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Violência Urbana I - Capítulo 02 - Um Caso de Morte Literária

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CONTOS CONTEMPORÂNEOS DA VIOLÊNCIA URBANA


Antologia de
Vários Autores

Capítulo 02 de 09
"Um Caso de Morte Literária"
César Luís Theis


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Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 2018.

O despertador não parava de reclamar atenção, e não estava disposto a levantar, porém seus constantes protestos me impediam de pensar outra maneira de resolver o litígio. Mais uma manhã cinza, tomei um banho e depois o café, antes de sair escovei os dentes, a caminho do trabalho observava pela janela do carro, nada parecia diferente, o trânsito de sempre, os mesmos sinais fechados e as músicas repetidas tocando no rádio, um pensamento fugaz, outro dia cotidiano se anuncia.

Cheguei ao trabalho no horário costumeiro, deixei o carro no estacionamento, desembarquei e caminhei em direção a entrada da delegacia, ao me aproximar como habitualmente, investiguei o ambiente com um olhar, enquanto vinha em minha direção Mônica, nossa nova estagiária, estava agitada, passos apressados, seu intento era interceptar-me, parei e preparei o sorriso que acompanharia o bom dia, enquanto imaginava o motivo do seu desassossego, mas, ainda era incapaz de desvendar o mistério que envolvia seus motivos, intimamente pressentia que não se tratavam de boas notícias... e na cidade maravilhosa em plena quarta-feira de cinzas não havia mesmo como ser diferente.

Nem tive o tempo de cumprimentá-la, Mônica me recebeu com um - vamos chefe, temos outro - talvez aquela frase até fizesse sentido, afinal estes são tempos bárbaros, e este parecia outro dia cotidiano de trabalho, seguimos ao centro da cidade, chegamos precisamente às 9h18min, alcei um olhar ao local, em frente a um sobrado no número 1006 da rua do Ouvidor, que contrastava com as outras construções arquitetônicas daquela rua.

A rua é famosa... prostitutas, cafetões e traficantes, criaturas soturnas que se esgueiram sorrateiramente pelas sombras do centro da cidade, já havia investigado naquela vizinhança mais de uma dúzia de assassinatos, de modo que conhecia até alguns mendigos que perambulavam por aquela área da cidade.

Naquele momento, enquanto o olhar passeava pela extensão da rua uma cruel rememoração de sangue me veio a memória, o corpo do mendigo queimado embaixo do viaduto, a prostituta encontrada com a garganta dilacerada num beco escuro ali próximo, o bêbado esfaqueado em um bar na outra esquina, por que não tinha dinheiro para pagar a conta, e novamente o pensamento recursivo em ocorreu “estes são tempos bárbaros”.

Mas, fui chamado a realidade do ofício, inicialmente isolar a área, afastar os transeuntes curiosos, que sempre contaminam a cena de crime, também jornalistas, sedentos por uma foto para as famigeradas notícias do meio dia, e a presença da imprensa sempre complica a investigação em qualquer caso, e anteriormente, no caminho, Mônica havia me informado, se tratava de um famoso escritor.

Sempre avistava os repórteres rodeando como abutres a delegacia ou de plantão na porta do hospital a espera de alguma de qualquer desgraça, prontos a estampar em rede nacional o na capa dos famigerados jornais uma foto de um tiroteio ou de algum corpo... era sempre a mesma coisa, nós tentávamos encontrar vestígios que pudessem leva a prisão do criminoso, eles alardeavam qualquer bobagem pela audiência ou para vender jornal.

Subimos pelas escadas de um sovino corredor, as paredes revelavam rachaduras dos açoites do tempo, pelo chão lascas de tinta, entrei e enquanto cruzava a sala avistei o corpo, estava sentado em uma cadeira de madeira sem pintura, e de repente avistei a silhueta de um corpo em frente a máquina de escrever.

O corpo debruçado sobre a máquina, sem nenhuma folha de papel, o sangue que escorreu do furo na lateral da cabeça e depois por entre as teclas, manchou o canto da pilha de folhas sobre a escrivaninha, e seguindo fez leito a procura de destino, até formar uma poça... o odor é inconfundível, cheiro de sangue.

E como o prenúncio de um último insulto velado, o rosto estava coberto com uma máscara, me aproximei e enquanto me abaixava avistei, era o coringa, especificamente o tradicional joker das cartas de baralho. Embora aquela não era uma simples mascara, destas compradas em lojas de fantasias de carnaval, possuía um material de qualidade e acabamentos coloridos bem refinados, sem dúvida o material branco era porcelana, tinha adereços feitos de tecido e uma pintura colorida que guardava um estilo veneziano.

Continuei o escrutínio da cena, no centro o corpo mascarado debruçado sobre a máquina de escrever, os músculos rígidos, a pele pálida com tom amarelado-acinzentado, a cianose dos lábios e das unhas, o copo com uísque pela metade, a garrafa próxima a máquina de escrever ao alcance da mão direita, quase vazia, mostrando que ele era destro, não havia marca ao redor do copo, então bebia o uísque puro, pois se tivesse colocado gelo o suor das bordas do copo deixaria a marca circular na madeira da escrivaninha.

Na estante de madeira branca ao lado da escrivaninha inúmeros livros, a maioria com as capas desgastadas, porém, nenhum parecia ausente, definitivamente até a sequência dos volumes estava correta, ou alguém havia tido frieza suficiente para organizá-los ou aquele homem possuía hábitos metódicos, o que não seria algo muito incomum ao perfil de qualquer pessoa velha e solitária.

Curiosamente, embora nada parece faltar uma pequena imagem de nossa senhora estava em uma das prateleiras, solitária, parecendo contrastar com aquela sistemática arrumação, talvez uma pista, uma ação deliberada ou um descuido cotidiano de alguém contratado com a incumbência de faxinar a casa do escritor. A pequena imagem era...

E, fui interrompido, pelo legista, vinha removê-lo, confirmou a identidade, registrou a temperatura corporal, tirou várias fotos da cena e inclusive do revólver, preencheu o formulário padrão do relatório, então inesperadamente se virou e fez uma inflexão acintosa carregada de ironia quase jocosa, - é doutor, aparentemente este foi suicídio, acho que foi o último carnaval do coringa - propositadamente ao mesmo tempo me entregou a cópia carbonada do formulário com as informações pré-autopsia.

Nada me causava mais náuseas que a leviandade frente a morte, pois destes que se foram, nenhum eco de um grito poderá ressoar em resposta as zombarias dos que ainda vivem, contudo, nada é mais inexorável que um silêncio, ao menos para os que sabem ouvir!

Percebi que mesmo eu estava apático, afinal estes são tempos bárbaros, e nossa humanidade está constantemente sendo escamoteada, até o ponto da conformidade se transformar em indiferença... e por conseguinte até mesmo em um doentio escarnio com a brutalidade do mundo.

Mas, era a hora de recomeçar o trabalho investigativo, o perímetro da cena estava isolado, o corpo havia sido removido, as funções burocráticas cumpridas, geralmente preferia fazê-lo sozinho, afinal do que servem grilos falantes para quem quer resolver um enigma, Mônica meio a contragosto voltará para a delegacia, queria ficar, contudo, a voz de que precisava era do meu pensamento.

Precisava interrogar a cena, idear ser o próprio suicida ou assassino, conjecturar os passos pela casa, dimensionar as ações, pressupor os movimentos, talvez presumir motivos e finalmente prognosticar a conclusão, afinal são os detalhes que respondem à pergunta - o que aconteceu? - e sabia que logo o caso seria notícia na mídia e a delegacia ficaria cheia de repórteres e suas intermináveis perguntas.

Nenhuma solução é produzida pelo nada, na verdade tudo mais se assemelha a um quebra-cabeças, onde a intenção e o motor dos acontecimentos, que criam uma cadeia de eventos e apenas do que temos certeza é do ato final, o cadáver, porém, o realmente se precisa descobrir é a ordem no caos ou o caos na ordem... a peça que não se encaixa ou a sequência que por assim dizer era perfeita, e logo falsa, já que na vida cotidiano sempre existe certa causalidade nos eventos que não podem ser controlados.

No interior do sobrado a particularidade da dispersão da mobília, transmitia um sútil vazio melancólico, e me levou a examinar hipóteses sobre o inquilino, a indagação logo foi elucidada pelas memórias que emanam dos singulares objetos acumulados, provenientes de uma vida literária reclusa, resumida em uma prateleira de troféus, empoeirados, porém, nenhuma foto de família, detentor de um espalmado saldo bancário e um pequeno sobrado no número 1006 da rua do Ouvidor... e é claro, antes que esqueça, possivelmente de um revólver.

Abri uma gaveta da escrivaninha, apenas com alguns extratos de uma conta bancária minguada, provavelmente não seria uma tentativa de sequestro que acabou dando errada, era um escritor famoso, mas, aparentemente não rico, nenhuma marca na poeira sobre os móveis que pudesse indicar a ausência de qualquer objeto, o dinheiro estava na carteira, estes excluíam completamente a possibilidade de um assalto, os objetos dispostos e ordenadamente testemunhavam que não havia ocorrido uma briga recentemente naquele ambiente.

O copo de uísque era o único que não estava no lugar junto aos outros, a garrafa também tinha uma pequena camada de poeira, combinando como as outras junto aos copos do bar, que indicava que ele não havia saído para comprá-la, e que estava a um tempo considerável em casa, o que eliminava a possibilidade de alguém tê-lo visto pela vizinhança, também aparentava estar sozinho, pois não havia outro copo fora do lugar ou lavado.

Inicialmente nada indicava alterações na cena, a linha do tempo dos acontecimentos estava coerente, mas, a perfeição realmente é que mais consome as certezas em uma investigação, afinal somos humanos, nossa natureza é para descuidos, pequenos desastres ou até eventualmente algum azar, qualquer que seja a ordem no caos sempre compõe um indício para suspeitas.

Novamente procurei entre as folhas grudadas pelo sangue seco, algum bilhete, pois os suicidas, deixam suas revelações na escrita derradeira, afinal todos fazemos algum alto juízo sobre nós mesmos, sobre um elementar altruísmo no acaso do ato de viver, inventamos um compósito existencial heroico que se sobressai as comezinhas e incongruências do cotidiano da vida... e em caso de morte provocada a história precisa do ponto final.

Mas, só encontrei páginas de um manuscrito manchadas, ao lado esquerdo da máquina de escrever, no título - A História de um Escritor Personagem - que naquele momento acabou por me causar considerável avocação investigativa. Peguei-o e procurei no canto da sala onde sentar, pressentindo que deveria ler aquele manuscrito.

E, logo no primeiro capítulo fui surpreendido: Sim, suicidou-se, conto logo o final, pois não gosto de suspenses ou alimentar falsas expectativas, como estes tipos que ao escreverem escondem as verdadeiras intensões entre subterfúgios literários, assim como faz a sorrateira morte entre os mortais.

E agora que sabes do final, que tu decidas, se te convém saber dos motivos, pois depois da morte nada a dizer, só existe o eterno inexequível silêncio, então só resta anteceder, afinal não foi assim sem mais nem menos ou por falta de coisa melhor a fazer que tirou a própria vida... e também não poderia fazê-lo sem um preparo cuidadoso, pois ninguém quer errar no último ato da vida.

Estava abarcado entre a realidade de um suicídio... ou talvez um assassinato... e a ficção de uma obra literária, que de forma perfeita se sobrepunham incessantemente, as cores das paredes, os objetos, a disposição dos móveis, o ângulo dos raios de sol matinais que cruzavam a janela de vidro incidindo sobre os objetos da escrivaninha e produzindo uma singular trama de sombras no assoalho da sala, gradativamente me percebia aprisionado em um universo incomensurável de sucessivos déjà vis, a ponto de não saber, se as frases atribuíam sentido a realidade... ou os objetos e fatos que imanavam substancial materialidade ao entrecho ficcional da narrativa, permanecia alternando entre a condição de investigador, leitor, escritor e personagem.

Passadas das cinco horas ainda examinava atenciosamente as páginas finais do manuscrito, a procurava de uma pista ou prova contundente para a solução do caso, e entre as páginas encontrei uma peça do quebra-cabeça: “Posicionou displicente o revólver, o tambor estava completo, o dedo no gatinho, um último suspiro e o escarro fumegante da boca do revólver atravessou sua têmpora até parar na parede, o corpo em último movimento deitou-se sobre a velha máquina de escrever, que lhe ajudou a eternizar para a literatura algumas alegrias e as mordazes tristezas, desafetos, saudades e decepções da vida de escritor”.

Então conclui que o tiro deve ter produzido um estampido que ecoou entre as paredes para o estreito corredor e provavelmente chegou aos ouvidos de quem estivesse na calçada próximo ao sobrado, porém talvez ninguém transita-se naquela hora, pouco antes do amanhecer.

Então analisei não poderia ser a quarta-feira de cinzas data mais apropriada para pôr fim a uma vida, afinal realizará seu terminativo desejo de brincar o carnaval como se não houvesse amanhã, e para isso escolherá a mais apropriada das mascará ao enredo da trama mortal, o coringa, que as multifaces tão bem simbolizam quem passou a vida inteira na gangorra entre realidade e ficção, escritor e personagem.

Recoloquei o manuscrito sobre a escrivaninha, e com mais alguns passos me aproximei da janela de vidro, e entre as sombras da poeira e teias de arranha que se estendiam do lado de fora, avistei alguns pássaros brincando alheios em uma figueira, se empoleirando de um galho a outro, como quem procura um lugar certo, mas, sem a verdadeira pretensão de encontrar.

E este, talvez fosse a peça final, capaz de compor a realidade, não fora capaz de ajustar-se ao mundo, e entre tantos personagens talvez só estivesse a procurar por um “eu”, mas, desconexo do mundo não foi capaz de criar um que pudesse ser convincente... ou pela complexidade de sua essência ou pela natureza abreviada do talento de escritor.

Porém, na presença da morte, pouco da diáspora de uma existência pode ser abarcado em uma singular conjectura de palavras, neste ponto, nestes tempos bárbaros enquanto alguns morrem em silêncio entre o concreto e o aço dos prédios da cidade, outros seguem vivendo, e poucos que entre tantos, se é que estes existem encontraram um lugar neste mundo que possam dizer verdadeiramente ser seu... e nele viver.

Me afasto da janela, lanço uma última olhada para a história de uma existência que os objetos daquele sobrado registram, e nada há para reclamar ou lamentar, somente a resignação que o silêncio espraia, quando alguém sem encontrar lugar no mundo nega-se a viver nestes tempos bárbaros, e por vontade própria deixa este mundo a sua própria sorte.

E dando prosseguimento, pois o tempo deste mundo é absorto a vontade do narrador, e no momento que sai do sobrado no número 1006 da rua do Ouvidor, estava convicto, pelos vestígios e os motivos, se tratava de um suicídio, porém, meu escrutínio investigativo inda não conseguia elucidar outra questão... e enquanto descia pelas escadas do corredor uma inquietação acerca do título da obra me consumia, “a história de um escritor personagem”, seria o manuscrito o registro do intento de um escritor suicida... ou este suicídio foi um plágio literário?!?


Fim.

conto escrito por
César Luis Theis

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela



Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 03 - Um Ladrão de Doces

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10:00 min    


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CONTOS CONTEMPORÂNEOS DA VIOLÊNCIA URBANA


Antologia de
Vários Autores

Capítulo 03 de 09
"Um Ladrão de Doces"
Fabiana Prieto


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Denúncias de brigas de vizinhos, furtos, algum acidente ocasional. Era mais um dia comum na rotina daquela delegacia, até a garotinha entrar pela porta. Não mais que uns cinco anos de idade, de uniforme e botas cor de rosa, seus cachinhos negros pulavam conforme ela se aproximava brava do balcão de atendimento.


— Moça, ô, moça! — ela chamou, batendo no balcão.


A policial que estava ali, distraída vendo documentos no computador, se surpreendeu ao ouvir a voz infantil e procurou por quem chamava até olhar para baixo e encontrar a criancinha.

— Olá. Em que posso ajudar, meu bem? — sorriu simpática. Procurou com o olhar o responsável pela menina, mas ninguém parecia tê-la acompanhado. Como uma garotinha chegara até ali sozinha?


— Eu vim fazer uma dena... denin... deníncia! — a criança falou com tanta convicção que a mulher se segurou para não rir, apesar da preocupação.


— E que “deníncia” a senhorita quer fazer? — perguntou enquanto mais policiais viam a cena e observavam.


— De rôbo! Meu amigo robô os meus doces!


Alguns não aguentaram e riram contidamente. Não dava para levar a sério uma coisinha tão fofa tentando parecer adulta. A policial tossiu para disfarçar o riso e entrou no clima.


— Certo, certo. Vamos registrar a sua ocorrência, venha comigo — ela deu a volta no balcão, pegou a menininha pela mão e levou-a para um local mais calmo na delegacia. — Qual o seu nome, querida?


— Angélica!


— Ok, Angélica — ela botou a criança sentada em um sofá de uma sala de espera. — Quero que fique aqui enquanto eu chamo um dos oficiais para te ouvir e registrar a sua “deníncia”, está bem?


— Tá bem! — a menina concordou mesmo sem entender muita coisa.


A policial a deixou ali e foi até o escritório de um dos oficiais de plantão. O investigador terminava de arquivar um caso quando ela bateu no vidro e abriu a porta.


— Tenho um caso pra você, Kayler — entrou após receber permissão.


— Qual caso? — ele perguntou sem tirar os olhos da papelada.


— Tem uma garotinha aqui querendo fazer uma denúncia de furto de doces.


O homem largou a pasta e a olhou com uma sobrancelha erguida.


— É sério isso?


— Sim. Ela veio até aqui sozinha e ninguém apareceu reclamando do sumiço de uma criança, pode tentar contatar os pais?


O investigador deu um suspiro e concordou com a cabeça.


— Traga-a aqui.


A policial assentiu e pouco depois surgiu com a garotinha e deixou-a com ele. Analisou rapidamente a menina, que parecia bem. Se não fosse o fato de ter chegado sozinha até ali, não diria que havia algo de errado com ela.


O homem sorriu, chamou gentilmente a criança mais para perto e ofereceu uma bala a ela, que aceitou alegre dando pulinhos e depois se sentou na cadeira enquanto comia o doce.


— Olá, eu sou o oficial Kayler, mas pode me chamar de Dênis. Qual o seu nome?


— Angélica!


— Oi, Angélica, pode me dizer como foi que você chegou aqui sozinha? ele puxou sua cadeira para perto da menina, pegou um papel e caneta, e fingiu anotar o que ela lhe contava.


— Eu fugi de casa e vim até aqui poqê queria fazer uma deníncia — ela explicou, tentando parecer mais madura enquanto balançava suas perninhas.


— O que aconteceu? — perguntou sério.


— Ele robô os meus doces! — a menina inflou as bochechas, indignada. Era uma gracinha.


Dênis fingiu um sorriso, sendo o mais paciente possível com a criança. Se a assustasse, seria difícil de fazê-la colaborar e descobrir o problema.


— E quem seria ele?


— O meu amigo! Ele disse que não me daria mais doces poquê eu não me compotei! Deve tê comido tudo sozinho! Tomara que tenha dô de barriga!


O oficial levara aquilo como uma brincadeira até aquele momento, mas agora as coisas começavam a ficar estranhas.


— E esse seu amigo... Quantos anos ele tem, Angélica?


— Eu não sei. Acho que a idade da mamãe — ela negou com a cabeça. — Quero água.


Dênis buscou para a menina e entregou o copo, esperando que ela bebesse antes de continuar.


— Onde está a sua mamãe?


— Em casa — ela respondeu, voltando a balançar as perninhas. — Ele disse que eu não posso vê ela poquê ela ta de castigo e disse que eu ficaria também se não me compotá. Aí quando eu sou boazinha ele me dá doces!


O homem se alarmou. Havia algo de muito errado naquela história e certamente a mãe da menina estava correndo perigo. Ele se levantou e fez um afago na cabeça da menina, sorrindo enquanto tentava lhe transmitir segurança para que ela não desconfiasse de nada.


— Angélica, pode deixar que eu vou resolver isso com o seu amigo, está bem? Você pode ficar aqui com a policial Filch por enquanto?


— Sim!


— Boa menina.


Dênis saiu da sala e chamou a oficial que atendera a garotinha.


— Tome conta dela para mim. Vou sair atrás de mais informações.


— O que houve?


— Parece um caso de prisão domiciliar. A mãe dela pode estar em perigo, mas não deixe que a menina saiba, entendeu? Fiquem em alerta, posso precisar de auxílio.


— Sim senhor — a mulher concordou, tensa, e o emprestou seu computador por um momento.


O oficial pesquisou rapidamente onde ficava a escola da menina, graças ao uniforme que ela vestia. Deixou a menina ali na delegacia sob o cuidado dos oficiais, entrou no carro e minutos depois chegou à instituição. Algumas crianças brincavam no pátio, inocentes e alheias ao que estava acontecendo. Preocupava-lhe não poder protegê-las por completo, era impossível sempre saber quando um perigo estava à espreita.


O homem caminhou até a secretaria e mostrou o instintivo para a recepcionista.


— Agente Dênis Kayler, 15º distrito. Gostaria de falar com o diretor da escola, por favor.


A mulher arregalou os olhos e concordou com a cabeça, preocupada.


— Algum problema, senhor Kayler? Aconteceu alguma coisa? — perguntou enquanto tirava o telefone do gancho e apertava o botão do ramal para a diretoria.


— É isso que quero descobrir — respondeu evasivo.


Depois de dado o recado, a moça o guiou até a sala correta. A diretora concordara em prontamente atendê-lo ao saber que o policial estava ali.


A mulher tremia enquanto o oferecia uma xícara de café, suando de nervoso. Nunca imaginara ter de receber um policial em sua escola e não sabia lidar muito bem com a situação.


— Em que posso ajudá-lo, oficial? Algo errado? Aconteceu algo com alguma criança nossa? — a diretora perguntou ansiosa.


— A senhora quem irá me dizer. — Ele tomou um gole do café. — Recebemos uma garotinha sem os pais em nossa delegacia. Seu nome é Angélica, tem cabelo preto encaracolado, olhos castanhos, aparentes cinco anos — ele respondeu e mostrou o celular, havia tirado uma foto da menina. — Poderia pegar a ficha dela para mim?


— Claro — a mulher se virou para o armário de ferro ao seu lado e começou a mexer nos papéis das gavetas. — Eu acho que sei de quem está falando. Recebi reclamações da professora dela.


— Que tipo de reclamações?


— O comportamento da Angélica anda estranho. Ela não faz as atividades e não responde nada quando perguntamos algo sobre sua família, chora quando se trata da mãe... — tagarelou. — Falando na mãe, essa nunca mais apareceu por aqui. Quem busca a garota agora é o namorado dela. Cara esquisito.


Aquilo sim eram informações úteis. E ainda mais preocupantes.


— Tem o endereço deles?


— Tenho sim. Aqui, encontrei, tome — a diretora falou e deu a ficha a ele.


Dênis apoiou a ficha sobre a mesa, anotou o endereço em seu bloco, depois devolveu os arquivos à mulher e a agradeceu.


— Caso se lembre ou saiba de mais alguma coisa, por favor, me contate. Qualquer informação pode ser importante — ele pediu e estendeu seu cartão.


A diretora assentiu e se despediu dele com um sorriso forçado. Dênis saiu dali e dirigiu direto para o endereço anotado. Era uma casa normal em uma vizinhança normal, de classe média alta. Nenhum sinal aparente de anormalidade. Ele desceu do veículo e caminhou até a entrada da residência.


— Aqui é a polícia, por favor, abra a porta! — exclamou.


Esperou por um tempo e chamou mais duas vezes, como não obteve resposta, sacou a arma, se pôs em posição e arrombou a porta com dois chutes. Entrou apontando a pistola para frente, verificando cômodo por cômodo, mas não havia ninguém. Os moradores pareciam ter saído às pressas.


Após vistoriar todo o primeiro andar, Dênis seguiu para o andar de cima. Encontrou o quarto da menina, além de uma suíte de casal e um banheiro comum. O quarto da garotinha parecia ter sido usado há pouco tempo, o que condizia com o que ela dissera sobre fugir de casa. Já no quarto do casal, as roupas da mulher estavam intocadas, mas havia algumas peças masculinas espalhadas pelo cômodo e pelo banheiro da suíte. De novo, sem sinal dos moradores.


O policial continuou a procurar, dessa vez seguindo para o sótão. O cômodo estava empoeirado e fora de uso como na maioria das casas. Só restava verificar o porão. Tornou a descer até o andar de baixo, abriu a porta do cômodo e acendeu a luz. Das escadas não era possível ver o que tinha ali. Com cuidado, desceu os degraus e o que viu o fez ter certeza que aquele era o local de um crime.


O porão mais parecia um cativeiro. O cheiro era terrível e o chão estava coberto de sujeira, havia também uma corda ensanguentada largada a um canto. A mãe de Angélica, no entanto, não estava lá.


O policial correu de volta para a viatura e emitiu o alerta.


— Encontrei um cativeiro no porão da casa, mas não havia mais ninguém, o desgraçado fugiu às pressas. Procurem pelo veículo da família, cartões, tudo o que conseguirem para descobrir quem é e onde esse desgraçado está! Temos que encontrá-los antes que seja tarde demais!


Depois disso, entrou em contato com a diretora da escola e pediu para que as pessoas que já o tivessem visto fossem até a delegacia para ser feito um retrato falado. Com a ajuda de outra funcionária da escola e das redes sociais, descobriram o nome do suspeito.


Com base naquilo, pesquisas foram feitas rapidamente sobre a família da menina e o suposto sequestrador. Descobriram que a mãe da criança recebera uma herança gorda do falecido marido há pouco mais de dois anos e que, desde alguns meses antes, fazia saques mensais, de um valor constante, porém mais alto do que as possíveis despesas que a família aparentava ter. Aquilo era um motivo perfeito para um aproveitador fazer uma mulher e sua filha de reféns.


Em alguns minutos conseguiram a placa do carro do meliante e, graças às câmeras de segurança, encontraram o veículo. O homem fizera um saque de limite máximo diário em um caixa 24h e fugira para a fora da cidade, possivelmente usaria o dinheiro para pagar algum hotel. O meliante não era um homem estúpido, depois que Angélica sumira ele sabia que viriam atrás dos pais negligentes e que isso o poria em maus lençóis.


A polícia não tinha muito tempo antes de perder seu rastro e ser tarde demais. Enviaram todas as viaturas próximas e o agente Kayler se juntou a eles em perseguição. Horas depois descobriram que o homem se hospedara em um motel de beira de estrada.


Já era noite quando os policiais fizeram um cerco no local. O recepcionista do estabelecimento, assustado, não resistiu à delatar qual fora o quarto alugado pelo bandido.


Os agentes correram até o local e se posicionaram para a operação. Dênis bateu na porta do apartamento com a arma em punho.


— Sabemos o que fez, senhor Wess. Abra a porta e libere a refém, agora!


— E o que eu ganho com isso?! — a voz masculina gritou de dentro.


— Se colaborar com a polícia, podemos reduzir a sua pena e lhe garantir a condicional — gritou em resposta.


— Eu não quero essa porcaria! Pode esquecer, eu não pretendo ser preso!


— O senhor vai ser preso de uma forma ou de outra, senhor Wess. Colabore conosco ou seremos obrigados a entrar à força!


— Tenta se quiser, policial! — o cara riu, sem sinal de que colaboraria. — Arrombem a porta e eu estouro os miolos dela!


Dênis cerrou os dentes, não podiam agir enquanto ele estivesse com a refém.


— O que quer para libertá-la? — tentou negociar. Odiava fazer aquilo, mas não tinha escolha, a prioridade no momento era libertar a mãe de Angélica.


— Quero dinheiro, um carro para cair fora daqui e a garantia que não vão atrás de mim!


“Esse cara só pode ser um imbecil” o oficial bufou. Até parece que ele conseguiria ir longe depois de fugir dali.


— Vai sonhando!


— Faça isso ou eu a mato! — o bandido exigiu.


— E fará o que depois? Acha que vai escapar? A única forma de sair daqui é preso ou morto!


O homem rosnou lá dentro e Dênis se alarmou ao ouvir o som do gatilho armado.


— Então eu vou morrer, mas vou levar mais alguém comigo!


No primeiro momento, os policiais acreditaram que Wess mataria a refém. No entanto, ao invés disso, a porta se abriu de sopetão e o homem saiu com a arma em punho, já atirando no primeiro que viu.


Dênis não teve tempo de reagir antes que os tiros o atingissem. Caiu baleado, urrando de dor. Estava com o colete à prova de balas, o que o protegeu de danos maiores, mas tomar alguns tiros no braço e um de raspão na cabeça não era nada agradável.


Fora de ação e caído no chão, o policial viu quando os demais atiraram de volta. Sem proteção, o seqüestrador caiu, abatido. Seus colegas passaram pelo corpo e invadiram o quarto do motel atrás da vítima. Por sorte, a mãe de Angélica não estava gravemente ferida.

Dênis estava aliviado ao ver a mulher viva, mas sabia que seu estado não era tão bom assim. Estava perdendo sangue muito rápido. Provavelmente o tiro atingira alguma veia importante do braço. Ele se recostou e mal sentiu quando um dos colegas se agachou ao lado e começou a improvisar um torniquete para estancar a hemorragia e ele poder aguentar até a chegada da ambulância. Antes que terminasse, sua visão ficou turva e ele desmaiou.


***


Layla sorria enquanto caminhava pelo hospital de mãos dadas com a menina. Tinha que andar pelos corredores ainda carregando o apoio do soro conectado à sua veia, mas valia a pena aquele pequeno incômodo. Angélica sorria e tagarelava com a mãe, enquanto a mulher pensava e dava graças a Deus pelo maldito namorado não ter feito mal algum à criança. Como fora idiota de se apaixonar por um desgraçado... Jurou internamente que nunca mais poria a filha em um perigo daqueles, mesmo que isso significasse nunca mais namorar.


As duas pararam diante de uma porta e Layla perguntou:


— É esse o quarto?


— Sim! — Angélica saltitou alegre.


Layla sorriu, abriu a porta e elas entraram. Havia um homem deitado na cama do hospital, que sorriu ao vê-las.


— Tio Dênis! — a garotinha gritou e correu até ele.


O oficial sorriu e afagou os cabelos dela. Por sorte nenhum tiro atingira partes vitais, apesar da grande perda de sangue. Alguns dias de molho e ele logo estaria pronto para voltar ao trabalho.


Dênis olhou para a mãe de Angélica e reparou no soro que ela trazia e nas ataduras que cobriam os pulsos e pescoço. Os ferimentos na carne não eram tão graves, mas ele sabia que o que ela passara a marcaria para o resto de sua vida. Por pouco aquela história tivera um final feliz.

— Viemos para agradecer a sua ajuda, oficial Kayler.


— Eu trouxe doces! — Angélica estendeu um saco generoso de guloseimas para ele.


Dênis riu e pegou com dificuldade por causa do braço ferido.


— Obrigado. Prometo que vou visitá-las e pagar todos esses doces que está me dando — falou para a menina.


— Obaaa! — a criança saltitou.


As duas ficaram ali por mais algum tempo e depois Layla levou a filha de volta, para deixá-lo descansar. Dênis sorriu e acenou enquanto as via ir embora. Quase perdera sua vida, mas realizara seu trabalho. Devolvera a mãe para uma garotinha.


E resolvera o caso do ladrão de doces.


Fim.


conto escrito por

Fabiana Prieto
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Violência Urbana I - Capítulo 04 - Um Corte de Morrer

    0:00 min       VIOLÊNCIA URBANA     ANTOLOGIA LITERÁRIA
10:00 min    


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CONTOS CONTEMPORÂNEOS DA VIOLÊNCIA URBANA


Antologia de
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Capítulo 04 de 09
"Um Corte de Morrer"
Luís Henrique Dourado


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Laís Di Marqüi era uma perua convicta. O estereótipo perfeito de uma mulher pomposa, vazia por dentro, completa por fora. Casada com um empresário extremamente bem sucedido do ramo das telecomunicações, Laís, com seus recém-feitos quarenta e cinco anos de idade, não fez faculdade, nunca trabalhou - sua função social era apenas descobrir maneiras para atingir o infinito limite do cartão de crédito que havia sido recebido do bondoso marido. Não se importava em ser um perfeito clichê de saltos. Passava longe de qualquer pauta feminista. Aliás, era contra. Na verdade, tinha prazer em viver esse personagem. Rica de posses, paupérrima de educação e respeito aos próximos, atropelava e ultrajava quem ousasse se opor à sua linha reta. Carregava um rigor quase religioso com o cuidado de seu visual, portanto, toda sexta-feira ela tinha compromisso inadiável no salão. E não podia ser qualquer salão, tinha que ser o melhor, o mais famoso, mais chic e caro da cidade.

Naquele dia, Laís estava empolgada e fez uma entrada triunfal no salão, já aguardando ser recebida como a rainha que se considerava, sem sequer pensar em dar boa tarde, requisitou:

- Cadê a Edilene?

Todas as pessoas do salão se voltaram para Laís, tanto as funcionárias quanto as clientes, estas, a grande maioria também peruas consagradas. Aconchegava nos braços sua cadela, Athena, da raça Spitz Alemão, absolutamente obesa e peluda, com um lacinho roxo na cabeça e a jogou no colo da cabeleireira mais próxima. Com as mãos agora vazias, bateu duas palminhas, para chamar ainda mais atenção:

- Edilene?

Edilene apareceu ao fundo do salão afobada. Odiava a socialite esnobe, mas Laís Di Marqüi era a melhor cliente do salão. Embora a sua chefe, Mônica, compartilhasse do sentimento de repulsa, dava ordens expressas para tratá-la de maneira condizente com o que ela se considerava: uma deusa.

Toda sexta-feira, Edilene voltava pra casa com sentimentos ambíguos – feliz com a pomposa gorjeta que recebia, mas sofrida por escutar tantas barbaridades e ter que viver o personagem de escrava das novelas de época que assistia.

No trajeto até sua distante residência, Edilene, no ônibus, refletia sobre a pequenez da sua existência e se deprimia. Contudo, olhou a nota de cem reais que havia recebido com apreço, imaginou o presente que poderia comprar para o filho de seis anos e tratou de botar um sorriso no rosto. Sabia que a doação não era por generosidade ou bom coração da perua, mas somente mais uma gesto para expor sua superioridade sobre as serviçais e colocá-las em seu lugar. A cabeleireira quase conseguiu se esquecer disso para apenas pensar na felicidade do filho ao receber o carrinho de brinquedo que tanto pedia.

Edilene já se preparava para colocar Laís na cadeira, após pedir desculpas pelos segundos de atraso, quando a sua patroa, Mônica, interrompeu-a. Com um singelo toque, ela conteve Edilene e se dirigiu à Laís:

- Boa tarde, Sra. Laís. Como vai?
- Tudo ótimo e você?
- Também. Hoje eu mesmo vou atendê-la. Queria inaugurar um novo e reservado espaço VIP no salão, personalíssimo e estava esperando justamente a sua chegada.

Assim que terminou a frase, as outras peruas do salão largaram as revistas de fofoca sobre a vida dos famosos em castelos e se voltaram para Mônica com olhares furiosos de inveja. Laís Di Marqui, por sua vez, com seu ego massageado e inflamado, abriu um sorriso, ergueu o queixo, balançou levemente as mechas e não aguardou Mônica conduzi-la, iniciou seu andar na passarela imaginária.

- Por aqui, por favor – Mônica disse, apontando uma bela rampa, decorada com flores, que dava para um andar subterrâneo escondido. 

Laís Di Marqüi foi à frente seguida de Mônica. A dona do salão olhou firmemente sua funcionária e assentiu com a cabeça. Edilene não entendeu o que queria dizer aquele olhar tão forte e seguro, potente, um gesto de cumplicidade. 

A curiosidade vibrou intensamente dentro dela: o que a chefe estaria aprontando? E que lugar misterioso era aquele? Nunca tinha ouvido falar de um novo espaço, sequer movimento de obras ocorreram para que uma área VIP pudesse ser inaugurada. Infelizmente, Edilene ficaria desamparada com sua intriga, porque Mônica já havia desaparecido de sua vista junto com a perua Laís. Elas desciam devagar, valorizando o barulho do salto, enquanto a socialite observava:

- Estou impressionada. Não imaginava tamanha finesse vinda de você, querida. Estou me lembrando dos melhores salões europeus que tiveram a honra de me receber. Óbvio que não esperava nada igual aqui no Brasil, imagina, mas isso já é um grande avanço, sem dúvidas.

- Muito obrigada, Laís, fico extremamente lisonjeada – disse Mônica, abrindo uma pesada porta de metal, revestida com um material que remetia ao ouro – Entre por aqui, por gentileza.

Laís ingressou no salão especial e, em seguida, Mônica, fechou a porta bruscamente. O alto barulho da porta batendo escondeu o posterior click da tranca automática. Um amplo salão se revelava diante delas, lindamente iluminado, uma decoração moderna, com apenas uma enorme, confortável e moderníssima cadeira apontada para o espelho. A perua, empolgada, foi andando rapidamente em direção à cadeira e o som do salto batendo no chão ecoava pelo ambiente. Ela parou em frente ao assento e aguardou Mônica girar a cadeira para que ela delicadamente repousasse. Laís se admirou no espelho, com um leve toque do indicador tirou uma das mechas de sua testa e relaxou as mãos no encosto de braço da cadeira.

Nesse exato momento, Mônica, que observava atentamente os movimentos da perua, apertou um botão embaixo do balcão, onde os objetos de salão estavam dispostos. Em resposta, dois braceletes de ferro pularam da cadeira e prenderam os pulsos de Laís. As luzes antes claras e vivas adquiriram um tom vermelho, sombrio, neon, como numa câmara para revelar fotos, que piscavam em intervalos de poucos segundos. A perua deu um berro estridente que ensurdeceria ouvidos sensíveis.

- O que significa isso? – virou-se gritando em revolta para Mônica, que não respondeu. Com a expressão inabalada, a dona do salão pegou um pente lindamente adornado no balcão e o admirou.

- Ande, me explique! O que é isso? Como ousa me prender? Tire-me já daqui- esperneava Laís.

Mônica impassível se dirigiu para trás da cadeira e encarou fixamente a perua através do espelho. Ela repousou as mãos no ombro de Laís, fitando-a imóvel por alguns segundos, até que pegou os cabelos da socialite e começou a acariciá-los carinhosamente.  

- Socorro! Socorro! Me tira daqui. Socorro! Socorro! Tem alguém ai? Socorro!

- Já cansou? – perguntou, enfim, Mônica.

- Socorro! Socorro!

- Pode grunhir a vontade, galinha. Esse salão foi feito com revestimento acústico para que vadias como você não pudessem ser ouvidas.

- Quando eu sair daqui, você está muito encrencada, sua desgraçada. Eu vou acabar com você. Vou fechar esse salão. Meu marido vai tirar cada centavo seu. Eu juro que destruo sua vida. Não só a sua vida, como a de todas as suas gerações futuras, você está amaldiçoada para sempre.

- E o que te faz pensar que você vai sair daqui com vida? – indagou Mônica, voltando a encarar nos olhos a perua que agora mostrava um rosto preenchido em pânico. O botox se espremia para fora através dos poros. Aquelas palavras fizeram a postura dela mudar. Laís Di Marqüi se acalmou na cadeira e parou de gritar.

- Muito bem, é assim que eu gosto. Vamos começar os trabalhos? Aliás, não é por isso que você está aqui? – ao dizer isso, Mônica fez questão de mostrar claramente o pente que empunhava na mão. Ao invés dos tradicionais dentes de plástico, o artefato possuía lâminas finas, oito, paralelamente dispostas e afiadas. Elas brilhavam. Laís arregalou os olhos e esperneou como uma criança longe da mãe.

- O que você vai fazer comigo? Por favor, não me mate, por favor! Eu te dou tudo o que você quiser. Eu juro, eu juro, qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. Meu marido é muito rico. Por favor, não me mate, eu sou tão jovem, tão linda para morrer... Por favor!

- Você acha que pode me comprar com esse seu dinheiro sujo, piranha? Você acha que é pelo dinheiro que eu te coloquei aqui? – Mônica questionou com tom arrogante e poderoso.

- Por favor, por favor, não me machuque – implorava Laís.

Mônica então começou a pentear os cabelos, bem delicadamente, com o pente de lâminas. Laís tremia, mas Mônica, calma, acariciava o cabelo da perua. De forma macia, ia descendo e subindo o pente pelas lisas e lindas madeixas de Laís. As lâminas não encostavam-se ao couro cabeludo de Laís, Mônica tratava de praticar seu sadismo, passando as lâminas apenas no cabelo. O pescoço da ricaça arrepiava com a proximidade que as lâminas caminhavam, sentia o frio mortal delas. Olhando com prazer o desespero de Laís, Mônica fisgou com o pente especial uma mecha que caia na bochecha da socialite. A dona do salão ergueu lentamente os fios que escorriam pelas lâminas. Laís acompanhava o movimento completamente apavorada. Em pânico, ela se debulhava e suas lágrimas borravam sua caríssima maquiagem importada. Mônica se deliciava. De súbito, ela cansou de pentear o cabelo e estacionou o pente no pescoço de Laís.

- E ai? Será que termino isso agora? – disse Mônica, revelando uma cara fria e ameaçadora, arregalando os olhos como uma psicopata.

A perua não falava mais nada. Apenas com os olhos estanques implorava pela sua vida, enquanto chorava compulsivamente.

- Não, não, seria muito fácil – disse Mônica largando o pente de lâminas no balcão e aliviando a expressão facial – Tenho algo muito melhor...

Ela abriu a gaveta do balcão, retirou uma máquina de raspar cabelos e a colocou na tomada.

- Zero? É esse o corte que você quer? – perguntava destilando um sorriso venenoso nos lábios.

A perua gritou em defesa do seu cabelo com a mesma força que usou para lutar por sua vida.

- Não! Por favor, não! Meu cabelo não!– berrava Laís que agora suava na testa e nas axilas, coisa que nunca admitiria e fedia, fedia como um porco sendo preparado para o abate. O odor do medo.

Mônica passou o fio da máquina pela orelha de Laís e a deixou ali pendurada fazendo aquele barulho aterrorizador em seu ouvido. Ela então pegou um grande pote e mostrou o conteúdo para Laís.

- Está na hora de passarmos o creme hidratante – disse Mônica mostrando o pote que estava cheio de sangue viscoso até a borda. Dois olhos que pareciam de seres humanos boiavam nele. Ela derramou o conteúdo todo no cabelo da perua. E lá ficou ela, melecada, mergulhada em sangue, com os glóbulos, que haviam rolado, no colo. O líquido vital escorreu por seu rosto e entrou na sua boca. Laís berrava, cuspia, babava o sangue enquanto insista em vão nos pedidos de socorro. Mônica, por sua vez, gargalhava em êxtase.

- Dizem que esse creme é ótimo para pele, rejuvenesce, dá mais vida, sabe? – disse sarcástica.

- Eu me desculpo por tudo, eu juro, eu peço perdão por toda vez que eu tratei mal as pessoas, você, suas funcionárias... Eu juro, eu estou arrependida, eu aprendi minha lição. Me deixe sair daqui, por favor. Eu serei outra pessoa. Vamos esquecer isso, por favor. Não contarei a ninguém sobre o que aconteceu aqui.

- E você acha que pedir perdão vai apagar alguma coisa que você já fez? Não sou padre para te eximir dos seus pecados, estou aqui para condená-la por eles.

Dito isso, Mônica pegou a linda e enorme faca que estava no balcão e encostou a lâmina afiada no pescoço de Laís. Amarrada, chorando, de maquiagem borrada, suada, indefesa, pedinte, mergulhada em sangue, fedida, enfim, horrível, um ser digno de pena, Laís implorou a última vez pela sua vida:

- Por favor... Eu imploro...

- Agora é tarde para tentar implorar. Te encontro nos confins do inferno, sua galinha estúpida!

Mônica então fez um movimento e Laís não pôde mais pedir por sua vida. O escuro se fez.

A pequena linda e gorda cadela latia desesperada. O volume das vozes ia aumentando pouco a pouco, até que se tornaram compreensíveis.

- Sra., Sra.?

Laís abriu os olhos devagar. A claridade a incomodou um pouco e, como se despertasse de um pesadelo, como num susto, checou seu corpo. Tudo estava perfeitamente no lugar. Ela estava sentada na cadeira do salão, no ambiente comum, que havia adentrado há pouco. Di Marqüi correu gritando desesperada para olhar seu reflexo no espelho. E não acreditou no que viu:

- Não é possível! O que aconteceu? Não é possível!

- Como assim, Sra. Laís? – perguntou Edilene.

Laís retornou o olhar para o espelho para tentar acreditar no que via – não era possível: ela estava espetacularmente linda, como nunca esteve em toda sua vida, sequer na saudosa juventude. Sua pele nunca se mostrou tão linda e macia, seu cabelo nunca tão brilhante e sedoso, sua unha, pintada de uma cor que não existira no universo, fora criada naquele momento para revestir sua delicadeza. Murmúrios entre as outras peruas: “Eu quero o tratamento VIP também” “Eu sou a próxima” “Posso agendar?” se ouvia de todas elas empolgadas e invejosas com o resultado do tratamento personalíssimo. Uma discussão começava a se formar.

Laís, contudo, procurava vorazmente com os olhos a dona do salão. Finalmente, Mônica, que estava distraída, agachada, procurando algo no balcão da recepção, levantou-se e surgiu às vistas de Laís que em um impulso bateu os saltos em sua direção. Ela pegou Mônica pelo pescoço com as duas mãos:

- Eu vou te matar, sua desgraçada!

O salão inteiro se voltou incrédulo para assistir aquele ataque, para eles, desmotivado.

- O que você está falando, Laís? Por favor, me solte, está louca? Você está me machucando.

- Machucando? Machucar é o que você fez comigo, sua louca sádica.

Mônica se defendia, colocando as mãos no pulso de Laís, impedindo-a de enforcá-la.

- Acalme-se, Laís, o que está acontecendo? O que houve? – gritou uma perua de longe.

Mônica olhava para ela perplexa, mostrando-se atônita diante da reação de sua melhor cliente. Edilene, todas as funcionárias do salão pararam tudo o que estavam fazendo para acompanhar o escândalo promovido por Laís.

- Gente, o que é isso? Ela enlouqueceu? – disse uma perua para a outra.

- Devem ser esses remédios tarja preta que ela ainda tomando – sussurrou mais uma.

Edilene foi até Laís e a fez soltar o pescoço de Mônica.

- O que está acontecendo aqui, Laís? – perguntou Edilene.

- Essa louca, essa louca... ela... ela... – o salão aguardava ansiosamente para que Laís explicasse seu surto psicótico.

- Ela... ela... - Laís se olhou novamente no espelho. Ela estava radiantemente linda e não conseguiu completar a frase. Olhou em volta e estava sendo julgada aos olhos de todos como a louca fugida do hospício. Ajeitou a roupa, compondo-se, virou a cabeça rapidamente com desdém para as peruas que a observavam, e com o queixo erguido saiu do salão, batendo saltinho.

Assim que Laís deixou o estabelecimento, pegando bruscamente sua cadela do colo de alguém, as funcionárias e clientes retornaram para o seu lugar de trabalho. Obviamente o ataque foi assunto de muita fofoca, dias e dias comentaram sobre o surto da galinha. Edilene, no entanto, após o acontecido, reteve seu olhar em Mônica, que o retribuiu com um sorriso peçonhento e uma piscadela safada. Edilene, aquele dia, mesmo sem compreender exatamente o que a chefe havia feito com a vadia, entendeu o gesto e pegou seu ônibus para casa mais feliz e aliviada, acreditando que talvez existisse justiça no mundo.

Laís Di Marqüi, por sua vez, chegou à sua mansão e antes que pudesse abrir a boca para reclamar qualquer coisa para o marido, recebeu elogios efusivos dele, de como estava bela, coisa que nunca acontecia. Ele nunca ligava para qualquer coisa que ela fizesse ou inventasse na sua aparência, mas naquele dia não. Naquele dia, logo após ela girar a chave e abrir a porta de casa, dando de cara com ele, um sorriso enorme, branco, seguido de um aplauso admirado e perplexo a receberam. Ele a beijou com vontade, tentou fazer amor com ela, mas não conseguiu – iria estragar o look – disse Laís. Então ela sentou no sofá, chegou a abrir a boca para contar o ataque que havia sofrido e ordenar que a vingança fosse planejada, mas sem saber muito bem por que, se reteve.

Na sexta-feira seguinte, Laís adentrou novamente em grande estilo o salão de beleza de Mônica, chamando a atenção e novamente carregando sua cadela gorda e peluda, Athena, no colo:

- Cadê a Mônica? Quero meu tratamento VIP neste exato momento! Pago até o dobro do valor!

Mônica olhou feliz para Edilene, e mais uma vez sorriu enigmaticamente pra ela. Laís Di Marqüi teria o tratamento que merecia.



conto escrito por

Luiz Henrique Dourado
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.