Assim Eu Ouvi
Conto
Formato: Conto
Autor: Maria Cristina dos Santos Lima
Estreia Original: 19 Nov 2021
Sinopse
Um rapaz vai até a casa de uns vizinhos e ouve o avô contar uma história sinistra que aconteceu em um vilarejo, onde ele morava.
Assim Eu Ouvi | Conto
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A noite estava fechada, em modo assombrosa, já orvalhada e serenada, pois, naquela casa, a noite orvalhava antes do dia e o dia tinha aquele sereno estéril e inútil, quase vingativo, que regelava os músculos recém acordados. Olhando à frente via-se, na sombra, através da luz do pilar, parte do potreiro e da casa velha que ficavam a uns metros da varanda em que estavam, em espaços distintos, e marrons, dando sensação de sujeira e enodoamento. As cercas do balcão deitavam já nas amostras da idade, sem inclemência, nem correções obrigatórias que qualquer sujeito podia fazer, apenas consertar já bastava. Naquele mundinho nem sebes gemendo e chorando mexiam com os brios de alguns, pois assim todos se mantinham sentados em torno do avô, para as caçoadas do dia e da noite, e quem sabe, algum resto do troco da compra ou elogio arrancado à força do velho.
Tempos difíceis para aquela gente. Tragam o chimarrão e acendam o pito do vô que ele já espera e pigarreia. Olhando mais perto, logo atrás do cercado, via-se o saldo de uma horta, velha e perebenta, provavelmente sobra de um tempo melhor que aquele, em que as pernas e as mentes não estavam tão preguiçosas e despeitadas. Pequenas touceiras de possíveis vegetais e leguminosas extintas de sua beleza e despregadas de seus talos, uivavam, entre si, lamentos de coisas antes já cheias de bonitezas. Ali, naquela varanda, oprimindo o assoalho, estavam encravados ao chão alguns móveis de vime velhos, contando ao todo, cinco cadeiras côncavas confortáveis e uma mesinha de centro desbotada. O avô era um velho de ares sujo e repugnante, seja como quiser, sem o menor trato e tarimba nenhuma. Era ele quem ocupava a cadeira central e a qual continha almofadas para o conforto do orgulhoso idoso, e era também ali, que o velho escondia sabe-se lá o quê, podendo ser mufunfa, grana ou resto de traques para a diversão de ver pessoas gritando de susto ao passar por ele. Se alguém quisesse grana pegava da mão do diacho de oitenta e nove anos, mão esta suada e remelenta, o dinheiro passado do dia para a noite, embaixo das suas nádegas. Podia-se notar em algumas feições, ali, neste espaço do terraço, o pensamento encaracolando na cabeça de quem tentava matutar quando este tal quase nonagenário se daria por cansado deste desterro e livraria o resto de mais e mais penosos puxa-saquismos. Urgia, também, saber quanto a besta em forma de gente guardava no banco municipal. Os despistes eram diversos, atrelados a escolha de quando começaria o falatório, onde o velho sem a menor vergonha na cara, contava as gabolices de juventude e então lembrava a todos de quanto poderia ser a receita de sorte de quem garantisse a servidão para ele. Uns olhavam para a direita, onde nasceu o maior eucalipto das redondezas, cheio de folhas e folhinhas, perfumando tudo e balançando ao vento como uma rede velha e maldita. Outros preferiam mirar a esquerda onde o velho construiu por pura maldade uma privada exterior, fedida, mal feita e nauseabunda, que aguardava a visita com ares de chacota e malignidade. Como desforra foi escolhida a localização da dita bem ao lado da pereira. Era para quem tivesse estômago mesmo. Então nas proximidades se avizinhavam os leitões, porcos mesmos, que adoçavam a vida com peras saborosas e deleitosas, sem igual e sem nenhum escrúpulo. Cansados das laterais, as faces voltavam-se para o dito cujo, pois não existia mais anuência nem sabedoria do que podia ser feito, além disso. Levantar da cadeira podia ser uma má escolha, entre má e má mesmo. Um acinte para o quase presunto que poderia, se tornar, o destronamento etéreo daquele que saísse, bem como o direcionamento da raivosidade intensa da figura mais graúda da família. O ambiente geral era difícil, pois além da figura graúda figurava, para ser bem repetitivo, a figuratividade do ódio. Ódio entre todos, de todos para todos e entre eles. Era assim mesmo. O desejo de cuspir no sapato do outro e melecar tudo era grande também.
Foi num momento destes que cheguei à casa, em plena semana de halloween, convidado por um deles, não lembro qual, para conversar e participar da conferência. Antes mesmo de me sentar, e, terminadas as mesuras, já senti aquele cheiro acre vindo de um lado que sabe se lá qual. Aí tive a impressão que tudo fedia. Enquanto tamborilava os dedos na cadeirona e esperava o que se ia realizar, de normal, naquela pasmaceira, matutava se tinha um lugar mais feio e sujo que aquele. Também naquele ambiente ninguém dava as costas para ninguém de medo da faca. Era prevenção daquelas, de todos com todos. Ninguém limpava para não dar o gosto ao outro de estar num ambiente aprazível. Servidos os bolinhos da graxa, oferecidos a mim com finura, delicadamente recusei alegando um mal-estar advindo de outrora. É claro que, de modo algum, deixei pressentir que o nojo se deu assim que atravessei o limiar do solário.
Logo deu início o falatório do dono da casa e eu, Genório Tavares, me calei aguardando o ruído vocal do rei do chiqueiro. O que vou contar aqui não é mentira minha, são palavras, talvez enganadoras, de quem conta. Não foi escolha minha. De qualquer forma o assunto beira o incoerente, o curioso, o diverso pelo menos. Assim eu ouvi. Assim vou contar.
Há tempos atrás, começou a aparecer, em outras paragens, antiga morada do velho, animais mortos, na verdade, trucidados, sem a menor clemência, parecendo coisa monstruosa, de malfeito mesmo. Todo o povo começou a estrebuchar pavor e, como se estivessem em uma pandemia, passaram a se trancar em casa. Janelas e portas na trava. Mulheres, meninas e crianças já não saiam mais. O avô, em assembleia na venda do lugarejo, com seus conhecidos, discutiam o que poderia estar acontecendo, quem ou o quê podia ser o desalmado. Se fazia necessário, urgente mesmo, uma caçada. E assim, passou a ser marcada todas as noites, às vinte e duas horas, na venda, uma reunião para discutir as ações, os procedimentos, para ir à batida e acabar de vez com a danação.
O velho tinha entre eles um grande amigo, José Batista, em quem punha suas considerações, pois José era alto, forte, sabido, destemido, bom de tiro e certamente valoroso para a lide em questão. O problema era que, José, nem sempre estava disposto para o expediente em pauta, e às vezes, faltava ao ofício, deixando o nosso locutor da narrativa agastado.
Em determinado dia, logo cedo, apareceu o ferreiro e a mulher, aos gritos, no centro da praça, desesperados, pois a filha estava sumida e dois novilhos mortos e despedaçados no campo. Não tinham ouvido nada, nem um barulho sequer, nem uma pá de vento. Quando acordaram, de imediato, perceberam a porta dos fundos aberta, completamente escancarada, de onde se sentia um vento forte se agitando para dentro da cozinha, e a filha não se encontrava no quarto, onde comumente, dormia até tarde. A donzela só levantava da cama quando já bem tarde e completamente repousada. Diziam que a pobre moça era anêmica, doentia. Vivia sorumbática, sem amigos, numa triste vida. Às vezes sumia na floresta e lá ficava fazendo sabe lá o que. Curiosidades que entravam na mente dos rapazes, interessados em puxar uma conversa com ela, pois a danada era pra lá de bonita. Buscaram a jovem por tudo, dentro e fora da casa, nos fundos, próximo ao riacho, no galinheiro, no milharal e no campo, onde encontraram as reses mortas. O avô, atinou no seu íntimo, que aquela história ia dar mais pano para manga do que fiava e uma ideia começou a rastejar em sua cabeça, primeiro devagar, no rastejo mesmo, depois mais depressa, até virar um desassossego daqueles. Granjeou dois rapazes novos e fortes que estavam por ali e foi atrás do Pacheco, um velho conhecido, respeitado e bom de arma, e era o único jeito, já que José estando de corpo mole, nem tinha aparecido na noite anterior na venda.
Pacheco considerou a história toda e achou por bem, ajuizando de forma categórica, que o melhor era ir atrás de José, contar também com sua assistência, formando assim um grupo mais exitoso e, daí sim, iniciar as buscas devidas. E assim foi feito e o grupo partiu, armado, para a casa do citado.
Um dos rapazes avistou de cima do morro, ao longe, a casa de José, já ponderando, que possivelmente a porta da casa se encontrava escancarada e o cachorro endoidecido lá fora a latir. Realmente, Tigre, o cão, estava girando e alucinando, deitando baba de tão nervoso. Logo que Pacheco avançou para a porta da casa fez um trejeito de nojo, medo e um apavoramento subiu por sua espinha, gelificando o corpo. Mirou as botas e viu que pisava em sangue fresco e a poça do líquido estava distribuída por toda a entrada, na cozinha e corria para dentro, nos cômodos íntimos. O grupo seguiu em frente, aos poucos, em fila indiana, com as armas em seta, prevenido para o que os esperava. O velho foi o primeiro que entrou no quarto de José, e, balançado pelo pavor, viu o que não esperava. A moça bonita e doentia, filha do ferreiro, estava sentada na cama, coberta de sangue. Quando os viu abriu um sorriso satisfeito, que mostrava fiapos de tecido enfiados entre dentes. Deitado ao seu lado, de costas, estava José, com o dorso já em adiantado estado de avaria, carcomido e sangrento. A camisa rasgada a dentes, já, toda vermelha. Um dos rapazes, sem pensar duas vezes, descarregou a pistola na moça. Para maior ebulição do clima geral, a gaiata deu, de um salto só, para fora da cama, e em disparada, passou por todos e fugiu levando junto com ela, não se sabe como, os cinco tiros. Nunca mais foi vista. Não se sabe se morreu ou se viveu. Também não se soube mais que fim levou sua gente.
Quando dei por mim, estava estático na poltrona de vime, comendo bolinhos da graxa e bebendo a cachaça do copo do moço sentado ao meu lado. A história me impressionou muito e nunca consegui saber se era verdade ou mentira, nem identifiquei o povoado. Saí como entrei, pelo portão da frente, encucado, olhando em volta, pensando que aquilo só podia ser coisa de bruxa, já preocupado se encontro a tal moça no caminho.
FIM
Palavras Obscuras - 1x06 - Duas Estatuetas e Marina de Pancetti
Duas Estatuetas e Marina de Pancetti
de Pedro Franco
Manoel, que dia é hoje?
Raquel, dois de agosto, terça-feira.
Cinco minutos depois;
Manoel, que dia é hoje?
Raquel, dois de agosto, terça=feira;
Minutos depois. Manoel está lendo o jornal, para e, como das outras vezes, responde.
Raquel, dois de agosto, terça-feira.
E o dia transcorre com perguntas repetidas, idem respostas
Só quem teve a oportunidade de participar, sabe o infortúnio que é conviver vinte quatro horas e todos os dias com alguém que, perdendo a memória recente, passa o dia fazendo as mesmas perguntas, ou repetindo pequenos comentários sobre o passado. Sabe-se que está com a Doença de Alzheimer, demência senil, ou que outra etiqueta diagnóstica a Medicina tenha colocado no coitado.
Que dia é hoje? _ Sexta-feira, quinze de março.
Cinco minutos depois. Que dia é hoje? _ Sexta-feira, quinze de março.
Em seguida a mesma pergunta e ouve sexta-feira, quinze de março. Se julgar que, quem escreve, poderia ter posto apenas uma pergunta e a respectiva resposta, para não cansar o'leitor, peço que se lembre da posição de quem, tendo amor, ou amizade, pelo enfermo, fica respondendo e respondendo, procurando não perder a paciência e sem esquecer a ternura, até porque mesmo a noite continua a pantomima.
Você já telefonou para Raquel? Telefonei, ela está bem e mandou beijo para você.
Você já telefonou para Raquel? Telefonei, ela está bem e mandou um beijo para você.
Raquel é a maior amiga de Ester e mora com o marido em Houston no Texas. Manoel foi lá fora ver se a Veja já chegara e, ao voltar, ouviu. Você já telefonou para Raquel? _ Já, ela está bem e mandou um beijo para você. Manoel e Ester estão aposentados e passam juntos às vinte e quatro horas do dia, pois, se há saídas da casa, vão os dois. Corda e caçamba diriam os antigos.
Que dia é hoje? Não vamos almoçar? _ Já almoçamos.
Não vamos almoçar? _ Já almoçamos. Você já telefonou para Raquel?
Se Manoel liga a televisão para ver a novela, Ester não consegue se lembrar da cena anterior e desanda a perguntar sobre o enredo, sobre os personagens e Manoel, sem querer, perde o fio da sequência e fica difícil entender o que decorre. É comum ir ver jogos do Botafogo com eles. Ester pergunta. Que jogo é este? Botafogo e Flamengo. O Botafogo é o de vermelho. O Botafogo é o de preto e branco. Que jogo é este? O Botafogo é vermelho? Revezamos, respondendo as perguntas e o jogo perde um pouco da graça, porque outras e outras perguntas são feitas.
Quando saem de casa, Raquel só tem prazer, faz compras e sempre quer os mesmo objetos. Sua graça é comprar e já tem oitenta e três guarda-chuvas e trinta e sete capas. Há uma semana Manoel e eu contamos suas coleções de peças durante sua breve sesta. Compadre, adoro comprar. Todas as mulheres gostam de comprar, inclusive sua mulher, que também adora guarda-chuvas. E são objetos úteis, ainda mais para quem mora na cidade, onde parece que chove todos os dias. Você e Manoel riem, porque não parecem saber que todas as mulheres gostam de comprar. Fica muito zangada se é contrariada e recorre a termos que nunca usaria antes.
_ Manoel pare o carro, naquela vitrine vi uma capa. Estão na Avenida Quinze de Novembro e não há possibilidade de estacionar. Que mania você tem de não parar logo. Agora vamos ter que andar. O dinheiro não é o maior problema para Manoel. Diga-se que há muitos e muitos anos convivo com os dois e também sofro o bombardeio de perguntas. Sempre me dei bem com Ester e, quando enviuvei, tive muito apoio dos dois. Só que Ester não é mais Ester. Quando a doença descrita por Alois Alzheimer a atacou, a vida dos dois mudou completamente e os que tinham vida animada, passaram a viver da forma restrita.
A casa está com ares de decadência, porque meu amigo está cansado e vai deixando a vida correr. E o campo de interesse de Raquel minguou completamente ela no momento se comporta agora como criança, só que muito mimada. Mimada por Manoel, que nem pensa em contrariá-la. Os dois se casaram cedo e Manoel é meu amigo desde os seis anos. Fomos companheiros do jardim da infância ao vestibular. Fui à Advocacia e ele à Engenharia civil. Manoel e Ester foram meus padrinhos de casamento e, ao ficar viúvo, ainda mais os acompanhei. Não houve tempo para termos filhos. Minha mulher morreu em acidente de trânsito, três meses após o casamento. Já meus amigos não tiveram filhos, pois Ester é estéril apesar dos tratamentos feitos e na época em que eram jovens não havia inseminações artificiais, ou métodos de fazer ter filhos à força. Com a aposentadoria, para melhor poder cuidar de Ester, vieram morar em Petrópolis numa pequena casa no Valparaíso.
Como de costume fui visitá-los no sábado pela manhã e só não dormi em Petrópolis, porque tinha solenidade na OAB-RJ de noite no Rio. Desci a serra por volta das dezoito horas. Julho, frio e a viagem, que faço na direção de automóvel desde os tempos de rapaz, foi feita sob o ruço. Estava com ânimo pesado, quando deixei os dois, estado de espírito que muito acontece, quando os deixo. Manoel tentara tudo para melhorar o estado de saúde mental de Ester e ficou muito zangado quando um psiquiatra sugeriu a internação, para dar-lhe um pouco de paz. Fui explicar-lhe a intenção do médico e quase que a zanga se volta contra mim. Confesso que durante o evento na OAB, pensei muito na vida que Manoel e Ester estavam levando na velhice.
No domingo de manhã fui acordado e dormira mal, pelo telefonema de Manoel, que me disse chorando que Ester tinha morrido dormindo e que chamara a ambulância do SAMU em urgência. Este serviço tinha sede no Valparaíso e o médico constatara a morte de Ester. Tomei correndo uma xícara de café e subi a serra o mais rápido que pude. Chegando lá, já encontrei a polícia técnica, pois o médico, que atendera Ester, suspeitou de envenenamento por cianureto. Manoel foi acusado de envenenamento e o mínimo que se disse foi que fizera uma eutanásia caridosa. Apresentei-me logo como seu advogado, porque tinha certeza, até por conversas anteriores, que ele nunca iria cometer qualquer tipo de ação lesiva à saúde de Ester. Nunca vi amor e paciência como os dele. Manoel estava transtornado. Infelizmente a imprensa em época de poucas notícias deu destaque ao caso, que chamou de “A morte de Ester”. Foi notoriedade desusada e indesejada. E apareceram logo três vertentes na mídia e suscitaram argumentos de peso. A primeira foi a tal eutanásia caridosa, a segunda eutanásia por esgotamento pessoal e a terceira, a que me aferrei como seu defensor, foi de assalto por elemento externo.
A polícia técnica trouxe fatos contra Manoel e outros a favor da minha tese. Resumindo, a morte ocorrera entre 21 e 22 horas, não havia sinais de arrombamento na casa e ninguém tinha chaves da casa, exceto as que estavam de posse do Manoel. Ele admitia que fechara toda a casa, depois que saí e passado até a tranca na porta da cozinha. Não recebera qualquer visita. Estas escasseiam, se há doentes com Alzheimer e afins. A porta da frente tinha a antiga chave MSN e também uma fechadura mais moderna, tipo Papaiz. Na casa foram encontradas as impressões digitais do casal, da empregada, as minhas e de um elemento desconhecido. Deste elemento não se encontrou a identidade nos bancos de impressões do país.
Na caneca de Ester foram encontrados vestígios de cianureto, na do Manoel de Flunitrazepam e o casal, sempre antes de deitar-se, tomava chá de camomila, cada um em caneca própria e com as iniciais de cada nome, E e M. Nas fechaduras da porta da frente foram encontrados vestígios, como se chaves novas tivessem sido introduzidas. A empregada, que estava em estado de choque, que saia nas sextas à tarde e só voltava na segunda-feira às dez horas, chamada pela polícia no próprio domingo, notou que na sala faltavam duas pequenas e valiosas estatuetas e um quadro de pequena dimensão, uma marina de Pancetti. A empregada disse ainda que na sexta limpara as duas estatuetas e, ao sair na sexta, colocou-as na sala no lugar de sempre. Enfim, todos os dados podiam inocentar Manoel, ou culpá-lo e dependeria da minha defesa o resultado do julgamento. A impressão digital de desconhecido era muito importante para mim. Contava também o brilho da promotoria. Só que tinha absoluta certeza de que Manoel nunca recorreria à eutanásia e no sábado antes de descer para a solenidade, tínhamos conversado sobre a evolução da doença de Ester e Manoel contara que ainda ia tentar mais um tratamento, aprazado para aquela semana, preconizado por médico com consultório em Areal. Suas esperanças só não eram maiores que sua paciência, em repetir e repetir respostas.
Com a pressão da mídia o julgamento foi acelerado e tive a oportunidade de fazer a melhor defesa de minha vida, levando três jurados às lágrimas. Quando um advogado tarimbado tem certeza da inocência do cliente, pode de fato operar defesa de mérito. Parece que a verdade cria empatia do advogado com jurados, acontecimento que sempre beneficia o réu. Consegui com os dados que tinha e com a pormenorizada descrição da vida dos dois chegar à absolvição. A promotoria bateu na tecla, se não foi o marido, quem foi. E a resposta de fato não havia. E a impressão digital nada vale e os vestígios de chave nova foram anulados? Fui também ainda que de forma sub-reptícia na usada “in dubio pro reo”. Manoel viveu mais dois anos e meio, depois que foi julgado inocente. Permaneceu muito triste, só que em relativa tranquilidade.
Vale dizer que a história daquela noite macabra está guardada em cofre de banco, a ser aberto após minha morte. Neste cofre estão ainda duas estatuetas, uma pequena marina de Pancetti, uma luva com impressões digitais, adquirida em viagem que fiz à Índia um ano antes da morte de Ester, um vidro com pó obtido em serralheria, uma caixa de Flunitrazepam de 2 mg, onde faltam dois comprimidos e um vidro com um resto de cianureto.
Produção Four Elements
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO