago mesmo. Então nas proximidades se avizinhavam os leitões, porcos mesmos, que adoçavam a vida com peras saborosas e deleitosas, sem igual e sem nenhum escrúpulo. Cansados das laterais, as faces voltavam-se para o dito cujo, pois não existia mais anuência nem sabedoria do que podia ser feito, além disso. Levantar da cadeira podia ser uma má escolha, entre má e má mesmo. Um acinte para o quase presunto que poderia, se tornar, o destronamento etéreo daquele que saísse, bem como o direcionamento da raivosidade intensa da figura mais graúda da família. O ambiente geral era difícil, pois além da figura graúda figurava, para ser bem repetitivo, a figuratividade do ódio. Ódio entre todos, de todos para todos e entre eles. Era assim mesmo. O desejo de cuspir no sapato do outro e melecar tudo era grande também.

Foi num momento destes que cheguei à casa, em plena semana de halloween, convidado por um deles, não lembro qual, para conversar e participar da conferência. Antes mesmo de me sentar, e, terminadas as mesuras, já senti aquele cheiro acre vindo de um lado que sabe se lá qual. Aí tive a impressão que tudo fedia. Enquanto tamborilava os dedos na cadeirona e esperava o que se ia realizar, de normal, naquela pasmaceira, matutava se tinha um lugar mais feio e sujo que aquele. Também naquele ambiente ninguém dava as costas para ninguém de medo da faca. Era prevenção daquelas, de todos com todos. Ninguém limpava para não dar o gosto ao outro de estar num ambiente aprazível. Servidos os bolinhos da graxa, oferecidos a mim com finura, delicadamente recusei alegando um mal-estar advindo de outrora. É claro que, de modo algum, deixei pressentir que o nojo se deu assim que atravessei o limiar do solário.

Logo deu início o falatório do dono da casa e eu, Genório Tavares, me calei aguardando o ruído vocal do rei do chiqueiro. O que vou contar aqui não é mentira minha, são palavras, talvez enganadoras, de quem conta. Não foi escolha minha. De qualquer forma o assunto beira o incoerente, o curioso, o diverso pelo menos. Assim eu ouvi. Assim vou contar.

Há tempos atrás, começou a aparecer, em outras paragens, antiga morada do velho, animais mortos, na verdade, trucidados, sem a menor clemência, parecendo coisa monstruosa, de malfeito mesmo. Todo o povo começou a estrebuchar pavor e, como se estivessem em uma pandemia, passaram a se trancar em casa. Janelas e portas na trava. Mulheres, meninas e crianças já não saiam mais. O avô, em assembleia na venda do lugarejo, com seus conhecidos, discutiam o que poderia estar acontecendo, quem ou o quê podia ser o desalmado. Se fazia necessário, urgente mesmo, uma caçada. E assim, passou a ser marcada todas as noites, às vinte e duas horas, na venda, uma reunião para discutir as ações, os procedimentos, para ir à batida e acabar de vez com a danação.

O velho tinha entre eles um grande amigo, José Batista, em quem punha suas considerações, pois José era alto, forte, sabido, destemido, bom de tiro e certamente valoroso para a lide em questão. O problema era que, José, nem sempre estava disposto para o expediente em pauta, e às vezes, faltava ao ofício, deixando o nosso locutor da narrativa agastado.

Em determinado dia, logo cedo, apareceu o ferreiro e a mulher, aos gritos, no centro da praça, desesperados, pois a filha estava sumida e dois novilhos mortos e despedaçados no campo. Não tinham ouvido nada, nem um barulho sequer, nem uma pá de vento. Quando acordaram, de imediato, perceberam a porta dos fundos aberta, completamente escancarada, de onde se sentia um vento forte se agitando para dentro da cozinha, e a filha não se encontrava no quarto, onde comumente, dormia até tarde. A donzela só levantava da cama quando já bem tarde e completamente repousada. Diziam que a pobre moça era anêmica, doentia. Vivia sorumbática, sem amigos, numa triste vida. Às vezes sumia na floresta e lá ficava fazendo sabe lá o que. Curiosidades que entravam na mente dos rapazes, interessados em puxar uma conversa com ela, pois a danada era pra lá de bonita. Buscaram a jovem por tudo, dentro e fora da casa, nos fundos, próximo ao riacho, no galinheiro, no milharal e no campo, onde encontraram as reses mortas. O avô, atinou no seu íntimo, que aquela história ia dar mais pano para manga do que fiava e uma ideia começou a rastejar em sua cabeça, primeiro devagar, no rastejo mesmo, depois mais depressa, até virar um desassossego daqueles. Granjeou dois rapazes novos e fortes que estavam por ali e foi atrás do Pacheco, um velho conhecido, respeitado e bom de arma, e era o único jeito, já que José estando de corpo mole, nem tinha aparecido na noite anterior na venda.

Pacheco considerou a história toda e achou por bem, ajuizando de forma categórica, que o melhor era ir atrás de José, contar também com sua assistência, formando assim um grupo mais exitoso e, daí sim, iniciar as buscas devidas. E assim foi feito e o grupo partiu, armado, para a casa do citado.

Um dos rapazes avistou de cima do morro, ao longe, a casa de José, já ponderando, que possivelmente a porta da casa se encontrava escancarada e o cachorro endoidecido lá fora a latir. Realmente, Tigre, o cão, estava girando e alucinando, deitando baba de tão nervoso. Logo que Pacheco avançou para a porta da casa fez um trejeito de nojo, medo e um apavoramento subiu por sua espinha, gelificando o corpo. Mirou as botas e viu que pisava em sangue fresco e a poça do líquido estava distribuída por toda a entrada, na cozinha e corria para dentro, nos cômodos íntimos. O grupo seguiu em frente, aos poucos, em fila indiana, com as armas em seta, prevenido para o que os esperava. O velho foi o primeiro que entrou no quarto de José, e, balançado pelo pavor, viu o que não esperava. A moça bonita e doentia, filha do ferreiro, estava sentada na cama, coberta de sangue. Quando os viu abriu um sorriso satisfeito, que mostrava fiapos de tecido enfiados entre dentes. Deitado ao seu lado, de costas, estava José, com o dorso já em adiantado estado de avaria, carcomido e sangrento. A camisa rasgada a dentes, já, toda vermelha. Um dos rapazes, sem pensar duas vezes, descarregou a pistola na moça. Para maior ebulição do clima geral, a gaiata deu, de um salto só, para fora da cama, e em disparada, passou por todos e fugiu levando junto com ela, não se sabe como, os cinco tiros. Nunca mais foi vista. Não se sabe se morreu ou se viveu. Também não se soube mais que fim levou sua gente.

Quando dei por mim, estava estático na poltrona de vime, comendo bolinhos da graxa e bebendo a cachaça do copo do moço sentado ao meu lado. A história me impressionou muito e nunca consegui saber se era verdade ou mentira, nem identifiquei o povoado. Saí como entrei, pelo portão da frente, encucado, olhando em volta, pensando que aquilo só podia ser coisa de bruxa, já preocupado se encontro a tal moça no caminho.

FIM

Palavras Obscuras - 1x06 - Duas Estatuetas e Marina de Pancetti


Sinopse: Manoel e Ester vivem os dias difíceis em uma rotina bastante indolente. Ela com Alzheimer e ele pacientemente respondendo às repetidas perguntas feitas por ela. Um amigo fiel dos tempos de infância é um exímio advogado que conhece bem o casal e, quando este recebe a notícia da morte de Ester, se prontifica a defender Manoel, que é um dos acusados de envenenar a esposa. Até que ponto devemos confiar nas pessoas? Será que a amizade de longa data pode se tornar um obstáculo em nossas vidas? Embarque nesta trama que possui um final surpreendente e que promete deixar o leitor atarantado.



Duas Estatuetas e Marina de Pancetti
de Pedro Franco

 

Manoel, que dia é hoje?

Raquel, dois de agosto, terça-feira.

Cinco minutos depois;

Manoel, que dia é hoje?

Raquel, dois de agosto, terça=feira;

Minutos depois. Manoel está lendo o jornal, para e, como das outras vezes, responde.

Raquel, dois de agosto, terça-feira.

E o dia transcorre com perguntas repetidas, idem respostas

Só quem teve a oportunidade de participar, sabe o infortúnio que é conviver vinte quatro horas e todos os dias com alguém que, perdendo a memória recente, passa o dia fazendo as mesmas perguntas, ou repetindo pequenos comentários sobre o passado. Sabe-se que está com a Doença de Alzheimer, demência senil, ou que outra etiqueta diagnóstica a Medicina tenha colocado no coitado. 

Que dia é hoje? _ Sexta-feira, quinze de março. 

Cinco minutos depois. Que dia é hoje? _ Sexta-feira, quinze de março. 

Em seguida a mesma pergunta e ouve sexta-feira, quinze de março. Se julgar que, quem escreve, poderia ter posto apenas uma pergunta e a respectiva resposta, para não cansar o'leitor, peço que se lembre da posição de quem, tendo amor, ou amizade, pelo enfermo, fica respondendo e respondendo, procurando não perder a paciência e sem esquecer a ternura, até porque mesmo a noite continua a pantomima. 

Você já telefonou para Raquel? Telefonei, ela está bem e mandou beijo para você. 

Você já telefonou para Raquel? Telefonei, ela está bem e mandou um beijo para você. 

Raquel é a maior amiga de Ester e mora com o marido em Houston no Texas. Manoel foi lá fora ver se a Veja já chegara e, ao voltar, ouviu. Você já telefonou para Raquel? _ Já, ela está bem e mandou um beijo para você. Manoel e Ester estão aposentados e passam juntos às vinte e quatro horas do dia, pois, se há saídas da casa, vão os dois. Corda e caçamba diriam os antigos. 

Que dia é hoje? Não vamos almoçar? _ Já almoçamos. 

Não vamos almoçar? _ Já almoçamos. Você já telefonou para Raquel? 

Se Manoel liga a televisão para ver a novela, Ester não consegue se lembrar da cena anterior e desanda a perguntar sobre o enredo, sobre os personagens e Manoel, sem querer, perde o fio da sequência e fica difícil entender o que decorre. É comum ir ver jogos do Botafogo com eles. Ester pergunta. Que jogo é este? Botafogo e Flamengo. O Botafogo é o de vermelho. O Botafogo é o de preto e branco. Que jogo é este? O Botafogo é vermelho? Revezamos, respondendo as perguntas e o jogo perde um pouco da graça, porque outras e outras perguntas são feitas. 

Quando saem de casa, Raquel só tem prazer, faz compras e sempre quer os mesmo objetos. Sua graça é comprar e já tem oitenta e três guarda-chuvas e trinta e sete capas. Há uma semana Manoel e eu contamos suas coleções de peças durante sua breve sesta. Compadre, adoro comprar. Todas as mulheres gostam de comprar, inclusive sua mulher, que também adora guarda-chuvas. E são objetos úteis, ainda mais para quem mora na cidade, onde parece que chove todos os dias. Você e Manoel riem, porque não parecem saber que todas as mulheres gostam de comprar. Fica muito zangada se é contrariada e recorre a termos que nunca usaria antes. 

_ Manoel pare o carro, naquela vitrine vi uma capa. Estão na Avenida Quinze de Novembro e não há possibilidade de estacionar. Que mania você tem de não parar logo. Agora vamos ter que andar. O dinheiro não é o maior problema para Manoel. Diga-se que há muitos e muitos anos convivo com os dois e também sofro o bombardeio de perguntas. Sempre me dei bem com Ester e, quando enviuvei, tive muito apoio dos dois. Só que Ester não é mais Ester. Quando a doença descrita por Alois Alzheimer a atacou, a vida dos dois mudou completamente e os que tinham vida animada, passaram a viver da forma restrita.    

A casa está com ares de decadência, porque meu amigo está cansado e vai deixando a vida correr. E o campo de interesse de Raquel minguou completamente ela no momento se comporta agora como criança, só que muito mimada. Mimada por Manoel, que nem pensa em contrariá-la. Os dois se casaram cedo e Manoel é meu amigo desde os seis anos. Fomos companheiros do jardim da infância ao vestibular. Fui à Advocacia e ele à Engenharia civil. Manoel e Ester foram meus padrinhos de casamento e, ao ficar viúvo, ainda mais os acompanhei. Não houve tempo para termos filhos. Minha mulher morreu em acidente de trânsito, três meses após o casamento. Já meus amigos não tiveram filhos, pois Ester é estéril apesar dos tratamentos feitos e na época em que eram jovens não havia inseminações artificiais, ou métodos de fazer ter filhos à força. Com a aposentadoria, para melhor poder cuidar de Ester, vieram morar em Petrópolis numa pequena casa no Valparaíso. 

Como de costume fui visitá-los no sábado pela manhã e só não dormi em Petrópolis, porque tinha solenidade na OAB-RJ de noite no Rio. Desci a serra por volta das dezoito horas. Julho, frio e a viagem, que faço na direção de automóvel desde os tempos de rapaz, foi feita sob o ruço. Estava com ânimo pesado, quando deixei os dois, estado de espírito que muito acontece, quando os deixo. Manoel tentara tudo para melhorar o estado de saúde mental de Ester e ficou muito zangado quando um psiquiatra sugeriu a internação, para dar-lhe um pouco de paz. Fui explicar-lhe a intenção do médico e quase que a zanga se volta contra mim. Confesso que durante o evento na OAB, pensei muito na vida que Manoel e Ester estavam levando na velhice. 

No domingo de manhã fui acordado e dormira mal, pelo telefonema de Manoel, que me disse chorando que Ester tinha morrido dormindo e que chamara a ambulância do SAMU em urgência. Este serviço tinha sede no Valparaíso e o médico constatara a morte de Ester. Tomei correndo uma xícara de café e subi a serra o mais rápido que pude. Chegando lá, já encontrei a polícia técnica, pois o médico, que atendera Ester, suspeitou de envenenamento por cianureto. Manoel foi acusado de envenenamento e o mínimo que se disse foi que fizera uma eutanásia caridosa. Apresentei-me logo como seu advogado, porque tinha certeza, até por conversas anteriores, que ele nunca iria cometer qualquer tipo de ação lesiva à saúde de Ester. Nunca vi amor e paciência como os dele. Manoel estava transtornado. Infelizmente a imprensa em época de poucas notícias deu destaque ao caso, que chamou de “A morte de Ester”. Foi notoriedade desusada e indesejada. E apareceram logo três vertentes na mídia e suscitaram argumentos de peso. A primeira foi a tal eutanásia caridosa, a segunda eutanásia por esgotamento pessoal e a terceira, a que me aferrei como seu defensor, foi de assalto por elemento externo. 

A polícia técnica trouxe fatos contra Manoel e outros a favor da minha tese. Resumindo, a morte ocorrera entre 21 e 22 horas, não havia sinais de arrombamento na casa e ninguém tinha chaves da casa, exceto as que estavam de posse do Manoel. Ele admitia que fechara toda a casa, depois que saí e passado até a tranca na porta da cozinha. Não recebera qualquer visita. Estas escasseiam, se há doentes com Alzheimer e afins. A porta da frente tinha a antiga chave MSN e também uma fechadura mais moderna, tipo Papaiz. Na casa foram encontradas as impressões digitais do casal, da empregada, as minhas e de um elemento desconhecido. Deste elemento não se encontrou a identidade nos bancos de impressões do país. 

Na caneca de Ester foram encontrados vestígios de cianureto, na do Manoel de Flunitrazepam e o casal, sempre antes de deitar-se, tomava chá de camomila, cada um em caneca própria e com as iniciais de cada nome, E e M. Nas fechaduras da porta da frente foram encontrados vestígios, como se chaves novas tivessem sido introduzidas. A empregada, que estava em estado de choque, que saia nas sextas à tarde e só voltava na segunda-feira às dez horas, chamada pela polícia no próprio domingo, notou que na sala faltavam duas pequenas e valiosas estatuetas e um quadro de pequena dimensão, uma marina de Pancetti. A empregada disse ainda que na sexta limpara as duas estatuetas e, ao sair na sexta, colocou-as na sala no lugar de sempre. Enfim, todos os dados podiam inocentar Manoel, ou culpá-lo e dependeria da minha defesa o resultado do julgamento. A impressão digital de desconhecido era muito importante para mim. Contava também o brilho da promotoria. Só que tinha absoluta certeza de que Manoel nunca recorreria à eutanásia e no sábado antes de descer para a solenidade, tínhamos conversado sobre a evolução da doença de Ester e Manoel contara que ainda ia tentar mais um tratamento, aprazado para aquela semana, preconizado por médico com consultório em Areal. Suas esperanças só não eram maiores que sua paciência, em repetir e repetir respostas. 

Com a pressão da mídia o julgamento foi acelerado e tive a oportunidade de fazer a melhor defesa de minha vida, levando três jurados às lágrimas. Quando um advogado tarimbado tem certeza da inocência do cliente, pode de fato operar defesa de mérito. Parece que a verdade cria empatia do advogado com jurados, acontecimento que sempre beneficia o réu. Consegui com os dados que tinha e com a pormenorizada descrição da vida dos dois chegar à absolvição. A promotoria bateu na tecla, se não foi o marido, quem foi. E a resposta de fato não havia. E a impressão digital nada vale e os vestígios de chave nova foram anulados? Fui também ainda que de forma sub-reptícia na usada “in dubio pro reo”. Manoel viveu mais dois anos e meio, depois que foi julgado inocente. Permaneceu muito triste, só que em relativa tranquilidade.

Vale dizer que a história daquela noite macabra está guardada em cofre de banco, a ser aberto após minha morte. Neste cofre estão ainda duas estatuetas, uma pequena marina de Pancetti, uma luva com impressões digitais, adquirida em viagem que fiz à Índia um ano antes da morte de Ester, um vidro com pó obtido em serralheria, uma caixa de Flunitrazepam de 2 mg, onde faltam dois comprimidos e um vidro com um resto de cianureto. 




Conto escrito por
Pedro Franco

Produção Four Elements
Marcos Vinícius da Silva
Melqui Rodrigues
Hugo Martins
Cristina Ravela



Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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Palavras Obscuras - 1x05 - A Dama de Ouros


Sinopse: Cíntia é uma escrivã que aos trinta e sete anos, tem uma rotina estabelecida. Durante o dia, cuida de uma papelada burocrática e tediosa, mas, à noite, sonha com Artur Alessandro, o homem da sua vida. Porém, a prisão de Artur Alessandro, exatamente no distrito em que Cíntia trabalha, fará com que o mundo dela vire do avesso. Cíntia será capaz de cometer atrocidades para fazer com que o seu amor saia dessa em liberdade. Um conto repleto de sangue e paixão, desejo e loucura. Até onde a obsessão de uma mulher será capaz de chegar?



A Dama de Ouros
de Hugo Martins

 

O despertador tocou às sete horas. Estridente e persistente não parava de cantar uma música aguda. Cíntia segurou o celular e no automático desligou com o dedão. Precisava levantar, enfim. Jogou o corpo para o lado da cama, buscou apoio no colchão, mas a gordura acumulada na barriga não lhe deixou sentar. Virou-se ainda mais, se aproximando da beirada e colocou as pernas para fora da cama. Levantou, com muito esforço. 

Passou alguns segundos olhando para o pôster de Artur Alessandro que estava na parede em frente à cama. No mesmo instante, arrumou os cabelos assanhados na cabeça. Não podia ficar mal arrumada diante do seu amado. Foi até o pôster e deu um beijinho no sorriso iluminado do galã.

Bom dia, meu deus grego sussurrou.

Tomou um banho rápido, café também rápido. Precisava estar na delegacia às oito.

Tudo o que ela queria era ter um dia calmo. Sentar na sua poltrona acolchoada, registrar seus boletins de ocorrência, formalizar algum inquérito, digitar um depoimento. E assim, desejou que fosse, mas ledo engano, o dia foi permeado de ocorrências. Muito movimento. Um ônibus inteiro havia sido assaltado. Dezesseis boletins registrados. Uma grávida que vomitou em cima da sua mesa. E a merda de um policial que lhe passou a mão na bunda. Estava a ponto de ter um colapso.

Às dezoito e quinze, Cintia ainda estava finalizando o registro do último processo. Saiu às pressas para não perder o horário. Ela tinha um encontro marcado às dezenove horas e não podia atrasar.

Ao chegar em seu apartamento, correu até a cozinha e organizou a mesa de jantar. Os pratos de porcelana, taças de cristal e os talheres de alumínio. Um vinho tinto, e velas brancas para decoração.

Na sala de estar, onde iria acontecer o primeiro contato, Cintia jogou pétalas de rosas. Passou um pano úmido na Tv e organizou no sofá a almofada com a foto de Artur Alessandro.   

Estava quase tudo pronto. Precisava tomar banho com óleo e essências. Correu para o banheiro. Não tinha muito tempo, mas precisava ficar cheirosa. Banhou-se com pressa. E no final, secou os cabelos na toalha.

Ainda parou diante da penteadeira para passar um batom rosa. Borrifou um perfume doce sobre si e deu um sorriso amarelo. Vestiu a camisola de seda vermelha e se sentiu pronta para mais uma noite de amor.

Antes de ligar a TV, o celular tocou. Sentiu que não era coisa boa. Com o telefone em mãos, observou que sua irmã lhe perturbava no seu horário sagrado com Artur Alessandro. Atendeu de mau gosto.

Oi Tina, tudo bem? perguntou Cintia, mais por obrigação do que por interesse genuíno.

Tá tudo ótimo sim. E vai ficar melhor quando eu chegar aí levando pizza comemorou Cristina, com uma energia na voz que Cíntia não tinha em si.

Não! Não dá! cortou seca.

Não faz isso, Cíntia. Tô no caminho. Preciso conversar contigo.

O Alessandro tá em casa. Nós vamos fazer um jantar romântico.

De novo? Toda vez que eu quero ir aí, vocês estão comemorando algo ou fazendo um jantar romântico. Eu vou aí e quero conhecer esse seu namorado misterioso decretou a irmã.

Não você não vai vir!

Abre a porta. Já tô aqui gritou Cristina.

Cíntia correu até a janela da sala e viu o perfil da irmã do outro lado da porta. Que saco! Não podia acreditar nisso.

Não posso abrir! Eu tenho compromisso e não posso desmarcar. Você precisa voltar, Cristina!

Abre logo essa porta! insistiu.

Não! Vai embora agora!

Se você não abrir eu vou arrombar!

Cíntia abriu a porta em um rompante. Cristina olhou para a irmã, mas seus olhos não refletiam surpresa ou alegria, mas sim, puro horror, pois diante de si, Cíntia estava com as mãos estendidas segurando uma arma em cima da sua testa.

Dá meia volta com a droga da sua pizza Cíntia disse, com uma raiva contida, que transbordava entre os dentes trincados.

Eu...eu...volto outro dia, então.

Cíntia trancou a porta com força. Guardou a arma na escrivaninha e com muita calma, encheu sua xícara com vinho. Sentou-se no sofá, pronta para ver o seu amado.

Agora era somente ela e Artur Alessandro. Olhou para a xícara com a foto do ator e beijou-lhe a face.

Eu amo você.

Era o penúltimo episódio de Coisas do Amor, e Cíntia se derramava em lágrimas vendo Artur carregar uma loira pela floresta. Ela desejava com todas as forças ser aquela atriz, mas se conformava em imaginar aquele homem sarado lhe carregando com seus músculos rígidos.

Quando Cintia acordou no dia seguinte, o despertador ainda não tinha disparado. Pensou na irmã e em como foi insensível com ela. Quis ligar e pedir desculpas, mas preferiu falar pessoalmente, tudo o que fizera precisava de um bom diálogo. 

Tomou um banho rápido e seguiu para o décimo terceiro distrito de policial. Ficou surpresa quando viu a calçada do DP coberta de jornalistas e câmeras. Eles faziam manchetes e noticiavam algo com muita excitação. Aquilo não era normal. 

Cintia teve que dar a volta no prédio e entrar pela porta dos fundos. Atravessou o quintal onde ficavam as viaturas e penetrou no edifício que também estava borbulhando de homens de terno preto. Percebeu que se tratava de advogados e buscou se esconder o mais rápido que podia em sua sala.

A escrivã Bruna Carla estava sentada no canto da sala. Parecia ter um grande peso na cabeça, pois suas mãos mal conseguiam segurá-la. Cíntia foi ao seu encontro.

O que tá acontecendo aqui? Prenderam o presidente?  perguntou Cíntia.

Já vi que você não lê jornal pela manhã - respondeu Bruna, com tédio na voz.

Não gosto de sofrer pela manhã. Mas, conta! O que houve?

Prenderam um famoso aí. Acusado de estupro de vulnerável e agressão à mulher. Tá passando em todos os canais, é só ligar a tv.

Quem será?

Não sei, não. Só sei que esse aí não vai ter fama nunca mais. Tem vídeo dele molestando a criança e depois espancando a mulher. É um negócio nojento de se ver.

Nossa que triste.

Cíntia pegou o celular e buscou pesquisar sobre um famoso que molestou uma criança e agrediu a esposa. Tomou um susto quando viu a foto do homem. Não conseguiu segurar o celular na sua mão.

Nao pode ser! É mentira! gritou Cíntia.

Bruna a observou de canto de olho.

Você sabe quem é? —  perguntou Bruna.

Ele é o meu… Cíntia gaguejou.

O seu o quê?

Deixa pra lá.

Cíntia não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Foi até a um segundo policial e confirmou que quem estava detido, justamente no seu distrito, era o amor de sua vida, Artur Alessandro. Sonho ou pesadelo? Ela tinha que conferir com os próprios olhos.

Saiu pontualmente às dezoito e seu único destino era sua casa. Ao chegar na porta do apartamento deu de cara com sua irmã, loira, suada, com roupa de academia, uma bolsa cheia de alters e suplementos.

Precisamos conversar — decretou Cristina.

Cíntia virou a chave na fechadura, e em um silêncio constrangedor apontou com a cabeça a entrada para sua irmã.

Espero que aquilo não aconteça nunca mais. Você não pode apontar a merda de uma arma para mim e achar que vai ficar tudo normal. Você não pode mais fazer isso, tá ouvindo Cíntia! - gritou Cristina, histérica.

Fala baixo.

Você tá bem?

Na verdade, não — respondeu Cíntia. Sem demora ela ligou a tv da cozinha e se deparou com a mesma notícia. Artur Alessandro: molestador e espancador.

Isso só pode ser brincadeira — reclamou Cíntia.

Esse bandido merece ser executado.

Não fale assim dele. O Artur não faria isso. Eu conheço ele.

Conhece? Da onde?

Não interessa — desconversou.

Cristina segurou a irmã pelos braços.

Preciso saber que você tá bem.

Eu tenho que ficar bem, Cristina. Agora me solta e volta pra sua academia. Vai ser magra e esbelta — disse Cíntia, com um sorriso sarcástico.

Depois que sua irmã saiu, Cíntia teve a notícia mais trágica do dia: a série estrelada por Artur Alessandro fora cancelada.

No dia seguinte, a delegacia ainda estava borbulhando de repórteres. Cíntia teve que entrar novamente pelos fundos, mas dessa vez, na ala que ficava as celas de detenção.

Se aproximou da cela que Artur Alessandro se encontrava e observou-lhe conversando com os advogados. Ele parecia ainda mais bonito de perto. 

Cínta encostou-se à parede e suas pernas começaram a tremer. Precisou sentar-se para não cair.

Ai como ele é lindo. É todo meu! — disse suspirando.

Quando os advogados se retiraram, Cíntia se aproximou, como quem não quer nada. Ela fixou os olhos no homem e suspirou em um sonho lúcido. Percebeu, quando o ator cuspiu e abanou-se com calor.

Posso te trazer um copo com água? — ela perguntou quase a balbuciar.

Ele lhe lançou um olhar desconfiado. Surpreso. Ficou em silêncio por alguns segundos e parecia refletir naquela pergunta.

É claro — disse por fim.

Cíntia apressou o passo até o bebedouro. Encheu dois copos com água e voltou para a cela. Não havia ninguém no corredor, a não ser mais dois detentos que observavam a cena em silêncio.

Você está sendo bem tratado aqui? — ela perguntou, passando os copos através das grades.

Até o momento, sim.

Ela não pode deixar de notar as veias pulsando nos dedos do amado. O músculo do antebraço rígido e os pelos que cobriam todo o braço. Um arrepio subiu-lhe os cabelos da nuca. 

Ela não podia deixar passar a oportunidade e ao entregar os copos, roçou sua mão no braço do garanhão. Um calor subiu por entre o ventre e estremeceu seu coração.

Artur Alessandro percebeu o toque e o olhar apaixonado de Cíntia.

Você deve me conhecer, né? — ele perguntou com uma voz grave e profunda.

Ela sorriu sem graça.

Eu devo ser a sua fã número um. Te acompanho desde Mulheres Enlouquecidas. Você salvou a minha vida. Eu te agradeço todos os dias por existir. Eu não sei o que seria da minha vida sem você — ela disse, tremendo e segurando as barras com as duas mãos.

Ahh, então, você é minha fã!

Ai me desculpe. Eu perdi a noção. Eu simplesmente tinha que me declarar pra você. Precisava. Juro de coração.

Mas você não viu os noticiários. As mentiras que maquinaram contra mim? 

Sim, eu vi. Eles são loucos. Perturbados. Meu Deus quem em sã consciência abusaria da própria enteada? 

Você conhece a protagonista que faz par romântico comigo? Foi ela que armou tudo para me substituir da série. Nós nunca nos entendemos e eu disse que aquele era o meu posto e que ninguém iria me derrubar. Ela jurou na minha cara que iria me destruir. Iria destruir minha reputação, minha honra e que iria me matar e me deixar vivo ao mesmo tempo. Disse que iria me cancelar. Você acredita em mim?

Claro que acredito meu amor. Você sempre foi e será o meu homem. Que sempre esteve ao meu lado. Você é o meu salvador. Sei que nunca faria uma atrocidade dessas. E, aquela mocreia loira, ela vai pagar o que fez com você. Essas loiras, magras e belas são as piores. Eu tenho uma irmã que pertence à mesma classe. Mas, eu vou acabar com isso — disse Cíntia segurando as mãos de Artur Alessandro.

Ele percebeu o distintivo da polícia civil pendurado no pescoço dela.

O amor é só uma palavra, se não houver a ação. Você concorda comigo? — ele perguntou. E ela concordou com a cabeça. — Por isso quero te pedir algo. Preciso que me ajude!

O que você quiser eu faço.

Você precisa me tirar daqui.

Mas… - ela gaguejou.

Sente — ele disse, puxando a mão dela e encostando em seu peito sarado. — Meu coração está apertado. Eu vou morrer se não sair daqui hoje.

Mas, como assim?

Eles vão me transferir para a unidade prisional de Itaitinga. Lá, já está tudo pronto para me estuprarem até a morte. Eles querem me ver sangrar até não restar mais nada em mim. Querem sugar toda a minha dignidade até na hora da morte.

Isso nao pode acontecer — ela falou, derramando lágrimas.

Não vai restar nada meu nesta terra. Todas as séries, filmes e novelas que estrelei serão canceladas e queimadas. Ninguém irá lembrar da minha existência.

Não posso permitir que isso ocorra.

Então, me tira daqui.

Quando saiu da ala das celas, Cíntia refletia em como havia chegado até aquele momento.

Ela conseguia ver com nitidez, seu pai brincando aos sábados no jardim. Eles se divertiam, enquanto a mãe observava pela janela, com muito ódio no olhar. Ela detestava o carinho que o pai devotava à única filha.

Até que a Cristina nasceu. 

Acabou-se as brincadeiras. Cintia ficou de lado. Todo o mundo se curvava diante daquela criança linda de olhos azuis. E Cíntia, com seus dez anos de idade, começou a ganhar peso, e a ficar isolada de todos.

Quando Cíntia fez vinte anos, o centro das atenções ainda era Cristina. A irmã mais nova, mais bonita e mais inteligente. Tudo girava em torno das competições que Cristina disputava, dos troféus que a garota ganhava e do amor que os pais lhe davam.

Mas, as coisas tornaram-se insuportáveis, quando vindo de uma competição dessas que Cristina sempre participava, o pai capotou o carro, e acabou falecendo.

Cíntia culpou sua irmã, e nunca mais lhe perdoou.

Aos trinta, Cíntia havia passado no concurso da polícia civil. Era uma escrivã.

Casou-se com um amigo de infância, que era preguiçoso e beberrão. 

Engravidou aos trinta e um. Mas abortou com quatro meses. Teve que extrair o útero. Nunca mais poderia ter filhos.

No leito do hospital, seu marido anunciou “Não quero mais essa vida. Até mais”. E nunca mais voltou.

Foi naquela noite, que assistindo a tv no leito do hospital, que Cíntia viu Artur Alessandro pela primeira vez. Ele interpretava um enfermeiro que cuidava de crianças e idosos. Em um diálogo emocionante ele disse para uma das crianças “Não se preocupe. Eu sempre estarei ao seu lado”. E Cíntia ouviu a voz de Deus dizendo para ela que Artur era o homem da sua vida.

Foi então que decidiu se reerguer. Foi ao shopping e comprou tudo que tinha o nome e o rosto de Artur Alessandro. Assistiu às séries que ele estrelou, mais de cinco vezes seguidas. E sonhou com ele durante muitos e muitos dias. Aquele era o seu homem. O homem que sempre estaria ao seu lado. E ninguém iria tirá-lo dela. Ninguém.

Entrou na sala do delegado e deparou-se com três policiais conversando com o chefe.

Trouxe café, Cíntia? — perguntou o delegado Borges, alisando o bigode grisalho.

Tô preparando um bem quentinho — ela respondeu, baixando o olhar.

O que você quer aqui? A sala já é pequena e você ainda se mete de entrar — disse, abrindo o braços e fazendo um desenho de uma bola ao redor da cintura.

Os outros três policiais não se contiveram e começaram a rir.

Por que vocês já vão transferir o Artur? 

Prisão temporária, e esse cara merece ser feito de mulherzinha na cadeia, né Cíntia? — brincou o delegado.

Ele não oferece nenhum risco à investigação. É réu primário e tem domicilio fixo — argumentou.

Ele que vá pra puta que o pariu com seu domicílio. Eu quero é que estuprador morra! Dá o fora daqui, sua baleia — gritou.

Cíntia puxou a chave que estava sobre a mesa do delegado e saiu em disparada. Os outros policiais correram imediatamente atrás dela.

Pega a gorda! — gritavam os policiais pelos corredores.

Ela entrou na ala das celas e trancou a porta por dentro. 

O delegado se aproximou, e com força, batia na porta.

Abre isso agora, sua vadia gorda! O que você pensa que está fazendo? — gritava pela janela de vidro que havia na porta.

Cíntia respondeu mostrando o dedão do meio.

Se aproximou da cela que prendia Alessandro e notou suas mãos trêmulas. 

Isso é loucura. Eu vou morrer por conta disso — ela afirmou, tremendo as chaves em sua mão.

Você só tá mostrando o seu amor por mim, minha querida.

Promete que não vai me abandonar?

Claro! Claro que eu prometo. Agora abre essa cela antes que os policiais notem o sumiço da chave.

Mas, eles já notaram. Eu peguei a chave na frente deles e saí correndo.

Alessandro agarrou as barras, e esbravejando gritou: — Como você pode ser tão burra, sua gorda imbecil?! Você deveria pegar a chave às escondidas e não diante de todos! Como você conseguiu se tornar escrivã?!!

Ainda segurando as chaves, Cíntia se afastou abraçando o corpo com seus braços.

Por que você está agindo assim? Por que você está gritando comigo? Eu te amo tanto! — ela gritava e chorava ao mesmo tempo.

Eu nunca vi ninguém ser tão idiota como você! Como eu posso sair daqui, se você chamou a atenção dos policiais? Você não pensa?

Ninguém vai sair daqui. Nós vamos ficar juntos e você vai me amar como sempre me amou.

Eu nunca te amei sua tonta. Você sempre esteve enganada — ele disse, com ódio na voz.

Naquele instante, um buraco se abriu e engoliu Cintia. Ela sentiu que entrou em um turbilhão e se desequilibrou. Caiu e a chave foi parar na cela à frente. 

Um homem magro, usando touca preta e cheio de tatuagens, levantou, deu alguns passos, e se agachando, pegou as chaves. Deu um sorriso cheio de maldade para Artur Alessandro. 

O ator deu alguns passos para trás e se jogou contra a parede. Em seu rosto havia uma expressão de horror.

É hora da diversão — disse o detento de toca preta.

O homem abriu a cela e se dirigiu à cela ao lado. Destrancou o portão, libertando os outros dois detentos. 

Você achou mesmo que iria fugir? — perguntou o de toca preta em direção ao ator.

Os outros dois homens se ajoelharam e tomaram as chaves da mão de Cíntia, que ainda estava desacordada no meio do corredor.

Não precisamos partir para a violência. Eu posso recompensar vocês financeiramente — clamou Artur, juntando as mãos em petição.

Você vai morrer e não temos acordo — sentenciou o toca preta.

Um dos detentos abriu a cela, mas, no primeiro passo que deu dentro do compartimento, foi surpreendido pelo cano de um trinta e oito que roçou na sua nuca. Um único disparo e os miolos do homem explodiram para todos os lados. Cíntia recarregou o revólver, e com uma mira certeira, atirou no segundo detento. A bala perfurou o pescoço, jogando o homem contra a parede. Ele morreu afogado em uma poça de sangue.

O detento da touca preta foi esperto. Entrou na cela de Artur Alessandro e sacando uma gilete do bolso, encostou a lâmina no pescoço do ator, fazendo-o refém.

Aquieta esse cano aí moça! — gritou o touca preta — Aquieta isso ai, senão o seu grande amor aqui morre.

Cíntia mirava o revólver na cabeça do vagabundo, no entanto, ele se escondia atrás de Artur. Uma tensão percorria o ambiente. O delegado e mais dois policiais, assistiam a tudo pela janela de vidro. Duas viaturas encostaram na porta do Distrito. E mais três carros de emissora estacionaram na praça em frente ao DP. Um grande circo estava montado.

Os principais canais de televisão noticiavam um incidente na delegacia em que o ator Artur Alessandro estava detido. Era seu último dia no DP e ele seria encaminhado para a prisão. Mas, parece que as coisas não correram muito bem, e um novo espetáculo era oferecido ao público. O que será que estava acontecendo com o ator acusado de agressão e estupro de vulnerável?

Cíntia ouviu quando um helicóptero sobrevoou o DP. Imaginou que um caos havia se formado lá fora. E agora, como limpar toda essa merda?

O delegado fez conchinha com a mão contra o vidro e gritou: — É melhor baixar essa arma e se render, policial Cíntia! Vocês estão cercados. Não tem como escapar!

Cíntia, sem tirar os olhos do detento touca preta, respondeu: — Prefiro morrer aqui dentro do que me render a você. Seu porco imundo!

O detento fez um movimento rápido, levando o ator a se abaixar um pouco.

É melhor ouvir o delegado, dona. Se você teimar nisso aqui, o exército vai invadir esse lugar e não vai sobrar ninguém vivo — alertou o meliante.

Tenho uma proposta! — disse Artur Alessandro.

Você não fala nada que preste — murmurou o detento.

Todos querem sair daqui vivos, não é mesmo? — argumentou Alessandro — e, eu quero que nós saiamos daqui vivos, ok!

Aonde você quer chegar com isso? — perguntou Cíntia.

O meu advogado conseguiu entrar com uma maleta recheada com barras de ouro. Vocês me soltam e eu juro que deixo a maleta para vocês dois. O que acham? Três milhões para cada um? É um excelente valor, concordam? — perguntou Artur.

O detento observou a maleta embaixo de uma cadeira. Seus olhos brilharam. Cíntia percebeu o interesse do homem, mas continuou mirando na cabeça dele. Artur focava na escrivã, tentando adivinhar seus pensamentos.

Por favor, fiquem com as barras. Eu preciso viver — pediu quase em prantos.

Acho que podemos negociar — disse o touca preta.

Eu não vou negociar com bandido — reagiu Cíntia.

Um grito agudo veio da porta à direita. Todos olharam com espanto. Cristina, a irmã de Cíntia, gritava e implorava à plenos pulmões: — Meu Deus, para com isso! Você precisa parar, Cíntia! Você é minha irmã. Por favor, larga essa arma, deixa esses homens e vem comigo! — implorava.

Cala a boca, sua vaca! — respondeu Cíntia no mesmo tom de voz. — Você nunca se importou comigo, e agora vem dar um show pra mim. Você não engana ninguém sua vadia loira!

Você precisa parar com isso. Precisa parar de se sentir tão inferior. Eu te amo mesmo você sendo gorda e feia. Eu te amo, mesmo você sendo anormal.

Você que é a anormal aqui. Roubou o papai de mim, e agora quer roubar o meu homem? — disse Cíntia.

Eu nunca roubei o papai de você. Mas, você que se isolou com inveja de mim.

Cala a boca! — gritou Cíntia, atirando em direção à janela em que a irmã estava. O vidro espatifou-se e a bala arrancou um pedaço da orelha de Cristina.

O detento aproveitou para pegar a maleta e sair da cela, carregando Artur como escudo.

O que você está fazendo? — ela perguntou.

Olha! Muita calma nessa hora. Nós podemos sair daqui e ainda ficarmos milionários. Essa é a nossa grande chance — disse o detento, eufórico. — Na minha cela, tem um túnel. Eu terminei de cavar ontem. Ele vai dar na praça. Nós podemos sair e tentar escapar. Temos o bonitão de refém e você tem uma arma. Por que não tentar?

Como assim um túnel? Vocês fizeram um túnel?

Sim, os detentos da minha facção começaram esse túnel. E sempre que um de nós vinha pra cá, dava continuidade no trabalho aí! — explicou o touca preta.

O delegado se preparava para arrombar a porta. Três agentes da tropa de choque se alinhavam para entrar na ala.

Ou a gente faz isso agora, ou é caixão e vela preta. Não sai ninguém vivo daqui — disse o detento.

Isso é loucura! — falou Cíntia.

O detento ergueu a maleta e a atirou sobre a mão da escrivã. O revólver foi lançado para longe e Cíntia caiu com a mão sangrando.

O touca preta ainda tentou juntar algumas barras de ouro que estavam espalhadas, mas Cíntia lhe alcançou e segurando uma das barras, acertou a cabeça do detento.

Uma vez, duas vezes, três vezes, e ela esmagava os crânio do homem contra o chão. A barra de ouro antes brilhante, agora estava coberta com o sangue carmesim. O rosto de Cíntia gotejava sangue e o líquido escorria de sua boca. 

Mas que merda você fez? — exclamou Artur.

Eu só quero que você fique bem, meu amor — com olhos esbugalhados e com uma expressão de loucura — Não posso te perder meu amor. Sempre ao meu lado.

Você é louca!

Cíntia correu até a cela do detento e tateando o chão, encontrou o piso oco. Removeu a pedra de azulejo e verificou o buraco abaixo de si.

Vamos! Você vai na frente — disse a escrivã.

Artur Alessandro entrou no buraco com facilidade. Cíntia desceu logo em seguida. Ela carregava a maleta com algumas barras de ouro. O ator se arrastava pelo chão lamacento, enquanto Cíntia vinha em seguida passando pelo espaço com muita dificuldade.

Eu não posso ficar aqui, eu preciso sair! Volta, volta, volta! — praguejava Artur, tendo uma crise de pânico. Ele respirava com dificuldade. Seu peito subia e descia acelerado, ao mesmo tempo em que o som de sua voz causava um ruído assustador, como de um porco prestes a ser abatido.

Volta! Eu quero sair daqui. Não posso mais ir adiante!

Cala a boca! Continua! Vai em frente! Para de gritar — Cíntia respondeu com outro grito.

Sua porca! Idiota! Estúpida! Você merece morrer! — ele praguejava dentro do buraco claustrofóbico.

Cíntia deu um grito ensurdecedor: — Cala a merda da boca!!!! — e ela apertou o gatilho no rosto do ator. Um clique seco ecoou dentro do buraco. Acabou-se a munição.

Artur lhe encarou assustado. — Você ia me matar? — perguntou de boca aberta.

Cíntia respondeu retirando uma barra de ouro e enfiando na boca do ator. Ele recuou sem conseguir falar nada.

Cíntia, com mais força, continuou a empurrar a barra, até que ela dilatou a mandíbula do infeliz, que começou e cuspir jatos de sangue e sufocar com o próprio vômito. 

Ela não parava, e continuava a pressionar, pressionar até que a barra entrou de vez na garganta dele.

Artur tombou morto. Cíntia sorriu satisfeita.

 A voz dos policiais se aproximava do buraco em que ela estava. Arrastou-se para frente até chegar ao fim do túnel. Ergueu seu corpo acima do buraco e viu a praça apinhada de repórteres que lhe filmavam e fotografavam.

Cíntia jogou a maleta com o resto das barras. Sustentou o tronco volumoso acima da terra, mas sua cintura entalou no pequeno orifício.

Ninguém lhe ajudava. As lentes somente assistiam, espantadas, A Dama de Ouros, entalada em um buraco.

Mas ela não desistia. Com muita impulsão, remexia a barriga para o lado. Remexia a gordura para o outro, e nada lhe fazia sair dali. Os repórteres por perto caíam na gargalhada. E isso, revoltou ainda mais a escrivã. Ela ergueu seu corpo com tanta força que o solo ao redor do buraco começou a ceder. As pernas de Cíntia apareceram sobre a superfície, cheias de sangue e ossos expostos. Ela conseguiu sair do buraco, mas o osso da sua perna esquerda estava dilacerado.

Naquela mesma tarde, foi levada para o hospital. Os médicos fizeram o impossível, mas tiveram que amputar sua perna esquerda. 

Ela estava medicada e lúcida. Foi deixada sozinha no leito. Ligaram a televisão. O último episódio de Coisas do Amor estava sendo exibido. No lugar de Artur Alessandro, contrataram Gilberto Menezes para fazer o par romântico com a loira protagonista. 

Gilberto Menezes era tão bonito quanto Artur Alessandro. E ele acabava dizendo para a protagonista: — Eu sempre vou te amanhar. Você sempre terá um pedaço do meu coração!

Cíntia suspirou com as palavras do ator. Pronto, tudo estava resolvido. Seu novo amor havia se revelado. Gilberto Menezes era o nome. E Cíntia foi para a prisão amando outro galã.

FIM




Conto escrito por
Hugo Martins

Produção Four Elements
Marcos Vinícius da Silva
Melqui Rodrigues
Hugo Martins
Cristina Ravela



Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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